“Flores do Amanhã”:Reflexo da Nova China

A simples história do pai artista plástico que tenta impor ao filho seu sonho, segundo o diretor chinês Zhang Yang,  termina por revelar os conflitos entre a antiga e a nova China.


 

Em meio à enxurrada de filmes rasos, sem complexidade que dominam as telas brasileiras, ver “Flores do Amanhã”, do chinês Zhang Yang (Banhos) é gratificante. Aparentemente, ele trata do conflito entre o pai, Gengnian (Haiying Sun), e seu filho de 9 anos Xiangyang (Zhang Fan) ao longo de duas décadas, mas, na verdade, Yang traça um painel da China nos últimos 30 anos. O faz de maneira sutil, usando a relação Gengnian/Xiangyang para mostrar o processo de mudanças nas estruturas política, econômica e social. Há, desde o motivo de sua prisão durante a Revolução Cultural, por ser um artista plástico voltado para o retrato, o particular, não o coletivo, sua libertação após a morte de Mao Tsé Tung, a prisão do Bando dos Quatro e, finalmente, a época Deng Xiao Ping. E, para não escapar ao período atual, trata das radicais transformações urbanas e comportamentais geradas pelo socialismo ao estilo chinês.



              
Esta complexidade, enfeixada num filme de 129 minutos, requer uma carpintaria de roteiro, cenografia, fotografia e direção leve, em que a reflexão está mesclada à reflexão. Yang e seu roteirista Ca Xiang Jun equilibram-no de tal forma que mal se percebe que por trás do autoritarismo de Gengnian está uma crítica à introdução do consumismo e do individualismo na China Moderna. Gengian, embora critique o tratamento que lhe foi reservado na prisão, não é adepto do novo modelo. Sinal de que há profundas fraturas em sua implantação. Mas Yang não leva esta crítica ao paroxismo, prefere centrá-la nas reprimendas aplicadas por Gengnian ao filho Xiangyang, quando este, ao invés de ir à escola, adere ao grupo de jovens que vendem produtos às margens do rio. Ou em sua resistência à maneira como a mulher Xiuqing (a chino-americana Joan Chen) tenta obter uma casa do governo provincial, levando presentes à principal autoridade do setor de habitação.


 


             
Habitação particular substitui a comunal


             


Não lhe escapa tampouco os métodos usados por seu amigo Liu (Zifeng Liu) para transferir para ele o imóvel que obteve. Ele recusa sua ajuda, mesmo contrariando Xiuqing, que luta desesperadamente para ter uma casa e deixar a milenar habitação comunal chinesa. E ele convive com suas lembranças, seus sonhos, suas projeções em meio às demolições constantes que levam seu passado e soterram seu presente. A cada dia as construções comunais são demolidas para, em seu lugar, surgirem novas habitações, modernas, símbolos da nova China. Aos poucos, ele fica para trás com seu amigo Liu, como representações de uma época de grandes transformações políticas, mas não materiais suficientes para atender às necessidades dos milhões de trabalhadores chineses.


 



              
Esta dualidade entre a crítica às rápidas transformações materiais e ao arraigado sentimento de perda que acomete Gengnian, permite a Yang não tomar partido frontalmente. O jovem Xiangyang, nas várias etapas de sua vida (9 anos, Zhang Fan, 19 anos, Ge Gao, e 30 anos, Wang Haidi), é pura representação dessa nova China.


 


Ele tenta escapar ao autoritarismo do pai, que o quer continuador de seu sonho de ser artista plástico, e busca seu próprio caminho. Oscila entre o trabalho ambulante, a paixão pela jovem Yu Hong e o desejo de morar num grande centro econômico chinês, onde poderia ganhar dinheiro e construir sua vida. O que predomina em todo o filme, porém, é seu antagonismo com  Gengnian. Este não o deixa crescer à sua maneira, exercer sua liberdade de criança ou adolescente e construir sua própria vida. O submete a castigos, obrigando-o a desenhar e seguir sua orientação sem direito a contestar.


