Guanieri e a virada nacional popular do teatro brasileiro

O ambiente naquele “simpático teatrinho” da rua Theodoro Bayma estava tenso. Os ensaios haviam sido feitos a toque de caixa e os atores ainda tropeçavam no texto. Nada que anunciasse o que ocorreria poucas horas depois, quando

  


A peça apresentada, sem grandes pretensões, tinha um estranho nome, Eles não usam Black-tie, e seu autor era um jovem desconhecido com apenas 21 anos de idade, Gianfrancesco Guarnieri. A partir daquela noite o teatro e a cultura brasileira não seriam mais os mesmos.

O Encontro com a arte e o socialismo

Gianfrancesco Guarnieri nasceu em Milão, durante uma turnê de seus pais, o músico e regente Edoardo Guarnieri e a harpista Elsa Martinenghi. O ano era 1934 e a Itália vivia sob a ditadura fascista de Benito Mussolini.
 


O casal Guarnieri, adversários do fascismo, receberam com a alegria o convite de trabalhar no Brasil. Primeiro chegou Elsa, que foi trabalhar na Orquestra Sinfônica Brasileira. Poucos meses depois foi à vez de Edoardo desembarcar no país trazendo pelos braços o pequeno Gianfrancesco, que tinha apenas dois anos de idade. Mas, ao chegar, o sentimento foi de apreensão. Pela janela do Hotel era possível ver as grandes passeatas organizadas pelos integralistas. Estávamos à beira de mergulharmos no Estado Novo. Depois de certa vacilação resolveram ficar. O Brasil seria agora sua pátria.



Edoardo se juntou a luta antifascista e apoiou o ingresso do Brasil na II Guerra Mundial, ao lado dos “aliados”, contra o Eixo nazi-fascista. Ainda de casaca, saindo de suas apresentações, se incorporava alegremente nas pichações organizadas pelo Partido Comunistas. Assim, o pequeno Gianfrancesco herdaria dos pais o amor pelas artes, pelo socialismo e pelo Brasil.
 


Quando moleque cabulava as aulas para assistir as comédias do Teatro Glória no Rio de Janeiro. Mas, sua primeira experiência teatral ocorreu no Colégio Santo Antônio. Iniciou sua carreira como “ponto”, aquele que fica na boca do palco dizendo a fala inicial ou corrigindo os lapsos de memória dos atores em cena. Rapidamente passou a compor o elenco principal. Aos 14 anos redigiu sua primeira peça: Sombras do Passado. Era uma comédia e obteve um grande sucesso entre os estudantes.
 


No entanto, um de seus personagens chamou a atenção da direção do respeitável estabelecimento de ensino. Era o de um homem que gaguejava igualzinho ao vice-diretor, um homem considerado autoritário e que mantinha uma severa disciplina sobre os alunos. Começou aí suas confusões com a censura. Depois de parabenizado pela qualidade do texto e o sucesso de público, foi convidado a abandonar o colégio.
 


Logo após, Gianfrancesco ingressou na Juventude Comunista (JC) e começou a colaborar no jornal Novos Rumos. Sua atuação no movimento estudantil lhe valeu a indicação para presidência da Associação Metropolitana dos Estudantes Secundaristas e vice-presidência da União Nacional dos Estudantes Secundaristas.
Em 1953 a família Guarnieri se mudou para São Paulo. Sua experiência no movimento estudantil no Rio de Janeiro, fez com que fosse indicado para a secretaria-geral da União Paulista dos Estudantes Secundarista. Mais tarde comentaria: “Eu não conhecia nada na cidade, não tinha amigos e não sabia o nome de nenhum estudante, ainda assim me colocaram num posto daqueles. Um tremendo cargo de confiança”.
 


Ele se jogou integralmente na tarefa de organizar os estudantes e a juventude comunista em São Paulo. Estava com dezoito anos e o teatro parecia estar cada vez mais longe de sua vida. Promovido à condição de membro do Partido, passou a dar assistência para algumas células, especialmente de mulheres e intelectuais.
Foi nesta função que participou das grandes manifestações populares que se seguiram à deposição e suicídio de Vargas, ocorrido em agosto de 1954. É ele mesmo que descreve sua atuação naquele evento: “Corri para região do Palácio das Indústrias, no Parque Dom Pedro, acompanhando aquela romaria. Daí chegou o pessoal do Exército, que queria dispersar a manifestação (…) E eu gritava que não iríamos embora, que não iríamos recuar de jeito nenhum (…) Quando um cavalo avançou sobre mim eu gritei para os soldados: eu sou jovem e não tenho medo de morrer (…) Nossa eles ficaram revoltadíssimos. Primeiro porque eu os chamei de velhos, e depois por dizer que não tinha medo de morrer”. Continuou: “Este episódio serviu para reforçar o caráter antiimperialista da minha atuação no Movimento Estudantil”.
 


