“Invictus”: jogando com os símbolos

Em filme sobre a construção da nação sul-africana, diretor estadunidense Clint Eastwood mostra como Nelson Mandela uniu a maioria negra e a minoria branca em torno da seleção nacional de rúgbi, na Copa do Mundo de 1995.

A cena de abertura de “Invictus”, penúltima obra de Clint Eastwood, espécie de prólogo para a construção da narrativa, dá o tom deste que é um filme sobre a importância dos símbolos na construção da identidade nacional. De um lado estão os meninos negros jogando futebol num paupérrimo campo de várzea, do outro lado da estrada os brancos treinam para uma partida de rúgbi, num campo gramado e cercado de tela. Entre eles, como se a chamar a atenção de ambos para o futuro, surge Nelson Mandela. Enquanto os garotos o aplaudem, os membros da minoria, descendentes de ingleses, holandeses e alemães, demonstram ódio por ele ter sido libertado depois de 27 anos de prisão. O resultado do apartheid fica visível quando se vê a penúria dos primeiros, descalços, maltrapilhos, enquanto os integrantes da equipe de rúgbi, a Springboks, nome de fantasia da seleção nacional, trajam o impecável uniforme branco de listras horizontais negras, mas seu uniforme oficial é verde de gola amarela.

Será em cima destas cores e do que ela significava para a minoria branca e o quanto era odiada pela maioria negra que Eastwood, com base no roteiro que Anthony Peckhan retirou do livro “Jogando com o Inimigo”, escrito pelo jornalista inglês John Carlin, irá construir uma narrativa enxuta, destituída de qualquer desvio para comentários fora de contexto. Toda ela está centrada no que o espectador viu na abertura do filme: os negros para se opor à minoria branca torciam contra qualquer seleção nacional, identificando-a com os apartheids social, político, econômico e cultural. Diversas sequências de partidas disputadas pela Springbocks o mostram – ela representava apenas a minoria que enfeixava nas mãos o poder de infligir horror aos descendentes dos povos khoisan (primeiro a chegar milênios antes ao extremo sul da África), bosquímanos, zulus, sothos, ovambos e tsuanas. Então, a competição de que ela participasse nada representava para os negros do ponto de vista da identidade nacional.

Mandela recebeu um país construiu a nação

Esta fragmentação da identidade nacional será ao longo da narrativa o centro da construção política que Mandela empreende depois de ter sido eleito presidente em maio de 1995, com 58% dos votos. Ao sentir que havia herdado um país, ele percebeu que mais do que preservar uma área geográfica, delimitada pela independência da África do Sul em 31/05/1961, ele teria que construir uma nação, a partir de negros, brancos, indianos e outras minorias. E que os símbolos existentes eram por demais dispersos, inexistindo os que refletissem a identidade nacional a partir da identificação comum a todos os povos que viviam na África do Sul. A continuar separados como estavam, eles acabariam defendendo seus interesses em separado, jamais os do país. Sua tarefa, a partir daí, foi convencer a sua assessoria da necessidade de uni-los em torno da Springbocks. É emblemática sua ida à assembléia promovida por seus camaradas do Congresso Nacional Africano (CNA) para demovê-los da decisão de não apoiar a seleção nacional por ela representar o poder branco.

Mandela, com a calma de quem passou décadas refletindo sobre as táticas a serem usadas para acabar com o apartheid, se opõe à decisão unânime que acabavam de tomar. Os faz ver que eles o elegeram seu líder e como tal ele deveria mostrar-lhes que não podiam, após a derrota do sistema do apartheid, pensar como o poder que ignora os interesses e símbolos da minoria. Não seria apenas uma questão aritmética, tipo de somos maioria e ditamos agora as normas, pois esta minoria era o poder de fato ao controlar a polícia, o exército e a economia. O que estava em jogo ali era a questão do poder, da manutenção das fronteiras geográficas, da unidade do país, não apenas a oposição à seleção nacional de rúgbi, símbolo maior do poder dos descendentes de holandeses, ingleses e alemães. Os poucos votos que recebeu durante a assembléia ao invés de frustrá-lo o fez levar adiante sua tática de construção da nação sul-africana.