 


             
Eterna luta entre o velho e novo


 


              
Numa seqüência crucial para se entender o que Yang realmente quer com suas “Flores da Manhã” – e não apenas mostrar o conflito pai/filho; Gengnian pune Xiangyang por tê-lo desobedecido. Ele quer brincar, o pai o obriga a desenhar; ele diz que quer ir ao banheiro e, ante a recusa, o faz nas calças. Os castigos evoluem à medida que ele cresce, chega ao ápice em duas outras seqüências, paradigmáticas da situação atual da China; I – Sua fuga com Yu Hong  e um amigo. O pai o retira à força do trem; II – Sua fuga de casa, depois de briga com o pai e a mãe. Entende-se que Yang procura revelar que a sociedade está presa, tentando forçar uma nova etapa. No que poderia se traduzir numa reação, uma representação de um segmento social insatisfeito com os rumos adotados pelo atual governo chinês.



           
Nesta segunda seqüência, trabalhada como cena de perseguição em pleno rio gelado, comprimindo espaço e tempo, Xiangyang foge em meio ao gelo, perseguido por Gengnian. É o ponto em que o choque entre o velho e o novo se dá. Gengnian se vê numa situação em que depende de  Xiangyang para sobreviver. O público pode entender que se trata de acerto de contas entre pai e filho, mas é, no entanto, uma reflexão de Yang sobre a necessidade de a Velha China ser absorvida pela Nova China. Um depende do outro para sobreviver. Yang vai além, aponta que esta conciliação não atenua o autoritarismo de Gengnian e, tampouco, a busca de caminho próprio por Xiangyang. Em meio a esta dualidade, Yang acrescenta situações irresolvidas, iguais às da época da Revolução Cultural. Revela que muitas feridas ainda estão abertas e que será difícil cicatrizá-las.


 


          
Escombros servem para erguer nova China


        
 


Liu e Gengnian são pintores e amigos. Vivem jogando dama e ajudando-se mutuamente. Durante uma discussão entre uma mulher que pegou a roupa de Xiuqing e Liu, ela denuncia-o como delator. Liu admite que denunciou Gengnian, durante a Revolução Cultural, período em que Mao procurou substituir a estrutura pequeno-burguesa que dominava pontos estratégicos do país pelos Guardas Vermelhos e novos quadros partidários, mas diz que foi pressionado. A amizade entre ambos termina ali.


 


Continuam a se ver, jogar dama, mas sem se falar. Mesmo que, à medida que a habitação comunal vai se esvaziando devido à mudança para as novas moradias, fiquem cada vez mais sós. As mudanças não soterraram as divergências, nem os modos de levar adiante o processo de transformações sociais rumo ao socialismo. Restam contas a ajustar, mas que também, ao longo do tempo, vão se revelando sem sentido, por mais que tenham sido trágicas.



           


Yang parece nostálgico de uma China em que a paisagem era povoada pelas tradições, as práticas esportivas, a convivência comunal. Ele dá dimensão à vida de Gengnian à medida que ele envelhece. O velho artista plástico volta a pintar, fazendo esboços da China que se esvai sob os escombros da que surge simbolizada pelos espigões, casas individuais e obras e demolições e obras e demolições. De seu tempo restam apenas os gatos velhos e gordos, que, devagar, perdem espaço para os gatos magros e lépidos. E ele mesmo vive, com Liu, na habitação comunal, deserta, sem vida, cheia de mato. Sinal de que Yang acredita que não há retorno à China de Gengnian. A saída para ele é reconciliar com o filho, representante da Nova China.