Aqueles acontecimentos, também, representaram o esgotamento de uma determinada forma da ação política. Ele, então, deixou de ser um “agitador estudantil” e passou a se dedicar à organização cultural dos estudantes paulistas. Foi neste processo que, ao lado de Vianinha, fundou o Teatro Paulista dos Estudantes (TPE). Os objetivos eram os mesmos, mas a luta passou a ser travada com novas armas: a arma da cultura.
Afirmou Guarnieri: “o teatro começou aparecer como um meio de organização nas escolas e faculdades. Através do teatro se procuraria discutir a questão social. Nós precisávamos fazer que a questão do movimento estudantil chegasse às massas. Estávamos afastados das massas, tinha-se que formar o teatro, aí se discute etc. e tal … Chegamos assim ao teatro do estudante”. Esta decisão teve total apoio da direção do PC do Brasil. Organizar o TPE passou a ser a tarefa principal de Guarnieri e Vianinha.
 


O grupo de teatro foi criado no início de 1955 e começou com o pé direito. Logo na estréia ganhou o Festival de Teatro Amador de São Paulo e, em seguida, o próprio Guarnieri levou o prêmio de melhor ator. Naquele ano participaram da campanha eleitoral de JK. Na Praça da Sé fizeram apresentações nas quais recitavam poemas de Castro Alves, sempre sob os olhos atentos da polícia.

Black-tie: o teatro como expressão da realidade nacional

Paralelamente desenvolvia-se outra experiência cultural inovadora: a formação do Teatro de Arena. Seus fundadores eram atores formados pela recém-criada Escola de Arte Dramática de São Paulo, comandados por José Renato. No início de 1955 eles conseguiram montar, nas palavras de Vianinha, um “simpático teatrinho para 163 espectadores”. Por uma dessas coincidências do destino, a sede do TPE e do teatro de Arena ficavam na mesma rua.
 


Como o pessoal do TPE não tinha lugar fixo para ensaiar e se apresentar, resolveram fazer um acordo com o pessoal do Arena. Este cederia o espaço e colaboraria na formação dos jovens atores ligados ao TPE e ambos apoiariam os textos com temáticas sociais e nacionais e fariam sua divulgação nas escolas, fábricas e no interior do estado.
 


Segundo Guarnieri o teatro acabou ficando nas mãos dos jovens do TPE. Afirmou ele “éramos unidos e solidários. O nosso objetivo era chegar depressinha à revolução”. Um dos marcos foi a encenação de Ratos e homens de Steinbeck. Em 1957 o Arena entrou em uma profunda crise financeira e resolveu-se fechar o teatro.
 


A última peça a ser apresentada deveria ser uma espécie de “discurso em defesa da dramaturgia brasileira”. A opção radical seria por uma peça de temática nacional e de um autor jovem que fosse inédito. Guarnieri viu nesta decisão uma oportunidade para apresentar o texto que estava produzindo. Em tom de brincadeira, ele descreveu assim a decisão do grupo: “Então, Guarnieri, a gente monta a tua pecinha, apresenta durante uns dois, três meses, e depois cada qual vai para o seu lado, que ninguém é de ferro e não dá mais para agüentar”.
 


A peça de despedida chamava-se inicialmente O cruzeiro lá no alto. Um nome pouco atraente e que não refletia bem o espírito combativo do texto. O autor em pouco tempo encontrou uma saída e mudou o nome da peça para Eles não usam Black-Tie. Continuava soando meio estranho, mas, pelo menos, correspondia mais aos objetivos contestatórios do grupo.
Black-Tie levou para os palcos, pela primeira vez, a vida e a luta dos operários, dos moradores dos subúrbios e favelas brasileiros. Era fortemente inspirada no neo-realismo italiano e tinha uma linguagem simples e despojada. O cenário era minimalista, até para uma favela carioca onde se desenrolaria uma grande parte das cenas. Num palco de três por quatro existiam apenas alguns caixotes de madeira.
 