Negros odiavam a seleção de rúgbi

Desde que os portugueses, no século XVI, fizeram escalas no território sul-africano o país já havia sido dividido diversas vezes: Transvaal, Namíbia e Orange. E corria o risco de sê-lo de novo, caso não fosse bem equacionado. A dimensão do problema surge ao longo das sequências com a clareza permitida pelo roteiro bem estruturado por Peckhan, pela encenação de Eastwood, pela interpretação contida de Morgan Freeman. Ao invés de impor a unidade pelo decreto, incentivando a prática do rúgbi pela população negra, ele preferiu usar os símbolos para obtê-lo. Havia resistência de parte a parte para não aceitá-lo. Seus companheiros de CNA por terem trabalhado durante décadas para que seu povo odiasse a Springbocks, identificando-a com as lideranças brancas que o oprimia; a elite branca por desconfiar que Mandela a levaria para os caminhos seguidos por Angola e Moçambique, países que conquistaram sua independência de Portugal sob a liderança de partidos marxistas. Qualquer passo errado dado por ele, levaria ao choque entre ambos.

Mandela percebeu desde o início que o veneno de antes era o antídoto para curar o mal engendrado pelo apartheid. Enquanto sua principal assessora, Brenda Mazibuko (Adjoa Andoh), lhe chamava atenção para as questões urgentes da população e do país, ele se dedicou a criar a nação desconstruíndo o ódio de seu povo à seleção nacional de rúgbi e as desconfianças que os brancos tinham dele. Montou uma estratégia em que movia as peças devagar, fazendo experiências em sua própria equipe de segurança. As desconfianças do chefe de inteligência Jason Tshabalala (Tony Kgoroge) sobre a participação de seguranças brancos na equipe por ele dirigida ilustram a dificuldade de aceitar quem antes o reprimia, como se tudo tivesse ficado para trás. Pela explicação de Mandela o que contava ali era a experiência deles como profissionais – com a diferença de que agora estavam sob o comando de um militante do CNA. Era uma outra forma de exercício de poder.

Mandela fez de Pineaar seu parceiro

O livro de John Carlin e o roteiro de Peckhan permitem a Eastwood movimentar-se no entorno de Mandela e para além de seu gabinete. Surge daí o homem, o ser madrugador, o chefe-de-estado que nas recepções dança e joga charme às parceiras, irrita-se quando o lembram da família, dos problemas que tinha com a mulher, Winnie Mandela, as discussões com a filha Zindzi (Bonnie Henna). E, sobretudo, suas ironias e bom humor. Ao contrário do que fez o diretor dinamarquês Billy August, em “Mandela: Luta pela Liberdade”, que o destitui de qualquer traço humano, inclusive de suas fragilidades. Dotando-o das complexidades naturais de um homem de sua idade, quase octogenário, Eastwood termina por aumentar sua empatia com o espectador. O centro da ação, no entanto, são os lances de xadrez que joga com o capitão da equipe de rúgbi, François Pineaar (Matt Damon), membro da elite branca. Este sabe que a seleção não é amada pela maioria negra, que joga mal as partidas internacionais, que não tem como se superar para fazer um bom Campeonato Mundial como desejaria.

É, portanto, alguém propício à abordagem, e Mandela o percebe logo no primeiro encontro. Fazê-lo seu parceiro era uma questão de habilidade. Desde que saíra da prisão, em 1990, Mandela vira a história avançar e recuar. Começara assumindo a presidência do CNA, em 1991. Mas em três anos a luta contra a elite branca não diminuíra, assumira várias formas, muitas delas violentas. Nove mil militantes do movimento anti-apartheid foram mortos. Em abril de 1993, Chris Hani, secretário-geral do Partido Comunista Sul-Africano, membro do Comitê Central do CNA, foi assassinado. Não bastasse isto, enfrentou a divisão do movimento da maioria negra contra a minoria branca, promovida pelo Inkata, partido liderado por Mangosuthu Buthelezi. Ali, diante dele, configurada em Pineaar, estava a chance de transformar os conflitos ainda em curso numa vertente nova para o poder conquistado pelo CNA, ápice da luta iniciada nos anos 50.

Líder do CNA sentou-se com o inimigo Pineaar

Eastwood não retrocede no tempo para contextualizar as reflexões e os impasses por ele vividos. Estas referências servem, porém, para situar historicamente a dimensão do problema por ele enfrentado. Sentar-se com o inimigo, vendo-o como aliado, era uma tática a que se acostumara. Desde os carcereiros na Ilha de Robben, na qual passava grande parte de seu dia quebrando pedra, até sentar-se com os líderes da minoria branca. O último deles, Frederic W.de Klerk, como qual dividiu o Prêmio Nobel da Paz, e, segundo John Carlin não se sentiu em boa companhia (1). A tarefa com Pineear parecia-lhe tão complexa quando não impossível. Transformar idéias em imagens, construir subtextos, dimensionar o que o personagem quer, na verdade, transmitir ao espectador cada nuance, não é das tarefas mais fáceis para roteirista e diretor. Eastwood no ápice da criatividade, com um roteiro que não dá lambadas como o de seu filme “A Troca”, cujo desfecho demora pra acontecer, consegue através de Freeman deixar explícita as intenções e as dificuldades dele, Mandela.