 


          
Filhos querem ter autonomia


 


          
Esta convivência forçada entre dois momentos históricos se dá pelo novo costume. Gengnian e Xiuqing querem, a todo custo, se perpetuar através de um neto. Xiangyang e sua mulher Xian Han não se sentem maduros e com autonomia financeira suficientes para ter a criança. Os argumentos usados pelos velhos para fazer valer suas idéias são retrógrados, baseados na tradição, na manutenção da linhagem e na necessidade de estarem com o neto em vida. E os do filho e da nora são mais equilibrados, condizentes com o estágio de sua relação a dois. O tom é que de tradição e linhagem não condizem com a etapa presente do país, em que se o Estado garante o aborto, por ser um direito da mulher, deixa a critério do casal a escolha do momento de ter filhos, com os pais tendo pouca influência neste caso.



         
O desenrolar dessas seqüências vem num encadeado, suave, sem sobressaltos, com o público se envolvendo cada vez mais. Os personagens são simpáticos, humanos, sem maniqueísmo, tentação que Yang e Xiang Jan poderiam cair num épico tão envolvente. Inclusive porque a crítica sutil feita ao longo do filme não é só ao passado, à forma como Gengnian foi punido, mas também ao presente. Enfeixa-se no comportamento de Xiuqing, que, num momento de tensão, no final de “Flores do Amanhã”, faz autocrítica dizendo que deveria ter ficado com Gengnian, velho demais para ficar sozinho. Ela admite que só pensou nela quando lutou para ter a casa individual, não se lembrou das necessidades do marido. Yang refuta assim o individualismo, o consumismo, a ponta capitalista se insinuando numa etapa histórica do país.


 


            
Diretor exorciza Revolução Cultural


 


            
Não é mais a solidariedade que predomina, sim a busca incessante pelo atendimento ao interesse particular. Liu, no final, por mais que tenha sido responsável pelo que aconteceu a Gengnian, tem a solidariedade deste. Alguém para preparar seu velório. E ele, Gengnian, compreende que viveu a vida toda o sonho dos outros, sem realizar o seu próprio. Yang não revela qual, faz uma opção surpreendente para um filme cheio de paralelos. Vê-se dezenas de pessoas da terceira idade  em pleno exercício no parque. Demora-se nelas como a se venerar aqueles que construíram uma China que, para Yang, abriu caminho para eles possam, pelo menos, ter uma velhice tranqüila. Pelo que se vê não é um filme fácil de se classificar. Poder-se-ia dizer que, pelas críticas feitas à Revolução Cultural, mesmo não o fazendo diretamente a Mao Tsé Tung, se trata de um filme reacionário. Isto seria não compreender a maneira como Deng Xiao Ping e os líderes posteriores trataram aquele período.



          
Muitos deles emergiram dele para o poder. Caso do próprio Deng, feito prisioneiro durante a Revolução Cultural e libertado depois da Queda do Bando dos Quatro. Então, Yang o faz para exorcizar um período que ainda pesa sobre os ombros de toda uma geração. Mas não se descuida de analisar as conseqüências da escolha das lideranças que emergiram daquela época para uma etapa histórica de construção da estrutura atual. Esta desenvolve forças produtivas, incorpora vastos segmentos na estrutura sócio-econômica e se transforma na potência emergente do século XXI. E corre risco, como descortina Yang: de se deixar corroer pelo individualismo e o consumismo, substituindo a convivência comunal pela individual.



          
“Flores do Amanhã” não é um filme para se renegar, mas para assistir e refletir sobre o que Yang quer dizer. Afinal, sob a aparência de uma história sobre o conflito entre o pai frustrado e o filho rebelde que quer seguir seu próprio caminho, muitas contradições emergem revelando as contradições ocultas num país que, a seu modo, contribui para a evolução dos povos, principalmente os do Terceiro Mundo, e a contraposição ao capitalismo americano, nesta etapa neoliberal-globalizante.


 


Flores do Amanhã (Xiang Ri Kui). China, 2005. 129 minutos. Roteiro: Zhang Yang/ Ca Xiang Jun. Direção: Zhang Yang. Elenco: Joan Chen, Zhang Fan (Xiangyang, 9 anos), Ge Gao (Xiangyang , 19 anos) Wang Haidi (Xiangyang, 30 anos), Zifeng Liu e Haiying Sun.

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