Elza e Mané. Ou Elza Soares

Então voltamos às imagens do importante documentário. Eu ia dizer belo, mas suspendi o impulso. É triste e revoltante. Ao vê-lo ontem, várias vezes chorei ou permaneci em discreto e abafado silêncio

Foto: Reprodução

Nas informações sobre o documentário “Elza & Mané – amor em linhas tortas”, a Globoplay anuncia:

“Dois gênios brasileiros. Elza e Mané formaram um dos casais mais famosos do Brasil. Uma relação que combateu preconceitos e foi marcada pelo amor”.

Mas não se enganem. O anúncio é mais que simples, é simplório, porque a série documentário é mais. As imagens flagram o sofrimento de pessoas geniais em entrevistas e filmes da época. Avulta um Brasil mesquinho, conservador, estúpido, que perseguiu Garrincha e Elza por defenderem com atos o legítimo campo do amor. O craque teria abandonado sete filhas para viver com Elza Soares. Da minha infância, eu lembro de ouvir nos rádios o sucesso “Volte pra casa” na voz de Noite Ilustrada:

Isso quando Garrincha era bicampeão de futebol. A condenação era implacável: “Você subiu demais, mas não caia por favor. E não esqueça jamais daquela que o ajudou. A sua verdadeira companheira o suportava quando a sorte o abandonava”. Ele havia de viver sem amor, para conforto da hipocrisia em uma sociedade em que os homens possuíam amantes, massacravam a esposa legal, mas mantinham a família unida. Sob opressão. No entanto, nesse encontro apaixonado entre Garrincha e Elza Soares há matéria e alma para uma canção maior de afeto e paixão para os dois. Retrato neles que é de todos nós.

Destaco agora que a diretora Caroline Zilberman no documentário fez crescer a pessoa de Elza Soares. Em parte, acredito, por ter entrevistas com a cantora viva na ocasião, ou por escolha que se impôs devido à figura trágica de Elza Soares, Mas se olharmos bem, pela conclusão das vidas o trágico foi Mané Garrincha. E recuo da frase, porque não importa aqui a comparação entre Inferno 1 e Inferno 2. Ambos passaram pelo fogo da sociedade brasileira. E, justiça seja feita, Elza, a cantora negra que veio do Planeta Fome, possuía mais características eloquentes da exclusão cruel do Brasil: mulher, negra, miserável, discriminada, oprimida até a infâmia.

Então voltamos às imagens do importante documentário. Eu ia dizer belo, mas suspendi o impulso. É triste e revoltante. Ao vê-lo ontem, várias vezes chorei ou permaneci em discreto e abafado silêncio. Nos personagens ou pessoas que dão depoimentos, os melhores são Chico Buarque, Caetano Veloso e Zeca Camargo. Juca Kfouri também. E os dignos depoimentos dos jogadores Gerson, Afonsinho e Jairzinho.

Foto: Reprodução

Mas faço um parêntese com franqueza: Ruy de Castro poderia ter optado pelo obsequioso silêncio em vários trechos do documentário. Algumas de suas falas causam revolta na gente pelo modo superior com que trata as informações sobre Garrincha. Ele chega ao ponto de retirar o papel de vítima do craque no episódio dos joelhos bombardeados por injeções, para salvar a cara do Botafogo. Está certo, ele é ou foi o biógrafo de Garrincha. Mas para que tamanha “imparcialidade” nas suas falas? Por que insistir nos vários empregos que o maior ponta-direita do mundo jogou fora? Não seria melhor indicar a incrível inadaptação de Garrincha ao mundo? Mas não, até parece que o biógrafo é contra. Para mim, ficou a impressão de Ruy Castro falar: “Ele se fodeu por sua própria culpa!”. O biógrafo livra a cara de todo o mundo para mencionar os empregos perdidos pelo gênio no Instituto Brasileiro do Café, na CBF, etc.etc. Todo o mundo o ajudou, mas ele não se ajudou. Toma! Ainda que nas suas falas haja uma certa verdade, essa obediência aos fatos não cabe na interpretação de um homem que encheu de alegria os estádios de todo o mundo. É muito desprezo superior, a impressão que fica. Eu fico pensando o que seria de um biógrafo que falasse de Cervantes sob a ótica de que o maior gênio da literatura tinha irmãs prostitutas. Olhem… há fatos que, ao serem destacados, deixam de ser verdade. Viram distorção da pessoa.

E ressalto fora do parêntese: para quem quer conhecer o Brasil e sua gente, para quem deseja ver o gênio do povo, o documentário na Globoplay é muito bom. Eu mesmo me lasquei para vê-lo. Desejava-o demais e por isso paguei uma assinatura do canal a débito, porque não tenho mais crédito. Não é sempre assim? Quem pode menos, paga mais.

E vamos ao mais importante destas impressões. Eu penso que na história de Elza Soares e Mané Garrincha existem vários documentários ou mesmo ficções, daquelas de que mais gostamos: a ficção da vida real. Isto é, eles são motivo para uma vigorosa novela sobre amor e paixão. Em mais de um momento, Elza declara o seu amor inesgotável por Garrincha. E o gênio, por sua vez, só queria estar junto da sua negona. Medo talvez de perder o fogo indomável da mulher, que conhecia, para outro homem. E mais os conflitos do álcool, da marvada que venceu a “malvada” companheira. Outro documentário seria somente sobre Garrincha, diferente de tudo que já se filmou até hoje, pois as imagens seriam lidas ou vistas pelo fundo futuro do seu último desfile na escola de samba Mangueira. Que tristeza, meu Deus! Isso não se faz com um homem:

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Por fim, penso num terceiro documentário somente sobre Elza Soares, somente sobre a infâmia da perseguição a um talento, ao gênio de uma mulher, cujos defeitos eram ser negra, mulher, cantora com o desejo de ser livre. Mas que só conseguiu suas asas nas quedas física e pessoal.

O fim do fim: nós não queríamos ter essa tragédia brasileira. Mas Elzas existem e sofrem até hoje.

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