José Carlos Ruy apresenta A Mais Longa Duração da Juventude

Para quem conhece a militância política de José Carlos Ruy, ele não precisa de apresentação. Mas para quem não o conhece, posso falar do pouco que eu conheço. A primeira vez em que soube do seu nome, ele era editor de Cultura do Portal Vermelho. Depois, nos conhecemos um pouco mais no Alto da Sé, em Olinda, onde uma cachacinha acompanhou a nossa conversa, eu, ele e o escritor Marco Albertim. A saudade é tão grande daquela noite, que nem é bom falar.

Então, eu soube que ele havia sido da redação do jornal Movimento, enquanto militava no Partido Comunista do Brasil. E que ele trabalhara como editor na Abril, enquanto editava de coração o jornal A Classe Operária. Quero dizer, do ponto de vista da militância política, ele é um dos intelectuais da tradição comunista no Brasil.

O melhor que faço agora é deixar com vocês o estilo claro da bela apresentação de José Carlos Ruy para o romance “A mais longa duração da juventude”.

Um sonho que a repressão não destrói *

Um dia desses, conversando com minha filha, uma moça de 21 anos que estuda Letras, ela me falava, contrariada, de tantas moças e rapazes (e movimentos e artistas “jovens”) que parecem envelhecidos pela recusa a correr riscos, e pela vontade de ter todas as garantias e segurança que a sociedade oferece. São jovens na idade, mas não no coração, dizia ela.

Esta lembrança me ocorre no momento em que escrevo a “apresentação” a este livro extraordinário a que Urariano Mota deu um título preciso: A mais longa duração da juventude. Um relato ficcional amplamente ancorado na memória dos jovens que, por volta de 1970, resistiam à ditadura no Recife, como tantos outros Brasil afora. E traziam inscrito em sua bandeira, com letras de um vermelho flamejante: “revolução e sexo”. Nesta ordem, adverte Urariano.

Rapazes e moças que, por volta de seus vinte anos, viviam às voltas com as agruras da luta política e revolucionária, e os ardores do sexo que despertava. Agruras e ardores narrados com a precisão de acontecimentos “de ontem”, que continuam presentes, quase meio século depois, com a mesma e intensa realidade do brilho das estrelas de que conhecemos somente a luz que cruzou milhares de anos-luz, estrelas que talvez nem existam mais no momento em que sua imagem nos alcança.

A luz dessas estrelas é semelhante ao sonho que, hoje, meio século mais tarde, aqueles jovens ainda sonham mesmo que seus corpos já não tenham a força dos vinte anos. Mas o viço e o vigor do sonho permanecem. E fazem mais longa a duração da juventude.

Urariano Mota sabe do que trata. Autor de tantos livros, entre os quais se destacam Soledad no Recife (2009) e O filho renegado de Deus (2013), tecidos com o relato do vivido e do trágico (sobretudo Soledad no Recife) junto com o imaginado (como em O filho renegado de Deus) Urariano sabe como poucos mesclar memória e ficção. E de tal maneira as confunde na textura da escrita que, nela, o real vira imaginado, e o imaginado assume as formas do real. E o tempo funde as duas pontas do relato, entre o passado e o presente. Fundidos por uma reflexão fina, ligada – para dizer como se dizia há quase meio século – pela análise concreta de situações concretas. Não é filosofia, quer Urariano. Mas é reflexão fina, humanamente fina e que tem o dom de trazer à vida, com seus matizes, os debates com que aqueles jovens de esquerda, revolucionários, desenhavam seu futuro, o futuro de todos, do país e da humanidade.

Sonho que levou o garoto de 1969 a comprar um disco de Ella Fitzgerald onde poderia ouvir I wonderwhy, se tivesse vitrola (palavra antiga para toca-discos, também antiquada no tempo dos igualmente em superação cdplayers). Não importa que não tivesse! Teria, um dia, e ouviria a cantora cuja voz amava. Sonho semelhante ao que tantos anos depois, quando já não existia a ameaça da repressão ditatorial, queria uma bandeira do Partido Comunista do Brasil para envolver o caixão do amigo morto.

Sonho de abnegação, igualdade, de liberdade, de justiça para todos, de desapego perante os bens materiais e construção de um mundo novo, socialista.

Sonho embargado pela memória cruel da sordidez da delação do infame Cabo Anselmo, que levou Soledad e tantos outros à morte na tortura ou pelas balas da repressão da ditadura.

Nesta permanência da juventude não há, como há em Goethe, nenhum pacto com o demônio, como aquele pelo qual o poeta buscou a garantia da juventude permanente.

Não. Há o sonho fincado na herança Marx, Engels, Lênin, Mao Tse Tung, Ho Chi Minh, Che Guevara e tantos outros. Povoado por Turguêniev, Dostoievski, Tolstoi, Proust, Jorge Amado, Graciliano Ramos, Manoel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade e também tantos outros.

“Eu não sou um velho. Aliás, nós não somos velhos”, diz um diálogo neste livro maravilhoso. “Eu sei. O tesão de mudar o mundo continua”.

É o resumo escrito, lembrado, do sonho. Sonho que os jovens de meio século atrás ainda sonham. Como Vargas, Zacarelli, Luíz do Carmo, Nelinha, Alberto, Soledad, a turma toda.

Este é um livro que une, com a arte da memória, 1970 e 2016 – se fosse possível fixar parâmetros tão fixos… É um livro que olha o passado não pelo retrovisor que encara o acontecido faz tanto tempo. É um livro que faz do passado os faróis que iluminam o caminho do futuro. E reduz a distância no tempo revivendo, tanto tempo depois, a mesma luta que uniu, e une, tanta gente.

Um sonho contra o qual a barbárie e a estupidez dos cabos anselmos da repressão da ditadura foi impotente. E não o destruiu. E que é a senha para a mais longa duração da juventude.

* José Carlos Ruy, jornalista, comunista e sonhador.

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