“Hereditário”

Herança macabra

Em seu filme de estreia, cineasta estadunidense Ari Aster mescla drama e terror psicológico em narrativa centrada em traumas e rancores familiares

Em princípio a herança deixada pela idosa Ellen Leigh é o trauma e o ódio entranhado em sua filha Annie (Toni Collette) pelo modo como a tratou em vida. Não há choro ou comemoração, apenas certo alívio por não a ver mais. Restaram, porém, objetos, móveis, fotos e a sensação de que ela continuava a frequentar o sobrado em que morara às bordas da floresta. Com este tipo de preâmbulo, o estreante cineasta estadunidense Ari Aster introduz o espectador no clima deste “Hereditário”, espécie de terror psicológico sobre as conflituosas relações entre mãe e filha.

Neste universo classe média, de pequena cidade estadunidense, Aster, diretor e roteirista, vai, aos poucos, compondo sua narrativa ao revelar o cotidiano da família Graham. Steve (Gabriel Byrne) deixa à Annie os cuidados dos filhos Peter (Alex Wolff), adolescente, e Charlie (Milly Shapiro), pré-adolescente. Por trabalhar em casa, onde esculpe miniaturas para lojas e escolas, ela passa a conviver com fenômenos para além de seu entendimento. E por mais que tente não consegue fugir à opressão imposta pela mãe, mesmo que se livre de tudo que a ela pertencia.
Com esta estruturação, Aster introduz sutilmente o terror psicológico, através da pequena Chama a surgir no escuro. O que amedronta Annie, pois o rancor nela curtido não lhe permite aceitar a presença da mãe. Há nesta sua reação não só resistência à mensagem que ela lhe transmite, mas muito de culpa e medo. O primeiro por ter odiado Ellen quando viva, o segundo por ela, uma vez morta, ter decidido atormentá-la. A Chama torna-se, deste modo, não um contato a ser estabelecido entre elas, mas símbolo de punição não de reconciliação.

Chama passa a ditar as ações de Annie

Estes símbolos, textos, subtextos e referências ao sobrenatural levam o espectador a entender o dilema de Annie. Ou convive com a Chama ou reage a ela. Em princípio não o revela a Steve, nem faz qualquer menção a ela quando está com os filhos Peter e Charlie. Guardar este segredo, de qualquer forma, se torna um pesadelo difícil de ser suportado. Sem saber como superar este trauma, ela busca apoio psicológico para amenizar a mescla de culpa, medo e terror. E encontra conflitos familiares idênticos aos seus, não havendo ali solução para o que a atormenta.

Ao reforçar sua narrativa sem fugir ao tema central, ou seja, as conflituosas relações mãe/filha e a simbologia da Chama, Aster a amplia ao opor Annie a Peter. Na emblemática sequência do jantar, às vistas do sempre comedido Steve, eles trocam pesadas e ferinas acusações por se sentirem igualmente negligenciados. Ele por achar que a mãe não o tratava com carinho, “nem o amava”, ela pela forma como o filho reagia ao que lhe dizia, tão raivosa que acaba revelando o que não devia. Terminariam aos tapas, caso Steve não interviesse, impondo sua autoridade de ocasião.
Neste avançar da narrativa, Aster combina com realismo, sem subterfúgios, a tentativa de Annie manter-se lúcida, capaz de evitar que a Chama contagiasse seus filhos. Entretanto, tanto Peter quanto Charlie tinham já escapado ao seu controle. Quanto mais tentava liberá-los para se enturmarem com os jovens de sua idade, mas eles sofriam influência do que ela tentava, em vão, mantê-los distante para não os sacrificar. E, ao mesmo tempo, Aster mantem o clima de terror psicológico, centrado nos conflitos entre Ellen/Annie e Annie/Peter, sem qualquer subtrama.

Aster não se vale de sustos e aparições

Além disso, ele não se vale de sequências de susto e aparições e efeitos especiais, tão comuns nos filmes de terror hollywoodianos. É como se permitisse ao espectador construir a narrativa em sua mente ou a seguir sem desnecessários fios dramáticos. Ele só usa subtramas nas sequências em que a solitária e estranha Charlie se fecha em seu quarto para se entreter com seus desenhos. Silenciosa, mas atenta, ela é um dos motivos do rancor de Annie contra a mãe. “Ela não me permitiu cuidar de você (frase não literal)”. Desta forma, Aster reforça sua linha narrativa.

Ao tratar de tema tão complexo configurado em conflitos familiares, tendo a realçá-los a Chama, símbolo ao mesmo tempo de terror e punição, tendo fortes e bem construídos personagens, não arquétipos, Aster pôs-se a justificar as referências, e não passam disso, como “espiritismo”. Mesmo o espectador mais atento não conseguiria fazer as devidas ligações. O trauma de Annie acaba levando-a à espírita Joan (Ann Dowd) que, a partir daí, irá puxar os fios soltos da narrativa e amarrá-los não mais na linha do terror psicológico, mas na do áspero terror, antes não imaginado.

Como roteirista, Aster abriu a clicheria e encadeou sequências de fácil estruturação dramática. Assim, a forma passa a emoldurar as ações dos personagens e estes deixam de agir racionalmente, tal seres vivos e racionais, agindo sob grande tensão. E então o filme ganha outro conteúdo e formato, ao mesclar ação, terror e subterfúgios. O que passa a existir não é mais a reflexão, os conflitos Annie/Ellen ou Peter/Annie, ela agora age como detetive tentando ligar os fatos e entender a influência de Joan em sua vida. E os conflitos psicológicos acabam perdendo o sentido.

Narrativa termina com menção ao primitivismo

Os entrechos ainda a existir são usados para justificar a mudança do tema central. Mesmo a tensa e bem construída sequência na estrada em plena madrugada, quando Peter tenta socorrer Charlie, acaba como ato da Chama. A única referência ao Espiritismo se dá nas duas vezes em que Joan consegue se comunicar com Ellen e Annie com Charlie. Ainda assim, para desencadear e dar sentido ao desfecho. E se restringe a isto, sem menções à manifestação que une ciência, filosofia e religião, criada em 1857 pelo pedagogo francês Alan Kardec (Hippolyte Leon Denizard Rivail – 1804/1869) e praticada por 3,8 milhões no Brasil (IBGE 2010).

Deste modo o inesperado desfecho, recurso usado por Aster para justificar a mudança dramático-narrativa, se refere mais aos primitivos sacrifícios utilizados pelas manifestações religiosas da antiguidade. O que tira todo o significado da Chama e, inclusive, dos submersos rancores e traumas. E, portanto, da boa estruturação do terror psicológico. O cineasta estadunidense Scott Derrickson (1977) dá um bom exemplo em “O Exorcismo de Emily Rose (2005) sobre como construir uma narrativa realista em torno da possessão sem cair em recursos fáceis. Aster deveria assisti-lo.

Hereditário (Hereditary). Drama. Terror. EUA.2018. 126 minutos. Trilha sonora: Collin Steltson. Montagem: Jennifer Lame/ Lucian Johnston. Fotografia: Pawel Pogorzelski. Roteiro/direção: Ari Aster. Elenco: Gabriel Byrne, Toni Collette, Alex Wolff, Ann Dowd, Milly Shapiro.

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