“Falsa Loura”: amargas fantasias

O universo das jovens operárias e suas fantasias são tratados pelo diretor paulistano, Carlos Reichenbach em filme sobre a vida na periferia de São Paulo

Uma das vantagens de “Falsa Loura”, do paulistano Carlos Reichenbach, é escapar ao ciclo do “filme de favela”, predominante na atual cinematografia nacional. Embora ambientado na periferia de São Paulo, tendo a classe trabalhadora como personagem, não a mostra tomada pela marginalidade e o tráfico. Ali há outro tipo de submundo, misterioso, que trafega entre a legalidade e a ação escusa, que interfere no cotidiano das moças e rapazes que a habitam, mas com ele não se entrelaça a ponto de controlar totalmente suas vidas. Inexiste, portanto, a estética noir, tomada por sombras, drogas, cadáveres, metralhadoras e agonia infindável dos miseráveis habitantes dos conglomerados de morros e mangues, vistos em inúmeros filmes, desde que o ciclo surgiu com “Cidade de Deus”. Na periferia de “Falsa Loura” predominam os trabalhadores com suas fantasias, labutas, frustrações, vitórias.
                   


 


 


Logo na bela abertura, Silmara (Rosanne Mulholland), operária metalúrgica, surge dançando com a professora Regina (Luciana Brites), tendo ao fundo o conglomerado de apartamentos populares, casas e sobrados em eterna construção. É como se ele, o diretor, situasse, sem outras intenções, o lugar onde se dará a ação, centrada na miserável vida da jovem, de seu pai Antero (João Bourbonnais) e de seu irmão cabeleireiro Té (Léo Aguilar). Um cotidiano de poucas palavras, solidão e raras perspectivas, para além da fábrica, da casa de paredes, portas e móveis carcomidos. Deste universo, Silmara foge projetando fantasias sobre experiência amorosa, conhecimento do mundo e perspectivas de futuro.


 


 


Filme trata do universo das jovens operárias


 


 


Agressiva, arrogante e mandona, mesmo assim atrai simpatia das amigas do trabalho e da vizinhança. Todos querem ouvi-la e rodeá-la. Personagem difícil convivência, ela se relaciona bem com o pai e o irmão gay, criando uma zona de interesse sobre o que, afinal, lhe acontecerá. Reichenbach, ao construí-la desta forma, abre um leque de possibilidades. Dentre elas, a de Silmara dar-se bem num espaço onde a ousadia e a petulância às vezes se impõem ou mesmo desnudar suas fragilidades e sua incapacidade de  relacionar-se a contento com outras pessoas. Ele, o diretor, no entanto, envereda por outros caminhos, discutindo o universo que as camadas populares constroem. Da relação com seu ídolo, a disputa de um par, o ciúme por não sair vencedora, ao temor de ficar sozinha numa mesa, sem ter com quem dançar.
                 


 


O faz nas sequencias em que Silmara, amigas e amigos estão no clube popular onde se apresenta o ídolo pop das jovens operárias, Bruno André (Cauã Raymond), que a corteja, para inveja de suas companheiras. Ali, no clube, rolam todos os tipos de linguagens, fantasias, gestos, encontros e desencontros. E Silmara tem a chance de deixar as amigas para trás, provando sua ousadia, espécie de vitória sobre a falta de coragem das outras. Esta aparente compensação, mostrada por  Reichenbach, na primeira parte do filme, atesta mais as fragilidades de Silmara, que sua competência em  atrair para seu campo o objeto de desejo de outras tantas garotas iguais a ela.


 


 


Cinema de Reichenbach não é de redenção


 


 


Isto porque o cinema de Reichenbach não é o da redenção, do encontro, das saídas engenhosas em que os personagens se superam. Nele, o que parece estruturado, forte, é apenas parte de uma gama de trincas, deslizes, inexperiência, despreparo para ver adiante. Tal é o mundo de Silmara. Jovem, ela desconhece as armadilhas de estar com Bruno André, dominado por relações fugazes, drogas, facilidades dada à sua posição de ídolo. Sua ousadia, arrogância e desprendimento, pouco valem neste espaço. Ainda mais que oscila entre a fábrica, onde tem de manter o emprego, e a família, necessários a um equilíbrio de difícil manutenção. Antero, sempre misterioso, tem sempre um trabalho distante a fazer. E, às vezes, ao voltar para casa o encontra reunido com figuras estranhas, que a tornam desconfiada. Esta dualidade que enriquece o filme; aponta também o despreparo dela para a vida real.


 


 


Numa das seqüências que elucidam seu caráter, ela sonha com seu outro ídolo, o cantor brega Luís Ronaldo (Maurício Mattar). Ele canta só para ela, a enlaça, caminha por um cenário de fantasia. E logo é chamada para o mundo real, o de Bruno André. Um mundo dominado pelas sombras, artimanhas, falsidades, emoldurado pelo silencioso movimento de ondas que se atira contra as rochas; revoltas, belas às vezes, fantasmagóricas, na maioria delas. Há sempre algo incompleto em suas relações, reforçado pelas subtramas montadas por Reichenbach. Espécie de contraponto às suas fantasias. Descobre que nada é para seu ídolo pop, iguais a ela existem outras e outras e outras.


