“Julie&Julia”: Na cozinha e na vida

Culinária, comunicação e vida pessoal são as vertentes deste filme dirigido pela estadunidense Nora Ephron, que usa os contextos políticos dos anos 40, do século XX, e de 2002, neste início de milênio, para contar a história real de duas mulheres que colocaram a cozinha francesa como centro de suas existência

Cinema e comida às vezes rendem bons filmes. Principalmente se inseridos num contexto histórico que os justifique. Gabriel Axel, com base no livro homônimo da dinamarquesa Isak Dinesen, construiu o seu “A Festa de Babete” a partir da história de uma refugiada dos conflitos napoleônicos. E terminou tornando a cozinha no centro de confraternização e reconciliação entre os moradores de uma ilha norueguesa. O brasileiro Marcos Jorge transitou em “Estômago” por vários espaços para tratar da exploração e do aprendizado do nordestino Raimundo Nonato (João Miguel), na São Paulo deste início de milênio. E a estadunidense Nora Ephron, cujas comédias classe média tratam em sua maioria de futilidades (“A Feiticeira”, “Mensagem para Você”) e são logo esquecidas, situa “Julie & Julia” no início do macarthismo e no pós-9 de Setembro de 2001 para narrar as histórias reais de Julia Child e Julie Powell, entregues à engenhosa mistura de ingredientes que transformam a culinária em arte.

Situando o filme em duas épocas de forte contexto político, Ephron consegue trazer para o espectador o clima vivido no início da Guerra Fria pelo casal Julia e Paul Child (Stanley Tucci) na Paris de 1949. Ele chega pelas referências de ambos à situação criada pelo senador fascista, Joseph McCarthy, nos EUA. E mostra numa conversa à mesa com os pais de Julia o apoio que a alta classe média lhe dava. O centro da ação neste segmento é a luta de Julia para dominar as sutilezas da cozinha francesa. Sua intenção de mostrá-la aos estadunidenses e, depois, seu empenho em publicar, com duas amigas, o livro de receitas que a consagraria. Nos entrechos que o compõem, Ephron não consegue fugir à sua natural tendência a se debruçar sobre as futilidades de seus personagens, no caso aqui, de Julia. Construída com trejeitos, acento francês e risadinhas irônicas de Streep, ela se mostra sempre superficial, sem os acentos psicológicos que a torne menos preocupada com a culinária e mais com os problemas em ocorrência ao seu redor.

Diretora situa espectador nos tipos de comunicação

Chega a ser irritante. A narrativa só ganha contornos realistas e de maior interesse quando a jovem Julie Powell (Amy Adams) surge com seu rostinho angelical e nem por isto menos ardiloso. A exemplo de Julia, ela está abrindo seu caminho em meio ao caos que se transformou a Nova York, pós-Queda das Torres Gêmeas. Enquanto não o consegue, ela trabalha na agência governamental que cuida do projeto do memorial dos mortos, ouvindo as sugestões e reclamações dos parentes deles. Percebe-se a agitação e o ressentimento que predominava em 2002, um ano após o ocorrido. E como cidadãos comuns podem sofrer as consequências das intervenções dos EUA na vida de outros países. Muitos reagem às explicações de Julie com agressividade ao que ela reage com evasivas, transmitindo depois as reclamações deles à chefia. Neste segmento então o espectador encontra refúgio mais seguro para suas identificações.

Mas Ephron, roteirista e diretora, a moda dos cineastas atuais que dividem a ação em vários níveis consegue transitar entre os anos 40 e este princípio de milênio sem perder o ritmo e o contexto. Entre molhos, legumes, carnes, facas, fogões e panelas quando a narrativa está centrada em Julia, ela faz uma ponte entre os dois continentes. Situa o espectador nas formas de comunicação do período – o telex, o telegrama e a carta para o casal Child e a internet para Julie e Eric Powell (Chris Messina). A de Julia é demorada, permitindo as pessoas interagir frente a frente, se frequentar, comentar suas aspirações e ansiedades. A de Julie é agitada, instantânea, com as respostas surgindo quase no momento em que os fatos ocorrem. É como se Ephron quisesse mostrar como as comunicações mudaram o comportamento das pessoas e só as coloca frente em raros momentos, mesmo assim elas falam de trabalho o tempo todo. Só escapam a isto quando se trata de algum amigo mais íntimo.

