“Do Outro Lado”: Turquia insubmissa

Uma visão da luta empreendida pelos turcos para manter-se longe da submissão que representaria, segundo os grupos de resistência, a antigas nações colonialistas que lideram a União Européia, é o que mostra o diretor turco-alemão Fatih Akin em seu filme pr

A angústia de pertencer a dois continentes faz dos turcos um povo cuja tendência oscila entre sentir-se asiático, mantendo raízes que remontam ao Império Otomano (1290/1920), ou simplesmente europeu, aderindo à União Européia (UE) para tornar-se parte do grande estado cujas fronteiras se estendem, cada vez mais, às bordas da Rússia. Um dilema presente neste belo “Do Outro Lado”, do turco-alemão, Fatih Akin, que trata dos desencontros dos turcos radicados na Alemanha e daqueles que resistem em seu país à pressão para tornar-se parte do super-bloco de poder, que emerge das frágeis costuras políticas, lideradas pela Alemanha e a França. Tênue linha os separa, pois de um lado existe a visão de que a adesão a UE os tiraria do Terceiro Mundo e os lançariam diretamente no Primeiro Mundo, e de outro a certeza de que se tornariam satélites de poderosas nações imperialistas. Uma discussão que Fatil Akin não se exime de expor ao longo de seu filme através do choque entre as gerações de imigrantes radicados em Bremen, Alemanha, e dos grupos de esquerda que resistem na Turquia.


 


 


Em todos eles, a sensação de pertencimento traduz a urgência de assumir uma identidade, muitas vezes amortecida ou ainda não sentida em sua totalidade. Uma necessidade que vai se impondo aos trambolhões, guiada por fatos por eles desencadeados. Nejat Aksu (Baki Davrak), professor de conceituada faculdade alemã, vive com o pai Ali Aksu (Tuncel Kurtiz), aposentado, sem maiores atropelos, até que o velho; premido pela solidão, traz para casa a prostituta Yeter (Nursel Köse), cansada de ser perseguida pelos compatriotas que não a aceitam no mercado do sexo. Um fato banal, daqueles que os jornais escamoteiam para o rodapé de página, provoca uma tragédia digna dos dramas gregos: Nejat, em conseqüência disto; sai à procura da filha de Yeter, em Estambul. Uma busca cheia de descobertas: de sua vocação para uma atividade adversa à que exercia na Alemanha e a certeza de estar em seu habitat. Ali estão suas raízes, os familiares e os lugares que o tornam turco.


 


 


Fatih Akin foge à visão conservadora de Orhan Pamuk


 


 


Numa narrativa marcada pela ação paralela, Fatih Akin, enquanto o leva para a Turquia, faz o caminho inverso com Ayten Öztürk (Nurgül Yesilçay), a jovem militante de esquerda que luta contra a adesão de seu país à UE. Os fatos que os impelem para além fronteiras turcas e alemãs são diversos, de natureza particular e política, mas as razões, inegavelmente, são as mesmas. Ambos são vítimas das condições político-econômicas de seu país e se abrigam na Alemanha, como forma de amenizar suas agruras. Enquanto, ele, Nejat, professor, classe média, tem condições de transitar de um país ao outro sem mudar seu status, Ayten, sobrevive clandestina em Bremen, temendo ser deportada. A angústia de Nejat, premido pelas circunstâncias, é de reparar o mal feito pelo pai a Yeter; mãe de uma jovem sobre a qual nada sabe. Dia após dia, numa Estambul cujo ritmo assemelha-se ao de um país estagnado, às voltas com seus próprios descaminhos, configurados pelas crianças brincando em ruas estreitas e nos fundos de prédios abandonados – ele se perde na procura de Ayten, que muitas vezes está a poucos metros dele. Falta algo para sacudir-lhe, tirá-lo do cansaço que acomete seres em situações que não dominam.



