Do silêncio aos gritos de assassina: quais vidas realmente importam?

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Ilustração: Nando

A última semana vai ficar marcada pela sucessão de abusos e crimes de ódios cometidos contra a menina de 10 anos estuprada pelo tio no Espírito Santo. Depois de conseguir na Justiça autorização para a interrupção da gestação – a legislação brasileira prevê o aborto em casos de violência sexual – a menina foi vítima de uma campanha de ódio promovida por grupos fundamentalistas religiosos insuflados pela ativista de extrema direita bolsonarista conhecida como Sara Winter. A extremista – que é ex-assessora da ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos, Damares Alves – expôs, em suas redes sociais, os dados pessoais da menina e do hospital que iria realizar o procedimento.

Atendendo ao apelo da extremista, dezenas de representantes dos movimentos “pró-vida” e “pró-família” tomaram o entorno do hospital. O grupo, composto por militantes “cristãos” e políticos bolsonaristas, se revezava entre rezar e xingar o hospital, os médicos e a menina. Ela e o médico chegaram a ser chamados de “assassinos”. Também houve uma tentativa frustrada de invasão à unidade. Em nenhum momento a sanha dos fundamentalistas se voltou contra o estuprador. O grupo só foi contido após a chegada de integrantes do Fórum de Mulheres de Pernambuco que também se dirigiram para a porta do hospital para defender o direito da menor e garantir a realização do aborto.

Sob a falácia da defesa da vida do feto, fruto de mais de quatro anos de estupros, o bolsonarismo protagonizou mais um ato do ciclo de abusos e ameaças à integridade física e emocional da menina capixaba. Os conservadores tentaram inverter a lógica dos abusos criminalizando a vítima. Por meio de uma rede social, uma mulher autodenominada “cristã conservadora” chegou a questionar a condição de vítima da menina. “Será que ela é tão inocente assim? Me perdoa! A maioria das mulheres de hoje estão pior que cachorras no cio”, escreveu a “cidadã de bem”, que se define como uma fiel apoiadora de Bolsonaro.

Dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública apontam que entre janeiro e junho deste ano, Minas Gerais registrou uma média de seis estupros de vulneráveis por dia. Ao todo, 1.123 crianças e adolescentes de até 14 anos e pessoas com deficiência mental sofreram violência sexual nos seis primeiros meses deste ano. Em entrevista, o médico que realizou o procedimento – e que tem sua carreira marcada pela luta em defesa do direito ao aborto legal e seguro para mães pobres – afirmou que grupos políticos usam a religião de forma seletiva para proliferar ódio. Em 2015, enquanto participava no Senado de uma audiência para debater mudanças na Lei do Aborto, o médico desafiou setores conservadores ao dizer que quem tem condição de pagar tem acesso ao aborto seguro. Para ele, legalização mudaria a realidade de meninas pobres.

Em resposta à exposição dos dados da menina, setores progressistas e defensores dos direitos humanos criaram uma campanha virtual para denunciar as páginas de Sara Winter. Após a mobilização, os perfis pessoais da extremista foram retirados ar. O YouTube cancelou o canal da ativista de extrema direita por violação dos termos de serviço da plataforma. O PCdoB também pediu ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes que reavalie o direito de prisão domiciliar da ativista bolsonarista – investigada no inquérito das manifestações antidemocráticas.

O Ministério Público do Espírito Santo entrou na Justiça para que Sara Winter seja condenada a pagar R$ 1,32 milhões por dano moral coletivo – que devem ser revertidos para o Fundo de Direitos da Criança e do Adolescente de São Mateus, cidade natal da menina. A ação alega que a extremista “expôs a criança e a família dela, em frontal ofensa a toda a ordem jurídica protetiva da criança e do adolescente”.

A onda de ataques, ofensas e crimes contra a menina recolocou nos holofotes debates importantes sobre quais são as vidas realmente importam para conservadores bolsonaristas. Até quando mulheres e crianças vítimas das mais diversas formas de violência serão responsabilizadas pelos crimes que sofreram? Defender a vida é, acima de qualquer coisa, garantir a proteção e o amparo daqueles que tiveram seus sonhos interrompidos.

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