“Jogo de Cena”: Vidas nuas e cruas

Eduardo Cotinho cria universo rico em experiências femininas em um filme que, classificado como documentário, vai além deste gênero.

Quem for assistir a “Jogo de Cena”, do mestre Eduardo Coutinho (“Cabra Marcado para Morrer”, “Edifício Máster”), pode, de repente, achar que está diante de um filme de entrevista, daqueles que as pessoas são colocadas em situações que descambam para o dramalhão, cheio de decaídas, miséria e amores traídos. Em muito semelhante às entrevistas mundo-cão a que se acostumou a ver em programas ditos “populares” na televisão, ainda hoje comuns. Com certeza lhe causará incômodo, dada a forma como o diretor montou seu filme, com as entrevistadas chegando e sentando-se diante de um entrevistador onipresente, estilo Sargentelli, de quem se ouve apenas a voz ou, de vez em quando, se vê de perfil. Não ver o rosto do entrevistador o transforma, com certeza, num inquiridor, aquele que pode indagar sem que mostre suas reações. Se o faz de forma tranqüila, sem enrugar a face ou vergar o corpo pra frente, para se impor ao entrevistado; só deixa acompanhar o tom calmo de sua voz.



O espectador então fica à sua mercê, assim como quem senta numa cadeira que, embora de teatro (o Teatro Glauce Rocha, no Rio de Janeiro), fica entregue a quem o conduz por trilhas que levam direto ao que tem de mais íntimo: sua vida individual. Esta, mesmo cercada das ações coletivas, deixa espaço para a vivência que só a pessoa pode refletir, ainda que muitas vezes não entenda para onde sua vida se encaminha. Então o espectador se desconcerta, porquanto fica frente a frente consigo mesmo. Aqueles fatos que se desenrolam através de palavras, criam um rol de ações que podem ser os de sua própria vida. São fatos muito reais, coisas que podem acontecer a qualquer um. Não são, porém, ações de personalidades, de grandes nomes, mas de gente comum. Estão ali mulheres – são apenas elas as entrevistadas – com suas vivências, pedaços de vida que ao longo de poucos minutos formam um todo (foram entrevistadas 83 para o filme e 23 selecionadas na montagem final). 



Entrevistas são diferentes das mostradas na televisão
                    


Essas mulheres, negras, brancas, morenas, jovens, adultas, de meia idade, não têm como escapar ao entrevistador-oculto, que as faz se expor. Nada de o entrevistador mostrar-se conhecedor da vida da entrevistada. Ele apenas pergunta. Muito diferente das entrevistas dos programas “mundo-cão”, que tudo se encaminha para o dramalhão. É a partir daí que começa a diferença entre os dois tipos de entrevista. Coutinho montou seu filme de forma a pôr o entrevistado frente a frente com sua vida, sem lhe pressionar, o jogar de um lado ao outro, ele irá falar, deslindar seu subconsciente a ponto de se desnudar perante as câmeras. E com a possibilidade de seu drama – e se trata mesmo de drama – ser apenas ficção. Sim, este é um dos grandes achados de “Jogo de Cena”. O espectador fica preso ao dilema da entrevistada, segue-o, torce para que o desfecho seja feliz, mas logo surge uma atriz, famosa, rosto de televisão (e não é coincidência) a completar sua frase. E ele não sabe mais se aquilo é realidade ou ficção.



Principalmente porque aquele rosto famoso o acostumou a ver assim as cenas. Então ele entende que a ficção se introduz não para quebrar o encanto, mostrar que aquilo é ficção, mas que a “realidade” está sendo interpretada. Desnorteia. De forma inteligente e perspicaz. São criados, assim, dois campos: o do depoimento, que deixa então de ser entrevista, e o da interpretação. E se completam. De uma maneira que a atriz que interpreta a depoente, em determinado momento, como acontece com Fernanda  Torres, é pega pela força da verdade (sem aspas) e deixa sua vida se interfluir com a da depoente. O espectador se vê traído por suas impressões: há muito de real no texto dado à atriz para interpretar. Funciona como metalinguagem, uma maneira de reforçar o que a depoente diz, abrindo-se para o entrevistador que pergunta e se oculta, como se dissesse: diga lá, como foi tudo isso. Depreende-se que Coutinho trabalha com o chão do documentário, que é registrar o “real”, mas que toma a liberdade de introduzir a ficção, não criando “verdades”, mas interpretando o “real”.



