Em busca da redenção da Redentora
Para Bolsonaro, sustentar que tem o apoio das Forças Armadas é uma questão de sobrevivência, pois, em sua situação de crescente isolamento, este é um dos poucos pilares sólidos que ainda lhe dão sustentação.
Publicado 20/07/2020 12:26

A declaração do ministro Gilmar Mendes de que o “Exército está se associando a um genocídio” caiu como uma bomba no meio militar e levou o ministro da Defesa e os comandantes das três armas ao destempero. Para além da aparente indignação por uma suposta ofensa à corporação, está a incômoda associação da imagem das Forças Armadas ao governo Bolsonaro. Não se trata tão somente da desastrosa condução da política sanitária, mas do fracasso do governo em todos os campos. A dissociação se tornou algo impossível, uma vez que o próprio Bolsonaro faz questão de se mostrar ligado aos militares e os militares que o apoiaram e depois assumiram com ele o governo concretizaram tal associação, bem como ao regime de 64.
Para Bolsonaro, sustentar que tem o apoio das Forças Armadas é uma questão de sobrevivência, pois, em sua situação de crescente isolamento, este é um dos poucos pilares sólidos que ainda lhe dão sustentação. Não é mera conivência e interesse por cargos, por sua vez, a relação desses oficiais, ainda que na reserva, com o governo. Existe um pacto político entre os militares governistas e Bolsonaro e as evidências nos levam a crer que tal pacto associa também as Forças Armadas ao governo.
Na posse do general Azevedo, no Ministério da Defesa, Bolsonaro se dirigiu ao general Villas Boas afirmando que “O que já conversamos ficará entre nós. O senhor é um dos responsáveis por eu estar aqui”. Posteriormente, em sua despedida do comando do Exército, foi a vez do general se dirigir a Bolsonaro, agradecendo-lhe por ter libertado o país das “amarras ideológicas”. Para além de demonstrações de simpatia mútua, tais declarações deixavam claro o envolvimento político do General já na campanha eleitoral. O agradecimento, à época, foi interpretado como uma referência à manifestação do Comandante do Exército as vésperas do julgamento do habeas corpus do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, no Supremo Tribunal Federal. Os fatos que se sucederam, em especial os mais recentes, revelam o engajamento do ex-Comandante e de pelo menos um grupo de oficiais tanto na campanha eleitoral quanto na formulação de um projeto de poder que envolvia as Forças Armadas. A se confirmar essa tese, o desconforto que se estabeleceu na caserna não diz respeito somente à militarização do Ministério da Saúde, como tem sido dito, mas principalmente ao fato de que o governo Bolsonaro caminha para um total fracasso e carregará junto o referido projeto, bem como a imagem das três Armas.
A evidência mais forte deste enredo encontraremos em um artigo do general Villas Boas, publicado no Estadão, na véspera da polêmica declaração de Gilmar Mendes. O texto tem o título “Carecemos de um projeto nacional” e, aparentemente, conclama a “todos que integram a sociedade brasileira” a se engajarem nesta empreitada. Não se trata, no entanto, de uma proposição genérica ou de uma proposta em aberto, a ser discutida. O General explicita muito bem, no desenvolvimento de seu raciocínio, a que projeto de nação está se referindo. Afirma ele que “Infelizmente, nossa sociedade se deixou impregnar por esquemas mentais que nos são estranhos, depois de 50 anos em que, a despeito das precariedades, trazíamos conosco um senso de grandeza, aliado a uma ideologia de desenvolvimento e a um sentido de progresso”. Na sequência, deixa claro a que período se referem estes 50 anos a que faz alusão, afirmando que “Infelizmente, a partir de então – anos oitenta – não atentamos a que nós estávamos deixando fracionar, inicialmente por interesses alheios travestidos de ideologias…”. Ou seja, Villas Boas traça um ciclo de 50 anos de formação de um senso de grandeza, e uma ideologia de desenvolvimento com sentido de progresso. Este ciclo, segundo o seu pensamento, seria a base de um o projeto de nação e teve início com a Revolução de 1930, sendo interrompido pela restauração da democracia na década de 80 com o fim do regime militar.