Estas intenções ocorrem quando a Springbocks, de ação restrita a seu campo de treinamento, passa a percorrer os batustões (aglomerados) país afora. Seus integrantes entram em contato com uma realidade desconhecida por eles, dado que passaram a vida confinados às áreas privilegiadas. Vistos com indiferença, odiados, eles não são motivo de curiosidade – salvo pelo detalhe de um de seus membros ser negro. Este, sim, provoca verdadeiro frenesi na garotada e então os demais se valem dele para ganhar a simpatia da comunidade negra. É a oportunidade para o espectador vislumbrar a realidade da maioria negra do século XVI a 1910, quando foi criada a União Sul-Africana, e daí até o ano da ação do filme: 1995, com pouca ou nenhuma melhoria, pois os negros por não tinham direitos políticos, sociais ou econômicos, não podendo assim desenvolver suas potencialidades.

Jogadores da seleção se recusam a cantar hino

A câmera de Eastwood, embora não passeie pelos batustões com a mesma ênfase que a do sul-africano Gavin Hood em “Infância Roubada”, Oscar de Melhor Filme Estrangeiro de 2006, deixa antever a miséria, as más condições de vida e a falta de perspectiva para a juventude. Percebe-se que Mandela queria que os jogadores da seleção nacional de rúgbi realmente representassem não a elite branca, mas a nação, que ele intentava formar. A viagem pelo país possibilitou-lhes esta compreensão, dado que nem o hino nacional do pós-apartheid eles queriam cantar. O chamavam de “hino dos terroristas”, por ter sido criado pelo CNA. O resultado dessa peregrinação em meio à pobreza herdada de séculos de marginalização é o surgimento de uma nova seleção, com espírito competitivo, integrada, centrada em conquistas antes inimagináveis. O jornalista esportivo Johan de Villiens (Robin Smith) sintetiza a visão que a maioria tinha da Springbocks e a transmite em seus programas televisivos. Além de torná-la símbolo de todas as etnias que viviam nos limites geográficos da África do Sul, Pineaar tinha de melhorar seu rendimento no campo.

Então entra Mandela com sua compreensão do papel dos símbolos na formação da nação, algo hoje banalizado pela sociedade de consumo, que valoriza mais as logomarcas e as etiquetas dos conglomerados empresariais, negligenciando a simbologia que sedimenta a identidade nacional. O cidadão, agora simples consumidor, é reconhecido pela marca que leva na roupa, na pasta, no automóvel, na moto, a adoração que tem pela logomarca da bebida, do produto que consome; a projeção que faz de si ao se identificar com o que o leva a pertencer a uma “tribo” ou grupo de elite.

Perdeu o senso de pertencimento, de estar onde o entorno e as pessoas o tornam parte de si, a chamada coletividade. Um tipo de esquizofrenia gerada pela perda da identidade nacional. O contrário do que pretendia Mandela ao começar a circular com boné verde e camiseta verde de gola amarela. Usá-los passou a ser visto como pertencer ao grupo da Springbocks. Percebe-se que Pineaar adere à idéia sem entender até onde ele, Mandela, queria chegar. Só num momento crucial do filme é que irá ver o alcance da iniciativa do agora líder da nação sul-africana.

Diretor põe espectador no meio da partida

Nesta altura da narrativa, Eastwood já conseguiu mesclar a estratégia de Mandela às várias táticas que ele vai adotando, mudando e acrescentando peças. O espectador já está ganho para o esporte que ele desconhece: o rúgbi. Praticado com furor na Nova Zelândia, Austrália e na Inglaterra. Um esporte em que a força e o contato físico é que contam. Eastwood o leva para o centro da partida – mostra-lhe o que vale ali, a forma de atacar e defender e quando é marcado o ponto, em rápidas cenas e a reação dos jogadores. Lembra a mudança feita por John Frankenheimer na forma de filmar pilotos, carros, curvas, ultrapassagens numa prova da Fórmula 1. A câmera ficava colada a cada manobra, pegando reações, tensões, pondo o espectador, enfim, no meio da corrida. “Grand-Prix” mudou a forma de se filmar competições automobilísticas.