Narrativa funde as histórias de Julie e Julia

Ex-jornalista, ex-companheira de Carl Bernstein, um dos repórteres do “Caso Watergate”, que derrubou Richard Nixon da presidência dos EUA, ela sabe o que está falando. É através de cartas que Julia se corresponde com a amiga Avis nos EUA. As respostas sempre demoram e quando chegam são motivo de alegria. Elas começam a dialogar sobre a possibilidade de o livro de Julia ser publicado e o filme entra por outra vertente: a editorial. O espectador tem, a partir daí, uma imersão no mercado livreiro e passa a ver como os editores encaram os originais dos escritores. Julie sofre por ter o seu recusado, motivo pelo qual se entrega ao desgastante trabalho na agência governamental, como funcionária pública. Ser escritora vira para ela um sonho. E, como Julia, divide suas aflições com o marido Eric, editor de uma revista. A narrativa funde, partir daí, as histórias de Julie e Julia. À moda dos referenciadores atuais, que se valem da obra de outra pessoa para construir a sua – ela, Julie, se vale da de Julia para escrever seu blog. E o filme ganha um acento agitado, cheio de tensão e sofrimento.

As nuances políticas também assumem caráter contundente. Paul, então um personagem entregue aos caprichos da mulher, surge por inteiro. A mão do fascista McCarthy o alcança. E numa hilariante sequência (elas hoje geram mais riso que choque pelo surrealismo que encerram), ele é interrogado nos EUA sobre seu envolvimento com o movimento comunista, por ter trabalhado na embaixada dos EUA em Pequim durante a Revolução Chinesa. E um dos interrogadores lhe pergunta se ele é gay. Diante do tom discriminatório, ele desanda a rir. O resultado está no filme. McCarthy (1908/1957), como se sabe, acabou denunciado por corrupção e punido pelo Senado estadunidense. Assim, a delicada situação de Paul permite a Ephron colocar o espectador com outra vertente da história: no que se transformou Julia Child. O filme, aparentemente sobre culinária, é, na verdade, sobre comunicação, tendo a cozinha francesa como impulsionadora da história.

Julia se torna  chef televisiva

“Julie &Julia” é baseado nos livros “Minha Vida na França”, de Julia Child e Alex Prud´homme, e “Julie &Julia”, de Julia Powell. Com o marido fora do serviço diplomático, Julia volta para os EUA e começa sua perambulação pelas editoras e se torna “chef televisiva” de milhões de donas-de-casa americanas (e não estamos contando o filme, só mostrando como o contexto político dita os rumos de situações aparentemente desconectadas). Surge daí a fórmula, imitada por centenas de programas de TV mundo afora, inclusive no Brasil, tentando pôr tempero e criatividade nos pratos comuns, servidos por milhões de mulheres (e por que não, homens) em seu cotidiano de tripla jornada de trabalho. Desta forma, a culinária entra na estrutura de mercado capitalista, com seus livros de receitas, revistas e jornais com páginas a ela dedicadas e a educação alimentar assume outro fórum: o de estabelecer padrões alimentícios. Talvez Ephron ao fundir os livros de Julie e Julia não tivesse esta intenção, no entanto, sintetizou em seu filme estas vertentes.

Elas fluem no ritmo da narrativa sempre leve. Julia, mais fútil, flutua no mundo em que a culinária francesa predomina. Não é uma chef, alguém que se faz pela criatividade na cozinha. Presta-se mais à comunicação – às vezes se atrapalha e faz rir. É hilariante a sátira feita de sua figura por um comediante. Riso mesmo provoca Julie na elaborada cena das lagostas – é ao mesmo tempo uma crítica ao extermínio desses crustáceos e uma brincadeira com a inabilidade dela em preparar o prato para uma importante visita. Sente-se pena deles e dela a um só tempo. E caí-se na gargalhada. Uma cena de atriz, de timming, de gag (construção da piada) e de diretora. Igual à que, frustrada, ela acaba no piso da minúscula cozinha por não ser entendida. O riso tirado de poucos elementos. Ou de Julia recebendo a sonhada carta que a entronizaria como chef. A maneira como Streep solta a voz, aos pouquinhos, é de quem domina os recursos interpretativos. Hilariante.

