“Jauja”, da ordem das fábulas

Através de diferentes visões dos personagens, cineasta argentino Lisandro Alonso relembra o genocídio dos índios mapuches, araucanos e ranquels.

Muitas vezes, neste “Jauja” a narrativa segue linear, mas a compreensão dos fatos por ela encadeados configuram visões diferentes da que move a tenaz busca do colono e engenheiro dinamarquês Gunnar Denisen (Viggo Mortensen). Europeu, dotado da racionalidade do século XIX, quanto mais ele se apega à realidade para entender o desaparecimento da filha Ingeborg (Viilbjork Malling Agger) mais se afasta dela. Não só pelas falsas pistas, como pelas diversas formas que elas assumem em sua procura.

Através deste enigma, o cineasta argentino Lisandro Alonso monta essa instigante fábula sobre como diferentes personagens projetam os cruéis feitos do coronel Zuluaga numa região montanhosa da Patagônia (Puelmapu), em 1882. Quase invisível, ele persegue e extermina os índios que a habitam há séculos, durante a chamada Colonização do Deserto. Por isto é admirado pelo tenente Pitalunga (Adrián Fondari), que o elogia por seu profissionalismo e coragem, e mitificado e temido pelo jovem soldado Corto (Diego Román).

Além disso, Zuluaga nunca é visto no mesmo lugar, está sempre em movimento. Cada um de seus comandados, feito o chefe dos topógrafos Angel Makibar (Estevan Bigliardi), a fazer o levantamento da região, garantem tê-lo visto em diferentes lugares. Estas multifacetadas visões terminam por fazer Denisen querer conhecê-lo. Mas ele nunca está ao seu alcance, embora pressinta sua presença por meio de seus violentos atos. E muitas barreiras se interpõem entre eles, devido à racionalidade do dinamarquês.

Racionalidade não ajuda Denissen

Denisen busca sentido tanto em sua enigmática figura quanto na inesperada fuga de Ingeborg, de 15 anos, com o soldado Corto. No entanto, as barreiras interpostas entre eles derivam de outra natureza, ou seja, de projeções alheias à sua cultura. Para superar suas dificuldades, tem de atentar aos fatos por meio da mitificação, não da lógica. Muito menos se apoiar na visão de Pitalunga sobre Zuluaga, baseada no relacionamento entre militares. Esta será, em suma, sua dificuldade para entender o difícil enigma.

Estas dualidades estão assentadas em construções de outra ordem. Ao mitificar Zuluaga, Corto retirou dele o viés humano, que sustenta o respeito ao outro. No caso, o direito dos índios às suas milenares terras. Tornou-o um ente mitológico, capaz de mutar em qualquer ser humano ou animal, para punir os perseguidos a seu modo. Pode ser tanto o enorme e esquisito cão a se alimentar dos corpos estraçalhados quanto a mulher (Ghita Norby) que recebe Denisen em sua caverna apetrechada de todo tipo de utensílios, e nada perceber.

Alonso constrói, assim, uma narrativa centrada na visão popular, do soldado nascido na região, não na erudita, lógica, que busca no realismo imediato explicações para os atos de Zuluaga. Denisen representa, de qualquer forma, o europeu, o colonizador, desinteressado na linguagem dos locais. Nem ao encontrar Corto ferido, agonizante, e este atribuir a Zuluada a carnificina ao seu redor, lhe presta atenção, só quer saber o paradeiro da filha. Não à toa acaba perambulando pelas montanhas e vales em completa alucinação, como um cão danado.

Narrativa se torna um conto borgiano

Indiretamente, Alonso e seu corroterista Fabián Casas centram a ação na fuga de Ingeborg e Corto pelos vales, planícies e montanhas da Patagônia. Entretanto, com a mitificação de Zuluaga, o filme ganha outro contexto. Não o do amor juvenil da rica adolescente estrangeira pelo pobre soldado argentino, mas sobre a interferência do poder militar na vida das populações indígenas. Na parte final, a narrativa mescla ambos os temas, dotando-os de realismo mágico, tão intricado quanto um conto borgiano.

Como nos westerns, a paisagem matizada pelas montanhas cobertas de pedras escavadas, planícies tomadas de relva de intenso verde, lagos e rios plácidos contribui para a angustiante caminhada a esmo de Denisen. Ele e os demais, além de acossados por Zuluaga, se tornam dela prisioneiros. O que reforça o enigma, destrinchado na sequência em que Ingerborg, já na Dinamarca, se religa ao pai por meio do amuleto índigena. O que ajuda a entender o que aconteceu com ele na Patagônia.

Com planos-sequências fixos, elipses a ceder espaço à reflexão, tela em formato 4:3, quadrado (non widescreen), que elimina as bordas, Alonso foge ao drama argentino centrado na classe-média atual. E aborda a extinção dos povos indígenas de seu país, em sequências de grande impacto. Assim, relembra o ignorado genocídio dos índios araucanos, mapuches e ranquels, durante a Campanha do Deserto, na Patagônia, chefiada pelo General Júlio Argentino Roca, no período 1878/1885, para ceder espaços aos imigrantes europeus e às grandes fazendas de gado.

“Jauja”. Drama.Argentina/Dinamarca/França/México/EUA/Alemanha/Holanda/Brasil. 2014. 108 minutos. Montagem: Natalia López/Gonçalo DelVal. Música: Viggo Mortensen. Fotografia: Timo Salmínen. Roteiro: Lisandro Alonso/Fabián Casas. Elenco: Viggo Mortensen, Viilbjork, Malling Agger, Adrián Fondari, Esteban Bigliardi, Diego Román.

(*) Festival de Cannes 2014. Mostra Um Certo Olhar. Prêmio da Crítica.

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