“Dois Irmãos”
Maquiando a decadência
Diretor argentino, Daniel Burman, volta a tratar da classe média de seu país e suas tentativas de manter a pose enquanto perde o status
Publicado 10/09/2010 11:36
Dois irmãos, Suzana (Graciela Borges) e Marcos (Antonio Gasalla), que ainda não assumiram a terceira idade, consomem o cotidiano digladiando-se para escapar à dor que um impõe ao outro. Principalmente ela, que lança sobre ele seus fracassos, sua ansiedade, seu desejo de ser o que jamais foi. Passa seus dias entre visitas a imóveis, engendrando compromissos que jamais irá assumir. Enquanto ele dedica-se à mãe idosa, cuidando dela a ponto de quase anular-se. Para irritação de Suzana que procura dominá-lo, tirando-lhe qualquer iniciativa ou traços de identidade. Entre uma discussão e outra, o diretor/roteirista Daniel Burman (“O Ninho Vazio”) traça em “Dois Irmãos”, a partir do romance de Sergio Dobcovsky, um perfil da classe média argentina e sua luta para preservar a dignidade e os bens matérias que ainda lhes restam, num filme sensível e cheio de alternativas dramatúrgicas e imagéticas.
Sem incluir diálogos ásperos sobre as perdas socioeconômicas e políticas, Burman deixa o espectador antever a transição de um tempo de certezas para o das incertezas que ainda pairam em seu país. Um desconforto vislumbrado no comportamento de Suzana, que tenta projetar conhecimentos e relações sociais distantes de sua realidade. Com seus vestidos e conjuntos aparentemente sofisticados, ela deixa a impressão de que sua família teve dias melhores e agora tenta, a todo custo, agarrar-se ao que lhe resta. Em suas visitas a apartamentos, como corretora imobiliária, ela vai compreendendo que seu tempo escoa e não poderá mais manter seu status.
Seu universo é, assim, diferente do de Marcos, dedicado à mãe, sem poder retomar a ourivesaria. Sua relação com esta, a maneira como a trata, rende ao filme uma delicadeza difícil de encontrar nos filmes atuais. Notadamente na sequência do banho, em que ele conversa com a mãe, lava-lhe os cabelos. Cena complexa, pois inclui além da interpretação dos atores, o perfeito enquadramento, com iluminação adequada para transmitir o clima necessário à interação do espectador com a ação. E ajuda, sobretudo, a traçar o perfil do personagem tão rico quanto o da irmã, pois “Dois Irmãos” é isto; um filme de personagens.
Mas é a calma com que Burman conduz a narrativa que torna o filme ainda mais envolvente. Às vezes usa o humor para ressaltar a situação vivida pelos irmãos, noutra torna ácida a relação entre ambos. O que acontece após a morte da mãe, Marcos sente o vazio, enquanto Suzana, não, mostra-se aliviada. É quando esta dá vazão a toda a sua mágoa, ambições e frustrações. O modo como trata o irmão beira o sadismo, a tirania, a ponto de humilhá-lo. Pesa sobre ela o passado de escolhas erradas, da beleza cujos traços ainda lhe marcam o rosto, de aspirações jamais cumpridas. Atira tudo sobre o pobre Marcos, acostumado aos maus tratos, levando o espectador a irritar-se com ambos – ela por fazê-lo, ele por não reagir.
Suzana tenta amenizar a
perda de poder aquisitivo
Até que ela decide adquirir um imóvel no Uruguai, como forma de amenizar a queda de poder aquisitivo, embora só o faça após a morte da mãe. Esta aparente mudança de ares, de território, permite a Burman deter-se nas mudanças ocorridas na classe média argentina. Já não consegue mais sobreviver como antes; o Uruguai torna-se sua válvula de escape. Mas é nesta translação que Marcos irá encontrar-se para espanto de Suzana. Justo o subserviente Marcos encontra um jeito de driblar a velhice. Adere ao teatro, fazendo “Édipo Rei”, arranja um amigo, volta à ourivesaria, contornando seus impasses. Diferente de Suzana ainda entregue aos seus delírios de status, de pertencer a um segmento social acima de suas poses.
A brilhante sequência da recepção na embaixada brasileira, cheia de quiproquós, desencontros, tiradas malsucedidas, comportamento de penetra, digna de comédia de costumes, bem o demonstra. Burman satiriza a classe média argentina e, a um só tempo, usa a ação para o reencontro dos dois irmãos. Contrastam com a sobriedade das sequências em Montevidéu: é onde Marcos encontra seu espaço. E veda-o a Suzana, por mais que ela tente sabotá-lo. Suas sucessivas tentativas de evitar que ele ganhe autonomia terminam aí. Escapando dela, após a humilhação a que ela o submete, ele cruza o rio da Plata e decide enfrentá-la em seus termos.
E Burman a faz, também, reencontrar-se consigo mesma através de contatos inesperados com velhas amigas. O espectador percebe então quanto dela ficou pelo caminho. E Suzana não consegue mais juntar os cacos, obrigando-se agora a aceitar o que “construiu” ao longo da vida. Cruel, mas por isto mesmo verdadeiro, num filme que integrou o Indie – Mostra de Cinema Mundial, que exibiu 119 filmes de 19 países, de 02 a 09 de setembro último, em Belo Horizonte, e deve ser visto quando vier a ser distribuído no Brasil. Burman, com “Dois Irmãos”, mostra-se em seu ambiente natural, o da família, com tratamento equilibrado, sem a melancolia de seu filme anterior: “o Ninho Vazio”. Um bom achado.
“Dois Irmãos”. Drama. Argentina/Uruguay/Espanha. 2010. 105 minutos. Roteiro: Daniel Burman, Diego Dubcovsky, baseado no romance deste. Direção: Daniel Burman. Elenco: Antonio Gasalla, Graciela Borges.