Dona Carmén, amante da sordidez e do escárnio

Dona Cármen Lúcia ataca novamente. Há pouco tempo ela deu uma declaração na qual dizia acreditar que apenas a justiça de pequenas cidades do interior cometia erros. Quer dizer, foi o que disseram para ela, segundo suas palavras. Afirmou ainda que as instituições do país funcionavam normalmente, no que tem toda razão, com Cunha em liberdade e o provisório Temer andando às escondidas.

O mundo descrito por dona Cármen é um mundo de conto de fadas. Aliás, ela própria usa um figurino de filmes da Disney, estilo madrasta má (a amante da língua há de perdoar uma possível redundância). Não evocarei a professora Minerva McGonagall para não cometer uma injustiça contra personagem tão simpática, embora sob aparência tão severa.

Agora, dona Cármen será Presidenta do STF. E já avisou, será “presidente”, por ter sido “estudante e amante da língua portuguesa”. A língua pátria, tão maltratada, pobrezinha, há de se ter comovido com tão pungente declaração de amor. Pudesse retribuir o afago da agora “presidente” da mais alta corte do país, talvez lhe houvesse passado um pito carinhoso.

─ Carmencita, querida, agradeço tanto amor, mas a forma “presidenta” existe, e há muito. Está registrada nos dicionários, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e em edições de revistas e jornais que hoje, por uma opção política, costumam ridicularizá-la. Aliás, Carmencita, o termo “presidenta” foi usado até por um bruxo de verdade, dos maiores que tivemos. Naquela considerada por muitos como sua obra prima, Machado, carinhosamente chamado de bruxo do Cosme Velho, usa a palavra “presidenta”. Talvez, com mais amor pela língua e pela justiça e menos politiquice, você se desse conta de que melhor teria sido não falar. E, antes que esqueça, “politiquice” também existe.

Mas, a doce língua não tem como falar em sua defesa. Nem pode impedir que se use dela impunemente para propósitos nem sempre tão amorosos. Afinal, quem ousará contrariar a vontade de dona Cármen, aspirante ao porte de rainha europeia? Porque, convenhamos, ela sabe se portar com elegância dentro daquela toga. Bem ao gosto das nossas elites, adoradora de frufrus e salamaleques.

Dona Cármen não demonstrou, na verdade, nenhuma preocupação com a língua portuguesa. A sua fala foi um ato político calculado, muito bem calculado. A começar pelo dia escolhido. Dona Cármen poderia ter dito, simplesmente, que prefere ser chamada de “presidente”. Acreditando nós no seu zelo e no seu amor pelo idioma ela deveria saber que as duas formas estão corretas e que o falante e/ou escriba pode optar por uma delas. Mas, tivesse feito isso, não seria possível a estocada em Dilma, que sempre preferiu ser tratada como “presidenta” e foi sempre atacada e ridicularizada por isso. A fala de dona Cármen foi calculada. Foi uma reverência e uma concessão à misoginia reinante no Brasil de hoje. Foi um apequenamento frente a uma justiça masculina, sempre pronta a afrontar o universo feminino da deusa que lhe representa. Foi também uma genuflexão aos ditos grandes veículos de comunicação, um sinal de que, até nas mínimas coisas, ela se revelará uma dócil colaboradora.

No momento que vivemos, naquele exato dia, a fala da nova “presidente” do STF foi uma afronta à democracia e ao Brasil. Cármen Lúcia tripudiou sobre Dilma, e sem razão. Não há vivalma que, ao ler a sua declaração, não se remeta à presidenta eleita pelo povo. A infeliz declaração de que, por “ter estudado e ser amante da língua portuguesa”, preferia a forma “presidente”, dá a entender que os outros, que usam outra forma igualmente correta, não estudaram, não conhecem e não amam o nosso idioma.

Dona Cármen mostrou que mesmo em pequenas coisas é necessário sinalizar a capitulação frente ao golpe. Golpe contra a democracia, diga-se sempre, e não contra Dilma. Golpe contra a vontade popular. E não há, na nossa língua tão amada, outra palavra que substitua essa, mais legítima, mais apropriada.

Dona Cármen, agora “presidente” (cumpra-se o seu desejo), costuma dar declarações calculadamente fortes, sempre mais políticas que jurídicas, escoradas mais nas suas afinidades ideológicas do que na doutrina. Já afirmou, por exemplo, que o cinismo havia vencido a esperança e que o escárnio vencera o cinismo. Sua mais recente declaração consegue, a um só tempo, revestir-se de cinismo e escarnecer da vontade popular. Dobra-se ao establishment, obedientemente, e revela-se amante da sordidez e do escárnio.

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