Impeachment e soberania do voto popular

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Foto: Filipe Araujo

Na semana que passou os órgãos de imprensa noticiaram a renúncia do primeiro-ministro da Itália, Giuseppe Conte. O premier, diante de uma crise desencadeada pelo rompimento por um dos partidos que compunham o governo, solicitou voto de confiança ao parlamento. Ao tê-lo obtido por uma margem muito apertada, utilizou a manobra de apresentar a renúncia, na perspectiva de obter do presidente Mattarella um novo mandato e compor um novo gabinete. A invocação do voto de confiança é um instrumento, nos sistemas parlamentaristas, de manutenção ou dissolução dos gabinetes de governo (poder executivo) para solução de eventuais crises políticas ou institucionais.

Em Israel, também parlamentarista, ocorrerá agora a quarta eleição do Knesset (parlamento israelense) em dois anos. Desta vez, diante do fato de não se ter conseguido um acordo em torno da aprovação do orçamento do país, situação na qual o parlamento é dissolvido automaticamente. As outras eleições decorreram do fato de que nenhum partido tinha alcançado maioria para formar o gabinete de governo. Na última eleição, Netanyahu e seu principal opositor firmaram um acordo, possibilitando a constituição de um governo que, embora frágil, tinha por objetivo evitar uma nova eleição em pleno processo de expansão da pandemia.

Cito essas duas ocorrências recentes para ilustrar que nos sistemas parlamentaristas tanto o poder executivo (gabinete de governo) como o poder legislativo (parlamento), ou ambos, podem ser dissolvidos sem que isto represente um atentado à soberania do voto popular. Para que se instale o governo, no parlamentarismo, é preciso constituir uma maioria minimamente sólida. Não havendo consenso para constituir essa maioria, novas eleições são convocadas. Em situações de crise de governabilidade ou crises institucionais, os mecanismos de recomposição do sistema, como a invocação do voto de confiança, são acionados, podendo resultar ou na dissolução do gabinete ou na convocação de novas eleições. Nesses sistemas, o presidente ou monarca gozam de estabilidade, mas pouco ou nenhum papel jogam na governabilidade, pois se constituem tão somente em chefes de Estado e não de governo.

Nos sistemas presidencialistas, tal flexibilidade não existe. Mais uma vez é necessário reafirmar o que já apontei em outros artigos, o presidencialismo surge na fundação dos Estados Unidos, como resultado de um pacto federativo entre treze colônias independentes que decidiram constituir uma nação. O sistema idealizado é absolutamente rígido. Não prevê nenhuma hipótese na qual tanto o governo (poder executivo), quanto o parlamento (poder legislativo) possam ser dissolvidos. Na constituição norte-americana, foi previsto o impeachment aplicável ao presidente da república, instrumento que já havia sido usado pela Câmara dos Comuns na Inglaterra, na Idade Média, para cassar autoridades. O impeachment previsto, no entanto, tão somente se aplica em casos de cometimento de crimes. O princípio que se estabelecia na nação surgente, por suas características federativas, era de que crises de governabilidade ou institucionais deveriam ser resolvidas entre os estados. A principal delas, como se sabe, resultou em guerra civil entre os estados do norte e os do sul.

Na América Latina, a adoção do sistema presidencialista decorreu de dois fatores. O primeiro, foi a inexistência de outras referências consolidadas de sistemas de governo quando das suas independências, para além do presidencialismo norte-americano, a monarquia parlamentarista inglesa e as monarquias absolutistas. A promissora revolução francesa já havia passado pelo Reino do Terror de Robespierre, o Diretório, o Consulado e a restauração da monarquia por Napoleão Bonaparte. O segundo, porque o presidencialismo tornou-se um sistema atraente para as lideranças dos movimentos libertadores, impregnados de grande vocação caudilhesca. Atribui-se a Simon Bolivar a afirmação de que o que a América Espanhola precisava era de monarcas com títulos de presidente, algo que não posso confirmar. O que posso assegurar, é que, de fato, ele defendeu a instituição de presidencialismo e de senados vitalícios. Em outras palavras, isso seria o mesmo que implantar uma monarquia não hereditária. Os supostos pactos federativos às avessas, ocorridos, não passaram de pactos estabelecidos entre as elites locais para partilha de territórios e acomodação de interesses distintos. Uma ou outra tentativa de pacto federativo, como na América Central, fracassaram rapidamente. De qualquer forma, como boa cópia do sistema americano, a maioria dos novos países americanos ao adotarem o presidencialismo também copiaram o instrumento do impeachment.

