Em conflitos de interesses, pudor faz falta à democracia

Pudor é discrição, pejo, vergonha, recato e freio que impede que se diga ou faça algo ofensivo à honestidade, à modéstia e, também, à decência e à tolerância inerentes à democracia. Ao pé da letra, pudor é o oposto de ato obsceno.

Fascinada pelas palavras, não encontrei outra mais adequada que falta de pudor para traduzir a má-fé do teor argumentativo dos ''113 cidadãos anti-racistas contra as leis raciais'' (28.4.2008) que apóiam duas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adin) em tramitação no Supremo Tribunal Federal (STF).


Coisa de gente que se ''acha'' o ''Ó do borogodó''. Sem novidades o retorno dos arquitetos do ''Todos são iguais na República democrática'' (30.5.2006), igualmente açoite saudosista da senzala. É mais do mesmo da fé bandida do racismo.


A Adin nº 3.330, contra o ProUni, e a nº 3.197, contra a lei de cotas nos vestibulares das universidades estaduais do Rio de Janeiro, foram impetradas pela Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino, suposto espaço de educadores.


A 3.330 é patrocinada também pelo Partido Democratas, despudorado de nascença, logo contra a democratização da universidade. Trocando em miúdos, são contra a ampliação da diversidade racial/étnica na universidade. ProUni e cotas étnicas são migalhas necessárias à abolição da segregação racial que campeia na universidade desde os primórdios – decorrência da excrescência que é o vestibular, artimanha para encobrir a falta de vagas e a concepção elitista tacanha de que a universidade não é para todos que a desejam.


O alegado mérito do vestibular, subjetivo até o gogó, muda de pele, para atender interesses escusos, conforme as circunstâncias. O vestibular não é a vaca sagrada do mérito. É imoralidade legalizada, cujo mimetismo é o bastante para propor sua extinção. O legal é que é direito de quem concluiu o segundo grau acessar a universidade, caso deseje. E ponto final. É pra lá que vamos.


O ''Manifesto em defesa da justiça e constitucionalidade das cotas'', que apoio, entregue ao STF no último dia 13, diz que são mais de 20 mil cotistas, que o ProUni (2005), destinado a pobres, incluindo negros, em três anos já alocou 440 mil bolsas e que ambos ''significam uma mudança e um compromisso ético do Estado brasileiro na superação de um histórico de exclusão que atinge de forma particular negros e pobres''.


Se inconstitucionais, mas não são, seria hora de revisar a Constituição para acolher a mentalidade de ''um país para todos e todas'' e os compromissos assumidos pelo Brasil nas Nações Unidas, incluindo a III Conferência Mundial contra o Racismo (Durban, 2001), que uma militante-arquiteta do ''Manifesto dos 113'' não tem pudor em dizer que, lá, ''o Brasil modificou radicalmente sua postura frente ao ordenamento jurídico do país. E começou a implementar ações afirmativas (…); no caso de Durban, a conferência fracassou. Ela foi montada para discutir a situação do Oriente Médio, só que israelenses, palestinos e americanos abandonaram a reunião. Já para os brasileiros, o encontro foi incrível (…) E houve aceitação, por parte do nosso governo, das propostas da delegação brasileira'' (''Estado de S.Paulo'', 18.5.2008).


Vociferar que Durban foi ''montada'' para discutir a situação do Oriente Médio e que ProUni e cotas são ''leis raciais'' é desonestidade intelectual incomensurável (Ai, meus sais!). Tenho dito que a Conferêcia de Durban é tida como maldita por racistas de todos os quilates, pessoas e governos, que fazem de conta que ela não existiu ou não valeu. Todavia deixa espumando quem fez carreira estudando negros, arrotando regras sobre nós, e perdeu seu ''objeto'' de pesquisa. E, por tabela, dinheiro. ''Ficar mordida'' era o esperado, mas perder o pudor é extrapolação dos limites da decência e da tolerância democráticas.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
Autor