 


 


Silmara não consegue escapar às armadilhas


 


 


Não difere dos inúmeros casos das que habitaram traillers, quartos de hotéis e fazendas nos anos 60 e 70, época das grandes bandas de rock, que o guitarrista Keith Richards desanca sem pudor em uma de suas entrevistas. São usadas apenas para relaxar as tensões, e ela, Silmara, acredita estar realizando um de seus sonhos. O impacto desta descoberta é um dos pontos fortes de “Falsa Loura”. Dessas ilusões brotam outras subtramas, uma delas remete à situação idêntica, com consequencias ainda mais devastadoras. Silmara consegue enxergar a armadilha, porém, não é ardilosa o suficiente para de ela escapar. Reichenbach pontua suas fraquezas rodeando-a com dinheiro, muito dinheiro, que ela mal supõe de onde vem.


 


 


O poder nefasto do capital agindo aqui não para criar riqueza, gerar outras ambições, só para ampliar o consumo e a gastança. Reichenbach o exemplifica pela forma como Silmara gasta o recebido de seu pai, Antero, as negativas que dá a Bruno André e, depois, a sedução exercida pela moeda no envelope recebido de Luís Ronaldo. Em instante algum, o dinheiro veio de fontes limpas, se é que nas transações do capital existe alguma totalmente isenta de obscuridade ou livre de usura ou dividendo. Há, por outro lado, um preço pelo serviço prestado. Silmara perambula entre um dado e outro, sem compreender o que realmente acontece. É um grande personagem, feito de forma inconclusa pela novata Mulholland, que oscila entre a ignorância da natureza humana e a vontade de que seus ídolos se adequem às suas fantasias. Quanto mais rechaça as armadilhas, mais se sente atraída por elas.


 


 


Dinheiro no filme tem função de  corromper


 


 


Em muito se assemelha à fugidia Aida, de “A Moça com a Valise”, sempre às voltas com o dinheiro que lhe é oferecido, sem ter condições de negar sua validade. O diretor italiano Valério Zurlini faz com seu ela tenha necessidade dele, sem, no entanto, poder usá-lo, em razão de seus temores éticos e morais. Silmara tenta conservar seus valores num mundo mais conturbado do que aqueles dos anos 60, sem lograr seu intento. Todos em sua volta se veem na obrigação de pagá-la, enquanto ela quer tão só retribuição por seus sonhos, forma de compensar o limitado espaço em que vive. Mas, ao contrário de Aida, ela não quer ser cantora, um futuro nas alturas ou construir algo duradouro, seu limite está circunscrito a convencia com  seus ídolos, não em projeções, mas na realidade. Coisa difícil de acontecer tal o caráter de ambos. Crítica sem dúvida aos ídolos fugazes que procuram viver intensamente em todas as áreas possíveis antes que o sol se recolha.


 


 


Para reforçá-la, Reichenbach se vale da citação de John Ford, em “O Homem que Matou o Fascínora”: “Quando a lenda é mais forte do que a realidade,  reforça-se a lenda” (*). A lenda aqui é mais a imaginação de Silmara que as retribuições de suas estripulias com seus ídolos. Sua especialidade, falação, acaba por deixar-lhe um gosto amargo na boca. Principalmente pelas confusas e misteriosas ações do pai e das submersas vinculações do irmão com o submundo, que se entrelaçam com as de Antero, formando um círculo, cujas ligações, Reichenbach deixa a cargo do espectador. Inclusive uma ponta em que ele, diretor, aparece tentando ser gentil com um paraplégico, acabando por tratar o pobre homem indelicadamente. Tal são as aparências no mundo atual. Reforça-o a frustração de Silmara, num chocante final, digno de figurar numa antologia de grandes encerramentos de filme.


 


 


Mistérios terminam por não serem elucidados


 


 


É então que ela, defenestrada de sua arrogância, emerge com todo o impacto, trazendo para a tela e o espectador uma gama de sentidos e conteúdos. Difícil não ser tocado pelo rosto convulso da jovem operária, largada, solitária em meio à multidão, caminhando rumo ao nada. Inútil, nos diz Reichenbach, tentar fugir ao espectro do cotidiano sem estar dotado de malícia e compreensão e disposto a enfrentar as armadilhas como elas se lhes apresentam, cheias de luzes, beleza, delicadeza e, sobretudo, dinheiro. A sedução pode ser tanta que se entrega além do corpo a moral e a ética. “Falsa Loura”, com esta constatação, supera inclusive falhas no roteiro e na condução da história. Salvo por Silmara, personagens importantes para a trama, carecem de profundidade, para reforçar seu caráter e fragilidades.


 


 


A subtrama principal, a do pai, é tão cheia de mistérios que se fica com a impressão de que a ambigüidade como é apresentada ainda que atraia fica a desejar. E embora termine por fechar todo um círculo, a partir das relações de Antero com o advogado Vargas (Júlio Machado), restam espaços a preencher. Principalmente, porque Reichenbach privilegia, ao contrário dos “filmes de favela”, o chamado crime de alta classe. Os vilões em “Falsa Loura” são engravatados, têm formação superior e freqüentam espaços nobres. Uma simples citação do nome do chefão, logo a polícia se distancia. De qualquer forma, o eixo central termina por suplantar esta carência. Principalmente, vale repetir, pela conclusão das andanças de Silmara e sua derrocada, que, em tempo, pode ser uma forma de resgate, ainda que eivado de fraturas e frustrações. Um filme a se ver com carinho.


 


 


“Falsa Loura”. Drama. Brasil. 2008. 97 minutos. Roteiro/direção: Carlos Reichenbach. Elenco: Rosanne Mulholland, Cauã Raymond, Maurício Mattar, João Bourbonnais.


 


 


(*) A frase dita no filme é, em termos gerais, esta: “Quando a lenda supera a realidade, publica-se a lenda”.

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