A peça estreou em fevereiro de 1958 e foi um estrondoso sucesso. Ficou em cartaz um ano – com 512 apresentações em quarenta cidades, além de sindicatos e circos do interior. Lélia Abramo descreveu aquele acontecimento: “Nas cidades por onde passávamos, o teatro floresceu. Num circo, vimos verdadeiras torcidas divididas entre Tião e Otávio, duas encarnações do social que se confrontavam”. A peça salvou o teatro da falência e Guarnieri – com seus 21 anos de idade – já havia se transformado num dos mais conhecidos autores teatrais brasileiros.
 


A partir daí, operários, camponeses, jogadores de futebol, donas de casa – além de políticos e empresários corruptos – passaram a habitar os palcos do Arena e dos demais teatros brasileiros. Segundo Vianinha, Black-tie confirmou “que as conquistas formais precisam ser ajustadas à capacidade perspectiva de um povo, se se quiser realmente instalar sentimentos novos e originais na consciência do povo. Black-tie afirma ainda que a arte é uma arma do homem na sua luta de libertação”.
 


Em 1959 Guarnieri publicou na Revista Brasiliense o artigo “O teatro como expressão da realidade nacional”. Escreveu ele: “Não vejo outro caminho para uma dramaturgia voltada para os problemas de nossa gente, refletindo uma realidade objetiva, do que uma definição clara ao lado do proletariado, das massas exploradas. Sonhamos com um teatro que atinja realmente as grandes massas. Com espetáculos realizados para todas as classes e não apenas para uma minoria”.
 


Mas, o projeto revolucionário dos jovens artistas esbarrava com os limites físicos do Teatro de Arena. Apesar do esforço ele ainda era um teatro de minoria – um teatro de classe média. Por isso neste período acirrou-se as divergências no seu interior. Vianinha escreveu mais tarde: “O Arena era porta-voz das massas populares num teatro de 150 lugares. Não atingia o público popular e, o que é talvez mais importante, não podia mobilizar um grande número de ativistas para o seu trabalho. A urgência de conscientização, a possibilidade de arregimentação da intelectualidade, dos estudantes, do próprio povo, a quantidade de público existente estavam em forte descompasso com o Teatro de Arena enquanto empresa”.
 


Vianinha era um dos que achavam que a experiência do Arena já estava esgotada e precisavam ser encontradas novas alternativas. Guarnieri se opôs a idéia de que o Arena já estava superado. Numa entrevista realizada posteriormente esclareceu sua posição: “Chegou a ser proposto o abandono do espaço já conseguido. Quer dizer: o Arena não vale mais, o que vale é esse outro treco. E aí se contestava: não, temos que preservar este espaço. Você tomou uma colina, agora larga a colina para lutar outra vez? Não!”
 


Vianinha e Chico de Assis resolveram ficar no Rio de Janeiro, onde o Arena fazia uma turnê, e ali começaram a escrever e montar a peça A mais-valia vai acabar, seu Edgard. A peça foi ensaiada no pátio da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil. A atividade reunia diariamente centenas de estudantes. Na estréia, realizada em julho de 1960, centenas de pessoas lotaram o anfiteatro. Ficou cerca de 8 meses em cartaz, com um público médio de 400 pessoas. Era o início do CPC da UNE.
 


A vida deu razão à Guarnieri e mostrou que no Brasil havia lugar para experiências revolucionárias como o CPC e o Arena. Inclusive, este último serviu de base para a criação de CPC no próprio Estado de São Paulo. Em 1964, os dois seriam vítimas da mesma truculência.

Um teatro contra a opressão e a ditadura

Em 1958 o grupo de Maria Della Costa encomendou uma peça a Guarnieri. Em poucos dias ele escreveu Gimba, que obteve grande sucesso e, como Black-Tie, ambientava-se nos morros cariocas. Mas em vez de operários e greves, retratavam sambistas e malandros.
 


Seguindo a mesma trilha, em 1961, escreveu A Semente. Novamente ele renovava e radicalizava na temática abordada. Pela primeira vez foi levada aos palcos brasileiros a atuação do Partido Comunista e dos seus militantes durante uma greve operária. Estávamos em meio à guerra fria e a reação dos setores conservadores foi imediata. Houve forte pressão para que a encenação não fosse autorizada e a peça acabou sendo proibida em todo território nacional, a exceção do Teatro Brasileiro de Comédias.
 