Espectador percorre duas perturbadoras épocas

Separadas por mais de meio século, Julie e Julia são, claro, criaturas de contextos históricos diferentes. Julie, como a filha que precisa da aceitação e elogio da mãe, se presta à apropriação do trabalho de Julia e esta lhe retribui de forma mordaz. O que a garota faz é buscar seu espaço na mídia, via culinária, e para isto tem que se virar. Julia, criatura do tempo em que a imagem era construída pelo trabalho próprio, não o alheio, age em conformidade com a visão de que ela, Julie, não está à sua altura. Uma sutil crítica de Ephron à fama pela apropriação indevida, ainda que Julie se esforce para escrever seu blog. Este vira, para a angelical semente de escritora, a bela Amy Adams, seu espaço de trabalho, com forte componentes de sua vida pessoal. É através dele que ela extravasa suas frustrações, ansiedades e esperanças. Tudo muito pessoal. Longe da falsa objetividade que a empresa de comunicação capitalista impõe a seus profissionais, enquanto torna a informação mercadoria e chafurda na política conservadora. É a carta de Julia perdendo o caráter pessoal, por meio da troca entre duas pessoas, para se abrir ao público que se linca ao blog de Julie. Uma mutação e tanto na estrutura de comunicação.

O espectador termina por percorrer um longo percurso entre duas épocas num filme que pode o aborrecer se estiver desinteressado de temas, como comunicação, culinária e luta por reconhecimento. Entretanto, pode ser gratificante para o que tiver paciência para deslindar os entrechos bem elaborados por Ephron. Ela não escapa às vezes das futilidades classe média, de mulheres superficiais, a exemplo da própria Julia – esta é, no entanto, produto de seu meio e, se ele, espectador, olhar, detidamente, Meryl com sua interpretação a critica o tempo todo. Inclusive em seu modo de matrona, pesadona, seu jeito sentar, de insistir na entonação do francês mesmo quando fala inglês. É o típico comportamento pequeno burguês, da imitação do que acha chique, superior. E se vale disso para se mostrar culta. Afinal, naqueles anos a cultura francesa ditava moda, ainda que mergulhada na ocupação dos países do sudeste asiático e norte da África.

Julie é produto da baixa classe média

Com Julie acontece o contrário, ela é jovem, produto da baixa classe média, vive num minúsculo apartamento alugado com o marido no bairro Queens, Nova York. Seus voos até ali são de pouca altura. Sensível, se aborrece numa mesa de restaurante com as amigas interessadas mais na carreira, no dinheiro que vão ganhar, que na relação entre elas. É mais fácil se identificar com ela. Principalmente com sua insegurança, a forma atrapalhada com que lida com os ingredientes das receitas de Julia, a bagunça em sua volta e a prostração em que cai quando as coisas não dão certo. Há sempre um recomeço; possibilidade de que outro caminho se abrirá. Inclusive na relação a dois. Julia encontra apoio em Paul, ela em Eric. Nota otimista para duas mulheres que precisam de ombro para continuar seu percurso em meio às armadilhas das editoras interessadas mais no volume de vendas que no conteúdo do que chegará ao leitor. As duas, no entanto, persistiram.

“Julie&Julia”. (“Julie&Julia”). Comédia dramática. EUA.2009. 123 minutos. Roteiro: Nora Ephron, baseado nos livros “Julie &Julia”, de Julie Powell, e “Minha Vida na França”, de Julia Child e Alex Prud´homme. Direção: Nora Ephron. Elenco: Meryl Streep, Amy Adams, Stanley Tucci, Chris Messina.

Assista trailler no youtube : http://www.youtube.com/watch?v=vjvJHsJD8ic

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