Observe-se que o general Villas Boas e todos os demais ministros de origem militar tiveram a formação de cadetes, na Academia Militar de Agulhas Negras – AMAN, na década de 70. Formados, portanto, na escola da Doutrina de Segurança Nacional e provavelmente tendo como instrutores, militares pertencentes à linha mais dura do regime. Nesta última década, esta geração assume os altos postos de comando do exército e atinge o topo da hierarquia militar. “Coincidentemente”, começaram a surgir tanto manifestações públicas como, internamente, ordens do dia enaltecendo ou defendendo o regime militar.
Ao lermos o artigo de Villas Boas, fica claro que sua proposição de projeto de nação tem por base desenterrar a carcomida Doutrina de Segurança Nacional, retomando o que ele chama de “ideologia de desenvolvimento e sentido de progresso” a partir de sua interrupção com o fim da ditadura. Fica-nos claro também que o que ele chama de “interesses alheios travestidos de ideologia” e “esquemas mentais alheios a nossa natureza” é tudo que se opõe a esta doutrina que nos foi imposta pelo pensamento norte-americano nos anos da Guerra Fria. Trata-se, portanto, de uma proposta de restauração, em outras bases e por outros caminhos, da ditadura militar, e não de um projeto de nação.
Fica-nos claro também o significado da afirmação “O que já conversamos ficará entre nós”. Havia um pacto político de que o governo Bolsonaro seria o instrumento para o restabelecimento do autoritarismo. A existência de tal pacto ficou ainda mais clara no agradecimento de Villas Boas a Bolsonaro, por ter libertado o país das “amarras ideológicas”. Isto está absolutamente explícito no referido artigo.
Estamos, portanto, diante de um grupo de militares ressentidos porque a ditadura acabou quando iniciavam sua carreira militar, tirando-lhes a perspectiva de protagonismo político, já que a democracia os remetia de volta à caserna. Tal grupo, detendo os principais postos de comando do Exército, viu na possibilidade de eleição de Bolsonaro, defensor do regime militar e do obscurantismo, uma oportunidade de resgate da doutrina em que foram formados e de redenção do regime – iniciado pelo golpe Estado a que chamaram de “Revolução Redentora” – enterrado pela democracia.
Porém, ao assumir o governo, Bolsonaro se mostra mais alinhado com um projeto de Estado fundamentalista nos costumes do que com o projeto pactuado com os militares. O setor neoliberal representado por Paulo Guedes também não parece muito simpático ao restabelecimento, ainda que em outras bases, de algo semelhante à doutrina da Guerra Fria. Em síntese, os militares se meteram em uma aventura na qual não há a menor possibilidade de execução de seu projeto. Some-se ainda que as sandices do governo, a sua total incompetência em todos os campos, desmoraliza qualquer um que a ele esteja associado. É com isso que certamente muitos dos que embarcaram nesse barco furado devem estar incomodados. Acrescente-se que uma nova geração de militares, formados na AMAN pós restauração da democracia, estão começando a assumir os altos postos de comando e provavelmente não participaram desse pacto, mas terão que assumir o topo da hierarquia carregando o ônus da aliança firmada por seus antecessores.
Os sintomas são de que o circo, ou melhor, os quartéis, estão pegando fogo. Entendendo esse contexto, entendemos também a razão do destempero de Azevedo e dos três comandantes com a fala de Gilmar Mendes. Entendemos também o propósito do artigo de Villas Boas que, disfarçado de um chamamento à sociedade, é na verdade uma conclamação à unidade da caserna em torno do pacto que está afundando. Desembarcar do governo Bolsonaro seria largar Mourão à própria sorte, considerando que sua aceitação na vice presidência deve ter sido o selamento do pacto. Continuar no governo pode significar uma rebelião da tropa. O retorno de Bolsonaro do isolamento social desautorizando as medidas de Mourão quanto ao meio-ambiente, o que tem grande chance de acontecer, vai azedar ainda mais os ânimos. Os militares ressentidos se meteram em uma enrascada e o preço da aventura poderá lhes custar muito caro. Resta-nos acompanhar os desdobramentos desta situação, que vai se constituindo em mais um elemento da crise de governabilidade.