Mulher duvida da bondade divina



“Jogo de Cena” deixa, a partir daí, de ser um documentário nos moldes tradicionais de quem fez um roteiro a seguir, mas buscou os fatos na vida cotidiana e depois o ordenou de forma a clarear o que pretende mostrar ao público. Nele, o que importa é a ordem, a montagem, do que lhe é revelado e como o diretor introduz as interpretações. Há momento em que o depoimento é seguido pela interpretação e depois retorna na forma de um novo depoimento, mais completo, mas menos vigoroso, pois tudo aquilo já foi mostrado, vivido, interpretado. Em dado momento o fluxo de consciência se impõe, as palavras da depoente fluem criando todo um colorido, uma multiplicidade de situações que faz emergir o arcabouço cultural brasileiro, com suas crendices, espiritualismo, fatalismo. O espectador fica preso àquele drama, porque ele faz parte de seu cotidiano. Todo dia ele o acompanha pela mídia. A mulher enovela sua vida, com os dois filhos, uma vida feliz e, de repente, o “acaso” se intromete e tudo vai pelos ares.



A mulher, negra, põe-se a duvidar da Bondade Divina, de ser possível que Ela lhe faça tanta maldade. E Lhe cobra. Deus não é tão justo assim. Ele lhe fala através de subterfúgios. Visões, sonhos, em que o filho aparece para lhe tranqüilizar. Uma interpenetração de matrizes culturais presentes também na inversão de posições que Coutinho faz com a atriz Andréa Beltrão e uma cidadã anônima. Elas falam da mesma situação: do filho que se foi, quando a gravidez tinha tudo para dar certo. Não se sabe o que vem da “ficção da atriz” e da “realidade da depoente”. Ela mesma, a exemplo de Fernanda Torres, diz mais à frente que se deixou trair em determinado momento. Há esperança, há crença de que a morte não se esvai quando predomina a certeza de que aquele que se foi permanece. Uma dialética que opõe a morte à vida, sem que aquela prevaleça. O espaço aqui é cultural, eivado de kardecismo, candôblecismo, hinduísmo, tudo que afirma ser a morte uma continuidade da vida e vice-versa.



Ódio da filha pelo pai na verdade é amor
                    


Não menos ousado, ainda que num terreno por demais freudiano, é o apego ao ódio que uma filha devota ao pai. Uma necessidade de afirmação, de seguir seu caminho, mas que ela exerce através do distanciamento dele. E um amor que não se extravasa. Mantém-se contido, represado; mesmo havendo a necessidade de ele ser dito; ser exercido. Tudo porque no meio havia uma palavrinha que nenhum deles ousava dizer: perdão. É brilhante o jogo que Coutinho leva a depoente (não é mais entrevista, mas depoimento, dada à forma como o diretor conduz as cenas e monta as idéias de filme), Fernanda Torres, e ele mesmo ao se introduzir na ação, a seguir. Eles se completam. Ele faz brotar o “Complexo de Electra”, o amor oculto da filha pelo pai e lhe permite ficar em paz consigo mesma. No caso inverso, da mãe, uma cientista (Sarita Houli Brumer), que não consegue dialogar com a filha, há muito dos temores da classe média, de alguém se desgarrar da família e seguir seu próprio caminho. A mãe se aferra às suas idéias e tenta fazer com que a relação com a filha, no filme, termine num happy-end.