Eastwood faz o mesmo com um esporte de restrito público, salvo em alguns países, como o rúgbi. Não só o enquadramento da partida em si, lances mais importantes, como forma de produzir ação, o entorno para ele também conta. A entrada da equipe em campo, com a preparação, o grito de guerra do grupo, o avançar para o campo. Numa bela seqüência, ele põe a câmera atrás dos jogadores e os mostra entrando no campo – é o ponto de vista deles. Noutra sequência, eles entram em campo – o ponto de vista do público. Com Mandela então há verdadeiro frenesi. Conta a posição da câmera, o ângulo que ela pega, na maioria das vezes está aberta, em grande plano. São raros os closes, no máximo a câmera está próxima – o chamado plano aproximado. Dá para sentir o clima, o calor, a ansiedade, a expectativa da multidão. Trabalho não só de encenação, sobretudo de montagem, a cargo da dupla Joel Cox /Gary Roach, de coordenação entre planos, dando sentido ao que a câmera capta.

País parou para ver a seleção

Estas sequências provocam impactos, pois Eastwood vai num crescendo, jogando com a emoção do espectador que recebeu ao longo da narrativa informação suficiente para torcer pela seleção nacional de rúgbi sul-africana na Copa do Mundo de 1995. Está, portanto, preparado para este clímax. O desfecho, a recompensa de Pineaar por ter injetado confiança e tática em seus jogadores e a de Mandela por fazer o país parar para ver um jogo de rúgbi. John Carlin, hoje editor sênior do jornal espanhol El País, avalia:”Não sou o único a concluir que o torneio eliminou a chance de um movimento terrorista da direita branca depois que ele assumiu o poder”(2). Certamente a visão de Mandela de que os símbolos são importantes para a construção da nação devem ter contribuído. Não mudou a cor da bandeira, das camisas das equipes esportivas, os hinos evocam um e outro lado, os descendentes dos khoisans, dos zulus, entre outras etnias, passaram a aceitar uma simbologia que antes era do opressor. Deixou de ser presidente do país para liderar a nação.

É necessário observar que Mandela triunfou em meio ao furacão que varreu as experiências socialistas no Leste Europeu, a partir de 1989. Sua libertação foi possível no marco da dissolução da URSS, pelas pressões internacionais contra o apartheid, o fortalecimento do CNA e, sobretudo, o aumento da resistência de seu povo. O fato altamente elogiável foi ele entender o momento histórico e valer-se de algo aparentemente secundário para salvar quatro décadas de luta contra o poder branco, ou seja, desde que, em 1952, o zulu metodista Albert John Luthuli criou o Congresso Nacional Africano (CNA), ao qual ele, Mandela veio aderir. E, uma vez no poder, flexionou a tática de seu movimento, agora partido, para não cumprir a cruel sentença ouvida de alguém que o odiava: “ele pode ganhar a eleição, mas comandar o país…” A história mostrou quem estava errado.

Mandela triunfou onde outros viam fracasso

Eastwood não entrou nestes meandros, preferiu no desfecho de seu filme render-lhe uma homenagem. Não apenas glorificando-o pelo fato de triunfar onde todos viam um fracasso, afinal, eles não enxergavam ao redor, concentravam-se só no “aspecto secundário” do esporte – ele estava debruçado sobre o tabuleiro situando seu país no concerto das nações no pós-Queda do Leste Europeu. Esta glorificação ele, Eastwood, lhe dá ao focá-lo em meio às comemorações pelo resultado da Copa do Mundo de Rúgbi, cercado pelo povo, com seu carro não podendo avançar. Ele diz ao chefe de segurança Jason; louco para tirá-lo do meio da multidão: “Pode deixar, estou sem pressa”. Também ele queria saborear junto com seu povo o grande triunfo. Um filme para se ver no contexto da presidência Obama. Mandela passará à história como libertador de seu povo. Barak Obama já deixou de ser incógnita: os EUA continuam o império canibalístico. A história por ele passará!

“Invictus” (“Invictus”). Drama. EUA. 2009. 134 minutos. Roteiro: Anthony Peckhan, baseado no livro “Jogando com o Inimigo”, do jornalista John Carlin. Elenco: Morgan Freeman, Matt Damon, Tony Kgoroge, Adjoa Andoh, Julian Lewis Jones, Patrick Moforeng, Robin Smith.

Nota

(1) Coser, Raquel, “Como Mandela transformou o ódio em união”, Caderno 2, D6, O Estado de São Paulo, sábado, 30 de janeiro de 2010.

(2) Obra cit., idem, idem
 

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