“Free Zone”: Esperança amordaçada

Filme do israelense Amos Gitai mostra diversas faces do conflito judaico-palestino e a falta de uma solução que permita o convívio pacífico entre esses dois povos.

Quando, finalmente, a tela escurece em “Free Zone”, do israelense Amos Gitai, fica-se com a sensação de que judeus e palestinos vivem um conflito sem solução. Hanna (Hanna Lazlo, prêmio de melhor atriz no Festival de Cannes 2005) e Laila (Hiam Abbas) discutem, discutem, discutem, à exaustão. Cada uma quer provar à outra que tem razão e não chega à conclusão alguma. Simplesmente porque uma não escuta a outra e, mesmo que o fizesse, precisaria acreditar no que a outra diz. Tem sido assim, há meio século, o conflito entre esses dois povos, habitantes da área mais sangrenta do planeta: o Oriente Médio. E é numa parte dele, na “Free Zone”, zona livre, que, aos poucos, três mulheres deslindam suas vidas. E, embora o que se veja na tela não seja agradável, a poesia permeia a aridez da paisagem e dos entrechos que norteiam essa reflexão de Amos Gitai (Kadosh).


 


          
A forma de Gitai narrar os entrechos de seu filme coloca o espectador, desde o início, dentro do conflito que se estabelecerá ao longo de 90 minutos entre a israelense Hanna, a norte-americana Natalie e palestina Laila. Eles, os entrechos, vão do pranto de Rebeca, pontuados por uma embolada ao estilo mineiro, até a discussão interminável entre Hanna e Laila. No meio, situações que lembram a atual invasão do Líbano por Israel, sem que se perca em indagações sobre quem tem ou não razão. Esta é uma questão que Gitai expõe devagar para que o espectador entenda as razões de um e outro lado, a partir dos dramas humanos vividos pelas três personagens. Rebeca é a norte-americana que vive um drama familiar, Hanna a pequena empresária e taxista que a conduz à Jordânia e Laila a palestina que se defronta com as outras duas e fecha o círculo.


 



Sem espaço para a conciliação


          


Enquanto desliza com sua perua por estradas e povoados, Hanna desfaz novelos, traça sua história, abre-se para a jovem Natalie. Ela nada sabe do que existe a seu redor. Apenas que há uma história milenar naquelas casas, naqueles morros, naquela paisagem. Até se verem diante da fronteira que poderá levá-las à Síria, à Arábia Saudita ou à Jordânia, elas se mantêm apreensivas como se algo pudesse lhes acontecer. Surgem placas que identificam em placas de fundo verde, escritas com letras brancas, os nomes dos países vistos em seu cotidiano na mídia: enigmáticos, misteriosos. Mas apenas Hanna está diante do que faz parte de seu povo – Natalie não é judia, é tão só uma americana com seu pequeno drama familiar.


 


           
Ao chegar a Laila, a identificação entre elas já se estabeleceu. Natalie sente que Hanna vive um drama, do qual não faz parte. Mas que a torna curiosa, ansiosa por saber o que há por trás daquele dilema. Este se agrava ainda mais quando chegam a Laila. E ela, Natalie, entende que entre a palestina e a judia não sobra espaço para conciliação. Hanna está disposta a cobrar de seu sócio, o palestino-americano, Walid, a sua parte numa transação de veículos.


 


          
Laila se vê na contingência de contornar o impasse que se estabeleceu e Hana, impaciente, não o admite. Está exausta demais, tensa, receosa de que o marido, Moshe, que sofreu um atentado, possa sucumbir a ele. Laila, por sua vez, foi deixada numa situação em que qualquer explicação que dê será insatisfatória. E, entre as duas está Rebeca, indiferente ao que se passa, embora, às vezes, tente se manifestar a favor de uma ou de outra.


 


          
Trata-se, assim, de problemas cotidianos entre pessoas comuns, que têm de resolvê-los, sem que ultrapassem os limites dos negócios particulares. No entanto, isto é apenas aparência. Os personagens do road-movie (filme de estrada) “Free Zone” ultrapassam esse dia-a-dia. Integram de forma intensa o conflito palestino-israelense. Enquanto roda pelas estradas israelenses e jordanianas, Hanna relembra seus problemas, conta-os a Rebeca, emociona-se, segue em frente. As cenas vão se justapondo, com passado e presente se interligando, como se fosse impossível – e é – separá-los. Vê-se a estrada por onde o veículo dirigido por Hanna trafega e, ao mesmo tempo, os fatos que se desenrolam. Recurso idêntico ao usado por Gitai nas seqüências de abertura, quando introduz Rebeca na história. Por longos minutos, ela e o namorado se deixam levar estrada afora, envolvidos pelos confrontos que marcam suas vidas. Flashes-backs e presente se sucedem, impositivos, como fossem vertigens, fatos entrecortados que se quer esquecer, mas que continuam a importunar.


