“Juventude”, visões do acaso

Filme do cineasta italiano Paolo Sorrentino trata da velhice com o olhar de quem busca sentido para o construído e a ansiedade de renovar o vivido.

Com rara sensibilidade para transitar entre as agruras do ocaso e as buscas do presente, o cineasta italiano Paolo Sorrentino, a exemplo de “A Grande Beleza” (2014), monta neste “A Juventude” um painel de incompletudes amorosas e familiares, cobranças e ilusões com o sucesso e, sobretudo, incertezas a respeito da sobrevivência num mundo em nebulosa transição. As ameaças, contudo, vêm não do presente, mas trazidas do passado, numa revivência da tragédia hitlerista.

A exemplo de Thomas Mann (1875/1955), em “A Montanha Mágica”, Sorrentino reúne burgueses e artistas num luxuoso hotel nos alpes suíços, para expor as doenças do século XXI. Da solidão à amizade, da busca do sucesso à descoberta de suas armadilhas e, principalmente, das sutis escolhas políticas e mercantis. E ainda se atém às fragilidades da memória, às frustrações amorosas e aos temores do ocaso, numa idade em que o vivido expõe irretocáveis fracassos e acertos.

Toda a ação gira em torno dos amigos octogenários Fred Ballinger (Michael Caine), maestro e compositor, e Mick Boyle (Harvey Keitel), cineasta. Enquanto um cuida da saúde, o outro monta a produção de mais um filme. Ballinger carrega duplo peso de ter-se aposentado e recusar qualquer retorno, mesmo se patrocinado pela Rainha Elizabeth II. E se divide entre exames médicos e massagens diárias. Seu contraste é o esperançoso Boyle, que o reanima em passeios, lembranças e jogos.

Vida de Ballinger era só música

O universo deles, embora seja o das artes, os fazem ter visões diferentes sobre si mesmo e suas relações com seu meio e os filhos. Ballinger, feito por um Michael Caine sempre de preto, de andar arrastado, rosto fechado, entediado, se mostra farto de sua carreira e irritadiço com a filha e agente Lena (Rachel Weisz). Numa confrontação eivada de pisados rancores, ela o culpa de não ter lhe dado atenção em criança e na adolescência. E tampouco à mãe, Melanie. “Era só música, só música…”.

O resultado de seu comportamento é a aceitação de não a entender, dando todo crédito a Melanie, como se isso reparasse sua ausência. Sua imagem se torna, deste modo, a do pai centrado nos concertos e nas composições, decorrendo daí sua fama, com alto preço. Igualmente centrado, o extrovertido Boyle não hesita, porém, em se reconciliar com o filho Julien, após desastrada discursão. São dele as tiradas bem-humoradas, cheias de malícia, que animam Ballinger e o espectador.

No entanto, mostra-se o mais vulnerável, após seus sonhos de novo filme serem desmontados pela ferina Brenda Morel (Jane Fonda). Idosa, ela prefere estrelar uma série televisiva para resolver seus problemas financeiros. E porque Boyle não iria remunerá-la a contento. “Imagina, você vem de três fracassos, ninguém irá produzi-lo”. Ele, enfim, dá-se conta de não ser mais bancável por Hollywood. Afinal é uma indústria, cujo objetivo é o produto rentável, não se a obra é arte ou não.

Ironia e humor dão leveza ao filme

Contudo, esta abordagem de Sorrentino não torna seu filme pesado, intrincado. Ele o equilibra com ironias e humor, ao rodear Ballinger e Boyle de personagens e situações hilariantes, iguais ao casal que nunca se fala durante as refeições, mas se mostra insaciável ao passear pelo campo. Ou quando Ballinger provoca o monge budista ao lhe dizer que “nunca irá levitar”. E este por fim traduz sua brincadeira numa epifania digna de emanação, concentração e energia transcendente.

O monge configura com a massagista (Luna Mijovic) a interlocução Oriente/Ocidente ao traduzir silêncio e concentração numa linguagem. Em contraposição aos ebulitivos shows e performances, jantares de gala e mergulhos em piscinas. Notadamente a jovem ao dizer a Ballinger: “Podemos entender quase tudo com o toque”, enquanto o faz relaxar com massagens localizadas. O interculturalismo surge então para dar sentido à presença dela e do monge num filme cujo centro é o matiz sócio-cultural.

Numa obra de tal dimensão, Sorrentino inclui um personagem a princípio enigmático, quase sem função nos entrechos. Ele está apenas ali, observando, se relacionando com Ballinger e Boyle, até se desvendar de inesperada forma. O jovem ator Jimmy Tree (Paul Dano) está hospedado no hotel para estruturar seu personagem. Quando o dá por terminando se apresenta aos hóspedes, numa intromissão a criar desconforto e recusa. Por vários minutos ele fica ali até dar-se conta do imposto mal-estar.

Tree se recusa a interpretar Hitler

Em “A Montanha Mágica”, Thomas Mann antecipa o horror da lª Guerra Mundial. E Sorrentino, não sem razão, vê em Hitler a configuração do ressurgimento do nazismo na Europa. Intui-se que Tree, ao sentir o peso de interpretá-lo, teme não à sua refutação enquanto “personagem”, mas de ele ser usado para a causa dos grupos neonazistas. Sem dúvida as consequências seriam graves. Principalmente num momento em que os neoliberais tentam borrar as diferenças político-ideológicas entre esquerda e direita.


“Juventude”. (“Youth”). Drama. Itália/França/Reino Unido/Suíça. 124 minutos. Montagem: Cristiano Travaglioli. Música: David Lang. Fotografia: Luca Bigazzi. Roteiro/direção: Paolo Sorrentino. Elenco: Michael Caine, Harvey Keitel, Rachel Weisz, Paul Dano, Jane Fonda.

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