“Em Paris”: Irresponsável fantasia

Diretor francês, Christophe Honoré, trata das relações amorosas e de pais e filhos com pirotecnia que termina por amenizar a dureza do tema.

A contar as acelerações de cenas, cortes bruscos, longos planos-seqüência, flashesbacks-referência, fala direta ao espectador, diálogos ríspidos, diretos, cheios de palavrões, como se para não deixá-lo desatento, o diretor francês Christophe Honoré pretendia com seu filme, “Em Paris”, tirar o cinema moderno da masmorra. Para reforçar essa intenção, usa ao longo do filme inúmeras referências a cineastas da Nouvelle Vague, tal um enciclopedista, demonstrando seu enorme conhecimento cinematográfico. Às vezes o espectador pensa que assiste a várias cenas de filmes de Truffaut, Godard e Demy, quando na verdade se trata apenas de homenagens bem alinhadas. Uma prática comum aos cineastas que referenciam aos que admiram, repetindo seqüências das principais criações deles em suas obras. O que não se constitui em nenhuma novidade. O “Cinema Novo”, no Brasil, a própria Nouvelle Vague e o Novo Cinema Alemão, entre outros,  também o fizeram.


 


Daí não se ver o porquê de tanta reverência a “Em Paris”. As mencionadas citações terminam por atenuar a seriedade do tema central do filme, ou seja, as relações entre pais e filhos, entre irmãos e de gênero nestes “tempos tecnológicos”. É como se Honoré, diante da aridez do conteúdo, evitasse o tratamento direto dessas relações, para não chocar o espectador. Muitas vezes a ação está centrada em Paul (Romain Duris), largado numa cama, indisposto, deprimido, e logo Honoré a desvia para Jonathan (Louis Garrel), solto nas ruas de Paris. Sai-se da depressão e entra-se na fuga, na projeção do que poderia ser a vida. Então, Jonathan dança, pula, corre, por um cenário de sonhos. É possível viver a vida, em meio à depressão, a falta de perspectiva de retomada do amor. Uma referência a “Os Guardas Chuvas do Amor”, de Jacques Demy (1932/1984), que falava de um tema caro aos franceses: o amor em meio à Guerra da Argélia.


 


 


Diretor homenageia cineasta Jacques Demy


 


 


O cenário deslumbrante, de fantasia, quebra o encantamento diante possibilidade de se morrer no estrangeiro. Nino Castellnuovo iria deixar Catherine Deneuve para lutar na Argélia; ambos cantam, em seqüências operísticas, para escapar ao tormento de discutir o que seria a vida sem o outro. E o público certamente vê o canto como projeção da relação a dois, espécie de fuga de uma decisão drástica. “Em Paris”, de Honoré, a projeção está solta na irresponsabilidade de Jonathan, cuja maior transgressão é escapar à aula e mergulhar nos braços das inúmeras garotas que atravessam seu caminho, para desgosto do pai Mirko (Guy Marchand), que está sempre a adverti-lo. Uma amena irresponsabilidade tão ao gosto de jovens dos anos 50, destoante do que viria depois. Sonho sem dúvida de Honoré, uma vez que, passados os anos 60, vive-se hoje um rescaldo daqueles anos, com total desencanto.



 


Só o cinema pode reverenciar àqueles anos, chamados “Anos Dourados”, que de cor-de-rosa não nada tinha, dados os conflitos advindos da Guerra Fria, com a Guerra da Coréia, a derrocada francesa no Vietnã e o início da corrida espacial que desandou numa competição armamentista, cujos contornos permanecem indefinidos. E é essa a intenção de Honoré ao contrapor ás agruras de Paul o descompromisso de Jonathan, ainda que a ação transcorra nos tempos atuais. E o faz usando o próprio cinema, embora as pirotecnias atenuem as contraposições que ficariam mais evidentes sem quebra de continuidade. Mas é este justamente o objetivo de Honoré: quer montar uma série de contextos, sem demorar-se neles demasiadamente.



 


Canto e dança atenuam crueza da vida moderna


 


 


Para isto usa a narração direta, o comentário de Jonathan, a referência a outros filmes, que não contribuem para aprofundar as indecisões e dores do irmão. Honoré o enfatiza ao se desviar para o próprio Paul, que entrou em depressão após brusco rompimento com a mulher Anna (Joana Preiss). Ou mesmo em seus momentos de indecisão, quando fotografa a esmo, captando instantes fugazes com sua câmera, tentando eternizar instantes de sua relação com Anna. Ou não sabendo como tratar seus sentimentos em relação a ela, termina por irritá-la. Ela, porém, enfrenta-o usando seus encantos femininos, sensuais, desafiando sua indiferença. Mas, por sua vez, sente-se tolhida em seus sentimentos por ele não se revelar. E Honoré os configura, fazendo-os dançar e cantar. Trata-se, na verdade, de um jogo bem encenado, em que as aparências se reforçam em lugar do real, pois há sempre uma fuga em meio à ação.                


 


 


Pode parecer, à primeira vista, que se trata de um recurso genial. Mas já o fazia o musical hollywoodiano, que transformava um envolvimento real numa seqüência de dança, de sapateado, para melhor o retratar. Recurso por vezes interessante, quando não repetitivo. Assim, escamoteia a incapacidade de Paul de extravasar seus sentimentos, derramar sua paixão e se declarar para a amada. Sofre por isto. Este comportamento, no entanto, está de acordo com estes “tempos tecnológicos”, em que o ser humano vale quanto consome. E Paul, pelo contrário, nada quer consumir, quer apenas entregar-se à dor, enquanto Jonathan em nada se apega. Perambula por camas e corpos e marca encontros aos quais não pretende comparecer. Talvez no comportamento de ambos haja uma síntese da juventude atual: existe muito presente e nenhuma idéia sobre o futuro.