As depoentes classe média que povoam “Jogo de Cena”, com seus dramas, falta de perspectiva de vida, sonhos irrealizáveis, têm contraponto forte nas proletárias negras, do morro, do interior, com suas idiossincrasias, suas formas nada ortodoxas de encarar a vida e dela tirar proveito de maneira às vezes hilariante. Uma delas (Mary Sheyla), numa vívida denúncia das estruturas racistas impostas pelas camadas dirigentes, fala de suas frustrações de não conseguir ser paquita, por não ser branca e loira, de olhos azuis. O que poderia ser uma barreira, uma muralha de difícil transposição, se transforma num desafio, e ela se encontra ao aderir a um grupo de teatro existente no aglomerado vizinho ao seu, no Rio de Janeiro. A arte como meio de afirmação, em suas próprias condições e circunstâncias. Não muito diferente da cantora negra (Jekie Brown) que desfia um hap, diante das câmeras, depois de reafirmar seu homossexualismo. Afinal, ela parece dizer: sou como sou e daí?



“Quem quiser que me aceite como eu sou”



Essa sem-cerimônia também o demonstra a carioca, negra, que se veste com poucos panos (isso mesmo!), realça os lábios com batom de vermelho forte, penteia-se como boneca e fala de forma desbragada. “Quem quiser me aceitar assim, bem, se não, fica assim mesmo”. Um universo rico então se abre para o espectador acostumado a estereótipos, de quem fala uma coisa e faz outra. Essas e outras mulheres se expõem ao longo de poucos minutos, mas com uma intensidade que o limite entre a realidade e a ficção pouco importa. A cada palavra jorram centenas de imagens e bem poderiam se transformar em filmes de ficção. Alguns mostram o quanto de ignorância ainda há sobre a gravidez (não vamos diante para não tirar o encanto deste depoimento) e o quanto deve ser feito para esclarecer sobre ela, principalmente junto às adolescentes e jovens das camadas desfavorecidas e nem tanto. Choca a simplicidade e, ao mesmo tempo, a sagacidade da mulher que viveu esse drama.



Dá para compreender que “Jogo de Cena” não é um documentário qualquer, se é que podemos chamá-lo assim. Coutinho consegue ir além deste gênero. Constrói uma série de realidades subjacentes, completadas pelo espectador, com suas vivências, medos, crendices e sonhos. Traça a cada depoimento um perfil do subconsciente e da realidade de segmentos de trabalhadoras e da classe média jamais visto. De forma simples, câmera fixa, cortes sutis, iluminação intimista, monta histórias bem particulares, escondidas, que ninguém poderia imaginar. Pouco importa de quanto de construção, de roteiro, há. Nem o recurso do contraponto das atrizes que poderia soar artificial, o trai. Pelo contrário, serve para reforçar o que ele pretende dizer. As atrizes estão ali como mulheres despidas de truques, a exemplo de Fernanda Torres, cuja face é revelada de forma nunca vista, e mostra-se simpática, nada dos tiques a que acostumamos a vê-la nas chatas séries da Globo. É um prazer vê-la de rosto limpo, os olhos brilhando e a fala cheia de nuances.



Dos filmes brasileiros lançados em 2007, “Jogo de Cena” é o mais inventivo. Não só no conteúdo, mas também na linguagem, numa estética, que tinha tudo para ser enfadonha, mas não é. E mostra que Coutinho, com uma filmografia já extensa (10 filmes), tem muito ainda a surpreender, como o faz neste filme. Pena que não receba a atenção devida e seu público seja o das salas de arte, com seus poucos e fiéis espectadores. Muito lucraria as escolas e instituições que o levassem para exibição e debate, notadamente sobre a condição feminina, a liberdade de ir e vir, a relação a dois, entre pai e filho, mãe e filha, e sobre como as crenças populares se enraízam no subconsciente do povo brasileiro. Principalmente para se contrapor à televisão com suas entrevistas “mundo-cão” que nada revelam da vida das pessoas, pelo contrário às expõem ao ridículo. “Jogo de Cena”, pelo contrário, realça o quanto de humano e belo tem cada vida.  



“Jogo de Cena”. Documentário. Brasil. 2007. Duração: 105 minutos. Direçã/roteiro: Eduardo Coutinho. Elenco: Marília Pêra, Andréa Beltrão, Fernanda Torres.

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