Esta situação nos remete ao romance do turco Orhan Pamuk, “Neve”, que traça paralelos semelhantes, mas de forma conservadora. Em seu livro, ele constrói uma sociedade atravancada por uma estrutura social arcaica, geradora de costumes atrasados e  idéias reacionárias, difundidas por lideranças muçulmanas que mantém o povo na dormência que o leva a atos violentos em nome da religião. Uma construção que reforça o temor dos países que compõem a UE de admitir a Turquia como membro permanente, pois supostamente contaminaria os povos vizinhos com uma temível onda muçulmana. Em seu filme, Fatih Akin constrói uma Turquia diferente, entregue a problemas político-sociais comuns a países terceiro-mundistas. Seus personagens estão às voltas com seus afazeres, nem por isto indiferentes à construção de uma sociedade mais justa. Uma visão positiva que ele estende as atividade dos grupos de esquerda na própria Turquia, reagindo contra a marginalização de vastos segmentos sociais da estrutura de poder. Fato que não ocorre a Pamuk, que centra toda a ação de seu romance no contraste Oriente/Ocidente, pendendo, sutilmente, para a suposta superioridade deste último.


 


 



Relação Ayten/Lotte muda a vida das pessoas que as cercam
                           


 


 



Fatih Akin estende sua narrativa às contrastantes idéias de turcos e alemães sobre o processo de adesão à União Européia, por meio de manifestações de grupos de esquerda em Estambul e em Bremen; forma de mostrar que, embora com estruturas político-econômicas adversas, engendram movimentos de resistência de parte a parte.  As seqüências são ilustrativas do que pretendem uns e outros, confirmando sua ânsia por reformas que necessitam de luta para serem implantadas. Dezenas de bandeiras vermelhas, palavras de ordem, mostram nações em ebulição. É o aspecto geral que precisa de detalhes para aclarar o objetivo do roteirista/diretor Atitih Akin. E ele usa então a família Staub e Ayten, para mostrar diferentes visões do processo de adesão à UE. É o particular exemplificando o geral, numa dialética que vai desencadear  mudanças radicais na vida das Staubs e de Ayten. Elas, mãe, Suzanne (Hanna Schygulla), e filha, Lotte (Patrycia Ziokowska), estão entregues a seu cotidiano quando Ayten irrompe em Bremen. Surge como um animal ferido, cansado, amargurado, numa terra estranha, refúgio temporário até o próximo combate. Fatih Akin poderia usar a identidade entre jovens, a relação política entre seres deslocados em sua sociedade, para aproximá-las, com Ayten atraindo Lotte para seu campo. Não da maneira que se esperava de uma militante de esquerda, pela via política, mas pelo desejo, entre animais acuados – Ayten pelo governo turco, Lotte pela mãe, Suzanne.


 


 


Esta relação desconcerta uma vez que levará Lotte a se estruturar, se encontrar, mudando sua perspectiva não pela consciência política, sim pela paixão – a busca do outro para pertencer não a um lugar, a um grupo político, mas a uma pessoa. Noutros tempos, Lotte seria a mocinha, Ayten o herói que luta contra a opressão e, por amor, vai atrás da amada pouco se importando com as barreiras e armadilhas  criadas pelo inimigo. Uma originalidade salutar para um drama político, que discute problemas candentes da sociedade moderna. Sem perder a linha narrativa, Fatih Akin mescla a relação de Ayten com Lotte, com a discussão sobre a adesão da Turquia à UE. De um lado está Suzanne, em suas roupas pesada, sombrias, de outro a jovem assustada, Ayten. As duas se defrontam na cozinha onde está Suzanne, desconfiada da relação da filha com a turca desconhecida. Enquanto a alemã defende, em cada frase, a União Européia, dizendo que a situação da Turquia irá melhorar quando, enfim, entrar para esse gigantesco bloco econômico, Ayten esbraveja dizendo que nada irá melhorar, pois os países que a lideraram são antigos estados colonialistas, como Alemanha, França, Itália, Inglaterra e Espanha.