 


 


Inconsistência amorosa é sinal dos tempos atuais


                  


 


Nisto consiste a validade do filme de Honoré. “Em Paris”, malgrada a pirotecnia que tanto agrada há alguns críticos, consegue ir fundo neste tema. A incapacidade de Paul e a inconseqüência de Jonathan fecham o quadro. Ambos carecem de contradições com o entorno, o lugar onde vivem. A referência de Jonathan é o centro de consumo, onde espera tirar Paul da depressão. Uma fuga, portanto, mas de acordo com o senso classe média, que se deleita nos fins de semana com vitrines e diminutas mesas, onde consome batata frita e Coca-Cola. E têm relações fugazes com garotas que os sustentam e depois querem o dinheiro gasto de volta, caso de Alice (Alice Butaud), ex-namorada de Jonathan, a quem ele nada promete, numa demonstração da superficialidade das relações amorosas atuais. Não muito diferentes das mantidas por seus pais, que ao se encontrar não conseguem trocar palavras sem descambar para a agressão pura e simples.



 


Uma forma de perguntar o que são as relações amorosas, afinal, se o amor pode se transformar num sentimento inconsistente, de negação da possibilidade de entendimento, de aceitação do outro, ou se quiser, de paz, para não entrar na questão do amor. Daí pode-se dar razão a Jonathan, com seu descompromisso, e ver o quanto Paul está fora dos novos tempos. E enxergar no pai um fracasso porque não conseguiu manter a relação com a mulher, que deixou a seu cargo a criação dos filhos. Aqui não é o marido que se foi, mas a mulher que saiu em busca de um novo parceiro. E ela que, no início, era apenas uma referência se transforma num ser real. O que se vê na primeira parte do filme é Mirko se esmerando para dar conta das agruras dos filhos, sem entender o que se passa com eles. Normalmente isto se daria com a mulher, Honoré, pelo contrário, inverte os papéis e põe o espectador a imaginar o que seria se fosse como ele lhe mostra.



 


Mirko usa filhos para encobrir suas carências


 


A mãe (Marie-France Pisier) surge de repente, e mostra-se envolvente, capaz de dialogar com Paul, coisa que Mirko não consegue. De novo a evasão, ela não precisa mostrar-se mais, sua ausência torna-a tão descompromissada quanto Jonathan com suas garotas. Está ali por estar, não que tenha vindo em socorro do filho. As desventuras, os cuidados, a paciência cabem ao pai, Mirko, substituto da figura materna: ela simplesmente os havia abandonado por outro. A ele, Mirko, então, cabe cuidar da casa, cozinhar, ser carinhoso com os filhos e contornar os males do amor que os acomete de quando em quando. Mesmo com todo este peso, Honoré não o poupa. Ele é um ser amargurado; usa os filhos para encobrir suas carências, que afloram quando está ao lado da ex-mulher, e ela, ao querer ajudá-lo, termina por irritá-lo. Então, se eles, já na meia idade, não se entendem, que dirá os filhos com seus casos e descasos.



 


Este retrato nada lisonjeiro da classe média francesa serve para suas congêneres mundo afora, inclusive a do Terceiro Mundo. Não há saída à vista. Honoré, à moda de Truffaut, atenua o impacto do fracasso amoroso, com uma fantasia. Vem a ser o poder ser ou não ser, ou seja, foi uma projeção de Paul ou seu retorno à vida. O recurso usado, noutra referência à Demy, é a canção, o ritual do amor que se enleva. Único momento no filme em que ele, o recurso, se justifica. Fica criativo e mostra o quanto Paul esteve afastado de Anna, que o  espera se revelar. E, de novo, Honoré lança mão dos truques da comédia, a exemplo de Billy Wilder, em “O Pecado Mora ao Lado”, retornando ao início do filme e pondo em dúvida se Paul realmente se reencontrará com Anna ou irá mergulhar com o irmão numa relação a três com Alice e Jonathan.


 


Richard Lester usou mesmo recursos com eficiência



 


É amoral, mas plenamente justificável e sintonizado com o espírito do filme. Afinal, tudo em “Em Paris” não é mostrado para ser reafirmado, pelo contrário, é tão só para apontar possibilidades, como se Jonathan, “o narrador”, advertisse: poderia ter terminado assim. Tem muito de “A Bossa da Conquista”, do inglês Richard Lester, que traduziu bem o clima dos anos 60, com a pressa da juventude e a necessidade de viver tudo num minuto. Este sim, usava uma técnica que momento algum oscilava entre a linguagem clássica e a pirotecnia. Modernizou a linguagem cinematográfica, antecipando, em muito, o que se vê hoje nos videoclipes, reutilizado em inúmeros filmes modernosos, que se passam como avançados. A linguagem, os recursos, os efeitos, não devem, e não devem ofuscar o conteúdo, que é, enfim, o que justifica a existência de uma obra. Honoré, com “Em Paris”, embora dê conta do recado, deixa as inúmeras referências amenizar o impacto das contradições da juventude classe média.  E apela desta maneira para uma fantasia que não passa de escapismo: vamos fazer de conta que seja assim.


 



“Em Paris” (Dans Paris). Drama. França/Portugal. 2006. 92 minutos. Roteiro/Direção: Christophe Honoré. Elenco: Romain Duris, Louis Garrel, Joana Preiss, Guy Marchand, Marie-France Pisier, Alice Butaud.

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