Nas vésperas do golpe militar de 1964, Guarnieri estreou a peça O filho do Cão, cujo tema era a vida dos camponeses no nordeste brasileiro, um tema explosivo na época. A sua última apresentação foi justamente no dia 31 de março. Não somente a peça saiu de circulação. O próprio Arena foi obrigado a fechar suas portas por algum tempo.
 


Perseguido pela polícia política, Guarnieri teve que fugir do país. Pegou o “trem da morte” com destino à Santa Cruz de La Sierra e depois seguiu para La Paz. No seu segundo dia na capital boliviana, presenciou outro golpe militar. Naquela época a América do Sul não era um lugar muito seguro para um comunista. O exílio, no entanto, durou apenas três meses. De volta a São Paulo teve que se apresentar ao DOPS, mas não foi preso e pode voltar às suas atividades no teatro.
 


Ele elaborou um novo – e ousado – projeto: colocar nos palcos as lutas do povo brasileiro. A primeira dessas peças se intitulou Arena conta Zumbi e foi escrita em parceria com Augusto Boal. Edu Lobo compôs as músicas do espetáculo. Por um descuido da censura, ela foi aprovada e obteve sucesso de público. A peça se tornou uma arma na luta contra a ditadura recém implantada.
 


Os grupos de extrema direita, acobertados pelo regime, passaram então a ameaçar os atores e expectadores. Diariamente chegavam ameaças de bombas. A produção seguinte foi Arena conta Tiradentes, que estreou em 1967. As provocações se mantiveram e aumentaram de tom. No ano seguinte escreveu e encenou Marta Saré, novamente em parceria com Edu Lobo.
 


O endurecimento do regime após o AI-5, promulgado em dezembro de 1968, criou enorme dificuldade para a criação artística. Não se podia mais criticar minimamente a situação em que vivia no país. Neste clima Guarnieri escreveu e encenou Castro Alves pede passagem (1971), dando seqüência aos temas sobre a história do Brasil; Um grito parado no ar (1972), Botequim (1972) e Ponto de Partida (1976). Todas sofreram algum tipo de mutilação por parte da censura e a peça Basta! (1972) foi integralmente proibida. Nos estertores do regime escreveu Que país é esse, Que zorra! (1979) e Crônica de um cidadão sem nenhuma importância (1979).
 


As metáforas passaram a substituir o discurso direto. Através delas, os escritores e compositores procuravam habilmente denunciar a censura, a falta de liberdade política e até mesmo a tortura que atingia milhares de brasileiros. Em Um grito parado no ar, contou a história de uma montagem de uma peça que era constantemente interrompida pelos credores, que levavam os equipamentos necessários para a montagem do espetáculo. Em Botequim retratou a situação de freqüentadores de um bar impossibilitados de sair por causa de um temporal que assolava a cidade. Em Ponto de partida a referência à tortura não podia ser mais explícita, tratava-se de uma história de um pastor de cabras que, certo dia, foi encontrado enforcado. A peça foi aos palcos pouco tempo depois do assassinato do jornalista Wladimir Herzog.
 


Afirmou Guarnieri: “o público tinha medo de ir ao teatro para ver esta peça, eles achavam que uma bomba – sempre as bombas, meu Deus, que mania de bomba que o regime tinha – podia explodir o teatro. Mas as pessoas enfrentavam o medo e iam ver a peça, e isso era lindo. Eu batizei este meu ciclo de peças sobre a repressão de teatro de ocasião, ou seja, o teatro que eu fui obrigado a fazer durante aquele período específico do Brasil”. Um período que “nenhuma crítica, nenhuma denúncia podia ser direta. Tinha sempre de ser indireta”.
 


Assim, através de suas peças e de sua vida militante, Gianfrancesco Guarnieri deu uma contribuição inestimável para a conquista da democracia e para valorização da cultura nacional e popular em nosso país. Portanto, nesta semana, não perdemos apenas um grande ator e autor, perdemos também um grande brasileiro. O Brasil está de luto.

Bibliografia

Barcellos, Jalusa – CPC: Uma história de paixão e consciência, Ed. Nova Fronteira, RJ. 1994.
Berlinck, Manoel T – CPC da UNE, Ed. Papirus, SP, 1984
Magaldi, Sábato – Um palco brasileiro: O Arena de São Paulo, Ed. Brasiliense, SP, 1984.
Moraes, Denis de – Vianinha: cúmplice da paixão, Ed. Record, SP, 2000.
Roveri, Sérgio – Gianfrancesco Guarnieri, um grito solto no ar, editora Cultura/Imprensa Oficial, SP, 2004.

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