 


 



Suzanne tenta vender imagem positiva da UE


 


 



Os argumentos de Suzanne geram, portanto, reprovação exaltada de Ayten, mostrando o quanto estão em campos opostos. Duas gerações em posições adversas, com uma delas em posição de decidir o futuro da outra e, também, o de Lotte. Num instante de intolerância, demonstrando o quanto de preconceito pode haver em quem se sente superior, Suzanne a repreende: “Enquanto você estiver em minha casa, não me fale comigo dessa forma. Só quando estiver em sua casa, pode falar assim!”. E Ayten, insatisfeita com sua situação, se desembesta casa afora e a discussão termina por desencadear um processo circular, o que atesta o quanto narrativa moderna pode escapar aos vícios da estética hollywoodiana. Fatih Akin usa a linearidade, alternando a narrativa em espaços diferentes, com os personagens mudando de espaços, indo da Alemanha para a Turquia e vice-versa, sem nada perder em clareza e sentido. As ações paralelas contribuem para a sensação de vazio e da busca do outro que, em princípio, é apenas uma informação colada à parede da livraria adquirida por Nejat de um alemão que decidiu voltar para seu país natal. E termina, reforçando as mudanças radicais adotadas pelos personagens em suas vidas, resultado de escolhas erradas feitas em instantes que estão dominados pela completa irracionalidade.


 


 



Mas esta irracionalidade aparente decorre do acúmulo cultural engendrado pela nação, caso principalmente de Suzanne, e faz “Do Outro Lado” andar. A cada ato dos personagens a narrativa toma um rumo inusitado. A discussão entre Ayten e Suzanne e a relação Ayten/Lotte influenciarão radicalmente suas vidas; a desconfiança de Ali Aksu o levará a punir Yeter e mudará violentamente sua existência. No meio deles está Nejar, instrospectivo, servindo de liame entre ambos, espécie de consciência de todos eles, representando, porém, a indecisão dos intelectuais diante do desafio de enfrentar problemas que fogem a seu controle. Ele apenas ajuda, cede espaço, ouve, mas não persiste, ligando informações e pessoas ao que pretendia desvendar. Assim, os fatos correm soltos, como se faltasse alguém para ligá-los. Quem termina por fazer a ponte entre os dois países, usando as ligações da filha Lotte com Ayten é Suzanne, sem que Fatih Akin caia no clichê de mostrar um personagem resistente a uma situação e depois o transforma num ser totalmente diferente. O que a faz mudar é a tragédia que a pega em meio ao afastamento da filha de seu convívio e o ódio que nutre por Ayten, devido à paixão declarada de Lotte por esta.


 


 



Frase da líder do grupo de esquerda condena opção de Ayten


                      


 


 


Todas as procuras perdem o sentido quando isto ocorre. Suzanne tem com o que se identificar. Nejat com o que se envolver; depois que Ali retorna forçadamente à Turquia. Fatih Akin não se perde em explicações sobre as escolhas de seus personagens; eles são movidos pelas escolhas e reações que tiveram; premidos que estão pelas atribulações da história. São, portanto, agentes históricos. O que farão recairá sobre suas cabeças. No entanto, Ayten se desfaz de suas ligações com seu grupo políticos para atender aos ditames da  paixão: o individual se sobrepondo ao coletivo, para dar à Suzanne a reparação por sua atitude contrária à relação de sua filha com Ayten. Deixasse a redenção de Suzanne se impor à narrativa, Fatih Akin teria enveredado seu filme para o campo da condenação aos atos do grupo de esquerda. Entretanto, quando Ayten, caminha ao lado de Suzanne deixando a prisão, onde cumpre pena por atos contra o governo, a líder do grupo de esquerda a qual pertence grita: ”Ayten, você conseguiu, traidora!”. Uma forma de Fatih Akin condenar o gesto de Ayten e indicar que a resistência deve sobrepor-se à opção individual.A questão, enfim, em “Do Outro Lado”, é caminhar por vertentes diversas, sem perder o foco de que as contradições são inerentes ao sistema e este germina seus próprios conflitos.


 


 


“Do Outro Lado” (Aud der Anderen Seite). Alemanha, Turquia, Itália. Drama. 2007. 122 minutos. Roteiro/direção: Fatih Akin. Elenco: Nurgül Yesilçay, Baki Davrak, Tuncel Kurtiz, Hanna Schygulla, Patrycia Ziokowska, Nursel Köse.


 



(*) Prêmio de Melhor Roteiro, no Festival de Cannes 2007.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor