Estados Unidos, o Sul Global e a Ordem Mundial
Quando as mercadorias não cruzam fronteiras, os soldados o farão” disse o economista liberal francês do século XIX, Frederic Bastiat.
Publicado 25/04/2025 08:10 | Editado 24/04/2025 22:48

A guerra comercial para a qual o presidente dos Estados Unidos ameaça arrastar o mundo não é apenas uma grave ameaça para a ordem econômica mundial vigente, mas pode ter consequências ainda mais graves, colocando em risco a própria paz mundial. “Quando as mercadorias não cruzam fronteiras, os soldados o farão” disse o economista liberal francês do século XIX, Frederic Bastiat. De certa forma foi isso que ocorreu na década de 1930, quando a guerra comercial promovida pelos Estados Unidos por meio de Lei Smoot-Hawley foi considerada por muitos um dos fatores que contribuíram para criar o ambiente que levou à Segunda Guerra Mundial.
A guerra comercial a ser iniciada não tem como objetivo apenas barganhar acordos comerciais com os seus parceiros em posição vantajosa, mas pretende alterar a própria ordem econômica global e a posição que os Estados Unidos ocupam nela. Estamos assistindo a uma transição forçada de um sistema de integração econômica controlada baseado em regras para um sistema de desacoplamento forçado, fragmentação caótica e isolacionismo.
“A interdependência econômica, outrora a pedra angular da prosperidade global, agora se tornou uma fonte de tensão. Se essa tendência continuar, a interconexão pode acabar se tornando uma vulnerabilidade, mesmo para países que há muito florescem sob a globalização. Guerras comerciais, tarifas e sanções foram transformadas de ferramentas econômicas em armas em uma luta mais ampla por domínio, fomentando uma atmosfera de suspeita e desconfiança que está corroendo as bases da cooperação internacional. Países que há muito viam os outros como parceiros ou concorrentes em um mercado global agora veem apenas adversários ou representantes em uma disputa global por influência e domínio”[1].
No que isso vai dar é difícil prever, mesmo porque os riscos que essa escalada tarifária representa para importantes setores da economia dos Estados Unidos pode levar o presidente norte-americano a ser obrigado a recuar, embora, até o momento, ele não demonstre nenhuma intenção de fazê-lo, apesar das críticas de setores importantes que o apoiaram nas eleições como os agricultores norte-americanos.
É fato que a ordem atual é considerada obsoleta até mesmo pelos países em desenvolvimento, entre eles a China e o Brasil, mas mesmo esses países são cuidadosos quando falam em mudanças no sistema, preferindo falar em reformas na ordem atual a mencionar substituição por uma nova ordem que ninguém sabe exatamente o que seria.
Muitas das normas da ordem atual são obsoletas e facilmente abusadas pelos poderosos, mas outras garantiram o sistema multilateral que permitiu a muitos países em desenvolvimento alcançar a prosperidade. O fato é que sob a ordem atual, baseada em regras, muitos países logram se desenvolver, a começar pelos países da Europa, Japão, os chamados Tigres Asiáticos e, mais recentemente, a China. Mesmo países subdesenvolvidos do chamado Sul Global, entre eles o Brasil, conseguiram atingir estágios de renda média alta embora tenham ficado presos na chamada “armadilha da renda média”.
A criação de organizações internacionais baseadas no princípio de “um país, um voto” como no caso do Organização Mundial do Comércio (OMC) deu aos países em desenvolvimento uma voz que não tinham antes. O fato, por exemplo, de o PIB conjunto dos BRICS ser, hoje, maior que o do G7 é fruto dessa ordem que os Estados Unidos querem agora destruir.
Sob a nova ordem, imaginada pelo presidente americano, passa a valer a velha máxima de que “os fortes fazem o que podem, e os fracos sofrem o que devem”, conforme famosa passagem da obra do historiador grego Tucídides sobre a Guerra do Peloponeso. Além de trazer uma instabilidade sem precedentes sobre o sistema internacional, transformando a indústria bélica no carro-chefe da economia global, essa nova ordem tenderá a aprofundar o fosso entre países ricos e países pobres, condenando bilhões de pessoas a uma vida miserável. O corte da ajuda humanitária, bem como a saída dos Estados Unidos de organizações multilaterais como a OMS e o Acordo de Paris terão consequências concretas que poderão ser contabilizadas no futuro em termos de milhões de vidas perdidas.