 


 Conflito se eterniza, mas ninguém fica indiferente



             
O que Natalie e seu namorado, Hanna e Moshe vivem naquele instante foi imposto pela guerra, algo que se eterniza, sem que consigam dela escapar. São vítimas de situações que não dominam, mas têm de tomar partido. Nenhum deles pode ficar indiferente. Gitai, a cada seqüência, os aproxima da decisão a tomar. A paisagem que surge a cada curva, povoados, placas de estrada, mergulha-os na história, nos fatos, lembrados por Rebeca – três, quatro mil anos atrás, mas que continuam vivos ali. E faz de “Free Zone” um filme árido, seco, mas cheio de poesia. Em meio às agressões sofridas por Laila, que tenta manter a serenidade, Gitai encontra detalhes que mostram que a vida continua. Sua câmera encontra os camelos que cuidam de seus filhotes descansando na relva, os raios solares que penetram as folhas das palmeiras no oásis onde vive Laila e as palmeiras frondosas e de um verde intenso que adornam o povoado. São de uma beleza que emociona.


 


             
Há, no entanto, algo de impenetrável nessa beleza. Ela incomoda. O verde, as casas sem reboco, as montanhas desnudas, o clima úmido, possuem uma textura que leva o espectador a perguntar onde está a razão por tanto ódio. O que Rebeca quer é deixar para trás as lembranças de seu passado, Hanna receber a dívida que Walid tem com ela e seu marido Moshe e Laila viver bem com o Walid e o enteado que a odeia. Coisas muito simples e possíveis. Nada disso, porém, se mostra acessível. Não se trata apenas de dividir território, garantir a existência de Israel e de um estado palestino para a paz chegar ao Oriente Médio. Quando isto for alcançado terá sido dado um grande passo para que  Hanna e Laila e os povos de ambos os lados possam se entender.



              
Divisão de território é erro histórico



             
O problema é mais complexo: o erro foi cometido 58 anos atrás, em 1948, quando da criação do Estado de Israel e da expulsão dos palestinos da terra que ocupavam em comum com os judeus há milênios. Hoje, pelo contrário, o que era luta justificável por território, transformou-se numa área de domínio dos EUA para assegurar, de forma definitiva, o acesso e o controle das fontes de petróleo do Oriente Médio. Para que isto aconteça é necessário, sob a ótica norte-americana, que não haja uma potência média sequer na região que possa, supostamente, pôr em risco essa estratégia imperialista (lembre-se do Iraque e mesmo do Líbano, que havia, nos anos 70, se transformado no centro financeiro do Oriente Médio, devido aos petrodólares que jorravam aos borbotões).


 


            
Qualquer país árabe ou não da região que almeje ou tente manter sua soberania e independência vira inimigo dos EUA, porque se torna um exemplo a ser seguido pelos demais (veja o caso do Irã). Principalmente se passar a usar seus recursos naturais, no caso o petróleo, para se fortalecer e buscar um alinhamento com países que não sejam liderados pelos EUA.  Esta é a verdadeira razão da dificuldade de um acordo, a curto ou médio prazo no Oriente Médio, para pôr fim ao conflito árabe-israelense. Israel é a cabeça-de-ponte usada para, sob a desculpa de “ataque terrorista”, manter a insegurança na região. Talvez quando secarem as reservas petrolíferas isto venha a ser posto em discussão de forma “séria e definitiva”. Hoje, no entanto, o que se vê é a permanência desse confronto, sem que haja solução à vista.


 



            
Gitai, que não poupa nem árabes nem judeus em “Free Zone”, está atento a isto. Permite-se até uma seqüência em que toma partido diante da discussão interminável entre Hanna e Laila. Quando elas mergulham nas agressões mútuas, Rebeca deixa-as, passando por soldados e veículos blindados israelenses, indo em direção à zona liberada, como se fugisse ao confronto entre duas mulheres que até então eram suas colegas de estrada. Sintomática esta forma de Gitai denunciar a posição dos EUA: eles simplesmente deixam arquiinimigos se digladiarem, afastando-se o mais distante possível deles. Não é outra a posição de George W.Bush: se não fosse de seu interesse manter as coisas como estão, poderia interferir e exigir, de fato, um cessar fogo e o respeito aos acordos já firmados (Oslo. Camp David. etc) entre Israel e a Autoridade Palestina. Nada, no entanto, caminha nesta direção.



              
Imagens poderosas levam à reflexão



           
Difícil é não deixar o cinema tomado pelas poderosas imagens de “Free Zone”. Tudo ali está por ser construído sobre os escombros de uma história comum, muitas vezes cheias de guerras e mortes, mas ainda assim pertencentes àqueles povos únicos na história da humanidade. Há momentos em que a convivência é possível. É sublime o instante único em que as três mulheres se permitem cantar e se embalar ao som de canções mútuas sem preconceito ou ódio. Entende-se que se deixar a cargo desses dois povos conduzir seu destino, eles irão discutir, discutir, discutir e chegar a um denominador comum. Antes, porém, terão de derrotar o inimigo comum que os atiça e os mantém em confronto permanente: os EUA. Não é fácil chegar a esta conclusão. Muitos interesses estão em jogo, de ambos os lados. É uma luta de classe, de monopólios, não de povos simplesmente.


 


   
Free Zone (Free Zone), Israel/Bélgica/Espanha/França. 2005. 90 minutos. Livre. Roteiro: Amos Gitai, Marie José Sanselme. Direção: Amos Gitai. Elenco: Hanna Lazlo, Natalie Portman e Hiam Abbas.           

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