Fui ver uma harley-davidson

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No sábado tomei a decisão que vinha adiando há muito tempo. Ir dar uma olhadinha nas motos Harley Davidson, ali perto da Praça do sol. As motos fazem parte dos sonhos e do imaginário de minha geração. Nunca cavalguei uma. O mais perto que cheguei de um desses objetos de desejo foi uns dois metros. Desconfiado, penso que o tempo dessas coisas já passou. Tempo de viajar, com o vento no rosto, num sem caminho para não chegar a lugar nenhum. Puro anseio de liberdade de meados do século passado. Mas, desavisado, não foi desta vez que pude desfrutar a visão entretecida. O sábado era feriado. Dia do aniversário de nossa cidade. Retornei um pouco melancólico, deixando ainda para outra vez a contemplação das máquinas, já transformadas em móbiles inatingíveis, bólides eróticos de um tempo já de poucas promessas. Um dia voltarei, pensei. Segui caminhando. A manhã brilhava de sol e arrepiava de um serelepe vento goianiense. Na Avenida República do Líbano, uma algazarra. Crianças brincavam num simulacro de parque. Algumas atividades enchiam a avenida, desobrigada naquele momento dos roncos dos carros. Era um dos eventos comemorativos do aniversário da cidade. Em tendas armadas vários artistas plásticos praticavam à vista dos passantes seu ofício. Quase todos pintavam cenas da cidade. Não a que estava lá fora. Mas uma cidade que levavam ou queriam levar dentro de si. Decalcavam dos edifícios e seus estoques de solidão um aceno de verde, um vôo de pássaro, alguma lembrança de leve apego humano. Mesmo um retalho de um recuerdo rural subjacente à megalópole impessoal da fome imobiliária. Parei um pouco em cada tenda. Fui conversando com artistas conhecidos, muitos responsáveis por uma imagem de encanto e humanismo que povoa a cidade e dela dá notícia. Falo com Sanatan. Pinta uma paisagem urbana destacando, em primeiro plano, jardins e árvores. No delicado estilo, algum tipo de conciliação entre a natureza e o concreto. Converso com Fogaça. O artista das luzes feéricas, das velocidades cromáticas, esboça uma paisagem trepidante onde veículos e edifícios desenham vertigens noturnas para silhuetas humanas convertidas em sombras. Omar Souto empresta claridades tênues a seus personagens migrantes. Sossego ao lado de Evandra Rocha. Voz calma, gesto de algodão. Desenha um ramo de flor sobre um edifício plúmbeo no horizonte urbano. Vejo Tai com sua milimétrica perfeição oriental, resolvida em estuante luz primaveril. Pitágoras, Loyola abstraído no desenho de seus seres incomunicáveis. Tomei de Evandra um papelzinho e uma caneta. Fiz anotações. Agora me dou conta: perdi as anotações. Algum vento espalhou pela manhã. Como gostaria de lembrar outros nomes. Gente tão bela. Gente sendo a mão e o coração de deus criando. Era tempo de voltar. Colho a glória feliz desta manhã. Vou lembrar. Desinteresso-me pelas motos. Continuarei invejando seus cavaleiros metálicos, seus líricos barbudos tacheados e brilhantes. Concluo, consolando-me, que do outro lado da vitrine as míticas Harley-Davidson, no caso, são como frango na assadeira para cachorro de rua. Aí vige a sabença de minha mãe: – Vê com os olhos, lambe com a testa, meu filho.

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