A ideia aparente de Trump de transformar as relações internacionais em um jogo entre grandes potências não vai funcionar pelo simples fato de que os Estados Unidos, ao contrário do que ocorreu ao final da Segunda Guerra, não têm mais o poder econômico, militar e muito menos moral para impor qualquer solução que o mantenham no topo da cadeia de poder mundial, ditando regras para o resto do mundo, como Trump aparentemente pretende. A política de grandes potências já levou o mundo a duas guerras mundiais e, como diz o ditado, “o cúmulo da idiotice é fazer repetidamente as mesmas coisas, esperando resultado diferente”.
Mesmo os países em desenvolvimento, ainda que não dispondo de poder militar com que possam confrontar os Estados Unidos, estão muito menos dependentes da economia norte-americana e do sistema financeiro global capitaneado pelos bancos e fundos de investimento americanos. O surgimento de novos arranjos de cooperação internacional, como o BRICS, sem a participação dos Estados Unidos, mostra que uma outra ordem internacional não submetida aos ditames dos Estados Unidos também é possível.
A América Latina está particularmente vulnerável neste momento. Frente às ameaças generalizadas do governo Trump de punir qualquer país, aliado ou não, que na sua opinião esteja prejudicando os Estados Unidos, seja pela imposição de tarifas de importação elevadas para as mercadorias produzidas nos Estados Unidos, seja não tomando medidas para impedir a imigração ilegal ou contrabando de drogas, nomeadamente o fentanil que se tornou um grave problema se saúde pública nos Estados Unidos, os países da América Latina, nomeadamente da América Central e Caribe, são os que estão em posição mais frágil e vulnerável.
O caso recente da Colômbia, que ao se recusar a receber voos militares com deportados dos Estados Unidos foi ameaçada de forma exemplar com tarifas punitivas sobre suas exportações, sendo obrigada a recuar pelo receio do impacto negativo sobre a sua economia, mostra que a América Latina, diferentemente de Canadá, União Europeia ou a China, que têm como se defender ou pelo menos retaliar, está em posição mais difícil, principalmente aqueles países altamente dependentes do mercado norte-americano para suas exportações de produtos primários.
A bem da verdade, a situação poderia ser pior. Segundo dados do Council on Foreign Relations, centro de estudos com sede em Nova York, o mercado da China representava menos de 2% das exportações da América Latina, em 2000, mas cresceu a uma taxa média anual de 31% nos oito anos seguintes. Em 2021, o comércio ultrapassou US$ 450 bilhões e economistas dizem que as cifras podem chegar a US$ 700 bilhões, em 2035.
O complexo portuário de Chancay, no Peru, construído pela China, interligando China e América Latina, inaugurado em novembro de 2024, será, em alguns anos, o maior porto comercial da América do Sul. Situado a cerca de 70 km ao norte da capital peruana, Lima, é um projeto gigantesco, liderado pela companhia marítima estatal chinesa Cosco Shipping Company e com investimentos totais estimados em US$ 3,4 bilhões. Com o complexo portuário de Chancay aumenta a capacidade de transporte dos produtos exportados da região, principalmente minérios, como lítio e cobre, e produtos agrícolas, como a soja para a China e outros mercados na Ásia. O grande calado da baía de Chancay confere ao porto capacidade de receber os maiores navios do mundo, que podem transportar até 24 mil contêineres.
A recente derrota do trumpismo para eleição do secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), em que Brasil e outros países da América Latina conseguiram fazer com que o Paraguai desistisse de indicar seu chanceler como secretário-geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), visto como um representante do trumpismo, apoiando o nome do Suriname, mostra que quando os países da região se articulam é possível resistir às pressões dos Estados Unidos de maneira mais efetiva. É preciso registrar, portanto, que o grau de estrago que as novas políticas do presidente americano irão fazer na economia mundial depende também da capacidade de resposta dos demais países. Unidos, os países do Sul Global são uma força poderosa que pode contribuir para evitar que o sistema global regrida para a situação que prevalecia antes da Segunda Guerra Mundial.
[1] Awar Ibrahim. The Global South Paths to Economic Resilience. Project Syndicate. Disponível em: <https://www.project-syndicate.org/onpoint/what-global-south-middle-and-emerging-powers-want-by-anwar-ibrahim-2025-03>