Sem mecanismos institucionais para solução de crises de governabilidade ou institucionais, as mesmas se resolviam ou por processos revolucionários ou por golpes de Estado. Assim, a América Latina se caracterizou, desde a independência de seus países, por sucessivos golpes. Governos com a mínima fisionomia popular ou progressista raras vezes chegavam ao final de seus mandatos, sendo retirados do poder pela força. Em especial no período da Guerra Fria, virou praxe das elites sul-americanas a promoção de golpes e instauração de ditaduras militares. Geravam-se crises de governabilidade e se tomava o poder pelas armas, sob a justificativa de garantia da ordem pública. Nessas últimas três décadas, o método se tornou mais sofisticado, passando-se a recorrer ao impeachment. Somente no Cone Sul foram 14 presidentes afastados por este instrumento nas últimas três décadas.

Nos Estados Unidos, foram objeto de tal dispositivo os presidentes Andrew Johnson, Bill Clinton, Richard Nixon e Donald Trump, sendo que o único que foi efetivamente afastado foi o primeiro. Nixon renunciou antes da votação da admissibilidade do processo pela Câmara dos Representantes. Nos quatro casos, os processos se deram em decorrência do cometimento de crimes, como prevê a legislação norte-americana. Na América Latina, descobriu-se que o instituto do impeachment poderia ser um instrumento para dar ares de legalidade a rupturas em crises de governabilidade. Via de regra, pinçava-se um crime de corrupção e se produzia o impedimento do governante eleito. Não que em muitos casos tais crimes não tivessem ocorrido, mas eram mera cortina de fumaça para encobrir a real motivação dos processos. No Brasil, no caso Collor o objeto do impeachment foi a aquisição de um Fiat Elba, um veículo de preço médio, supostamente adquirido com dinheiro proveniente de propina. No caso Dilma, a justificativa foi um suposto “crime ciclístico”.

Nas circunstâncias atuais, já não se pode falar que o país não vive uma crise de governabilidade, pois nos encontramos em total situação de descalabro sob todos os aspectos que se possa abordar a situação nacional. A crise sanitária já levou mais de 220 mil vidas e poderá levar mais umas 200 mil diante da irresponsabilidade do governo. A economia já se encontra quase que totalmente destruída e tende a se afundar ainda mais. A destruição ambiental, incentivada pelo próprio governo, atingiu proporções inimagináveis. Nossas relações internacionais foram totalmente destroçadas, para não dizer, ridicularizadas mundo afora. O Brasil se tornou pária internacional. A crise social se acentua aceleradamente e com ela a insegurança e a violência. Há quem considere que processos de impeachment são traumáticos para o país. Há que se dizer que traumático está sendo permanecer submetido a este total desgoverno.

Não bastasse o descalabro já promovido por Bolsonaro, a crise de governabilidade já chegou aos porões do Palácio do Planalto. Os militares começam a sentir o ônus da aventura de terem se envolvido com este governo. O vazamento do whatsapp trocado pelo assessor de Mourão com o chefe de gabinete de um deputado, publicado pelo Antagonista, é um forte indício de que a milicada já conspira para derrubar o insano Capitão. Não há a mínima hipótese deste governo terminar o seu mandato a bom termo.

O impeachment não foi um instrumento idealizado para solucionar crises de governabilidade, mas no presidencialismo não há outro que se possa aplicar dentro da normalidade institucional. Cada dia de sobrevida de Bolsonaro no poder é um desastre a mais para o país. Sua remoção imediata é a única forma de se evitar a tragédia completa. Não se justifica a tese de alguns, inclusive de certas figuras do campo progressista, de que a soberania do voto popular deve prevalecer e que o caminho é derrotar o insano nas urnas em 2022.  Conformar-se com a continuidade deste governo passou a significar cumplicidade com sua política de morte. Crimes que justifiquem a abertura de um processo de impeachment é o que não falta, sequer é necessário procurar um Fiat Elba ou uma pedalada fiscal. Impeachment Já!

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