“Lady Vingança”: Violência sem redenção

Em filme de estética primorosa, diretor sul-coreano Park Chan-Wook discute os motivos da vingança pessoal e coletiva numa sociedade em que a violência reflete a falta de perspectiva da população de superar o impasse a que chegaram os conflitos sociais,

Vigor estético, apuro técnico e temática criativa são as principais características do cinema asiático. Ambos estão presentes neste “Lady Vingança (Chinjeolhan Geumjasshi)”, do sul-coreano Park Chan-Wook (Old Boy). E se fundem para compor um todo com a história do assassinato brutal de uma criança, por uma mulher, que, mais tarde, se verá, é apenas um dos vértices desta brutalidade tão comum na sociedade moderna. Os planos (cenas), elaborados com maestria, ressaltam ações e comportamentos dos personagens, principalmente de Lee Geum-Já (Lee Yeong-Ae), sentenciada por um crime do qual não se diz inocente. Eles vão e voltam, fazendo a história avançar e retroceder para concluir o que começou a ser contado, como se explicasse, sem didatismo, sua razão. A fotografia, poderosa, realça estados de espírito, com uma tocante beleza. Não uma beleza vazia, que apenas torna bonita a cena, sem estar a serviço do conteúdo. O enquadramento, perfeito, destaca detalhes, conjunto, obrigando o espectador a acompanhar atento às seqüências para não perder o fio do que vê na tela.
              


 


 


Os vários fios, em flashbacks, orquestrados com suavidade, unem presente, futuro e passado, de uma forma pouco vista no cinema. Começa com o detalhe de uma paisagem, que, depois, se percebe, se trata de um painel, pintado no muro de um presídio. Há uma banda feminina e o Pastor (Kim Byeong-Ok), mestre de cerimônias, para dar boas vindas a Geum-Ja, que deixava a prisão depois de treze anos. Tem-se a impressão de que haverá confraternização entre eles; surge daí a primeira surpresa, Geum-Ja não quer compartilhar seu estado de espírito com seu ex-parceiro. Tem arquitetado um plano, que logo porá em ação. Não se trata de um plano à moda hollywoodiana, de encontrar velhos parceiros ou ser pressionada por eles para continuar sua vida de crime. Aqui, como em “Old Boy”, o mote é a vingança. É, então, que Park Chan-Wook e seu co-roteirista Yeong Seo-Gyeong iniciam uma série de circunvoluções para o espectador entender o que Geum-Ja trama.


             


 


Religião não direciona comportamento violento


             


 


A história, que avança e retrocede com a mesma fluidez, não se fixa no presente, passado ou futuro. Entrelaça-se para facilitar a compreensão do caráter de Geum-Ja. Ela não se detém em considerações éticas ou morais, executa suas vítimas, e o faz com uma frieza e determinação surpreendentes. Seus motivos são justificados pelas ações dos que atravessam sua frente, como a presidiária que brutaliza e humilha sua companheira. Geum-Ja a executa silenciosa, sem aviso ou justificativa. O espectador tem consciência de que aquela vítima fez por merecer o que lhe acontece. E com uma contradição, rara em culturas guiadas pelas religiões orientais: há um apego à religião sem que esta direcione o comportamento do algoz. Geum-Ja não faz promessa, não reza antes de praticar os crimes, só menciona a existência do ente superior. A falta de ligação entre ambos não causa espanto, pelo contrário, mostra o quanto eles se disassociam.
              


 


Ela personifica, assim, a malignidade total. Reacende a morte e incenso. O ambiente em que se move não deixa ver o exterior. Quando o faz é por pouco segundos. Desta forma, a cidade de Seul pouco aparece. Só os interiores contam. Há neles objetos que a câmera de Chan-Wook destaca, integrando-os à ação. Não são figuração, objetos decorativos, usados para desviar a ação. Quando há uma faca ou um revólver, tem uma função. Ela irá usá-los, seu antagonista irá sofrer. E a violência pontua a história, dada à natureza de Geum-Ja. É isto que se espera dela. Mas não há, ao contrário de “Old Boy”, agressão explícita, estilizada. Chan-Wook não a completa de forma a que redunde em jatos de sangue, membros quebrados, rostos afundados. Ela começa a ser mostrada e logo há um corte, passando-se à cena seguinte, com o uso constante de elipse. O que, ao invés de abrandar, a torna mais chocante.


               


 


Violência reflete sociedade atual
                 
              


 


Quando, entre um flashback e outro, Chan-Wook e Sea-Gyeong mesclam a vida pessoal de Geum-Ja e o rumo que ela tomou, o fazem para desvendar a gênese da vingança que ela empreende. Usam, para isto, diversificados recursos técnicos e estilísticos: diálogos sobrepostos, em que a fala de um personagem completa a fala do outro, usando a mesma frase; narração em off; planos orquestrados para compor o quadro com objetos e detalhes de mãos, rostos e partes do corpo. Uma ação que só ocorrerá adiante surge entremeada ao presente. Ao chegar ao que pretendem, os roteiristas já anteciparam o fato. Nessa narração circular, eles apresentam o personagem chave para a compreensão da ira de Geum-Ja. O centro de seu ódio desloca-se para o “serial killer”, Sr. Baek (Choi Min-Sik), “absolutamente normal”. Sem os estereótipos tão comuns aos filmes atuais. Ele não personifica o mal, é um “cidadão comum”. O que importa para Chan-Wook não é propriamente o que ele faz, sim o dano que provoca nas famílias de suas vítimas.
             


 


Inexiste a inveja, a procura de causar dano ao outro sem razão aparente; só o reflexo de uma sociedade em que tudo ocorre em série, tal o consumo constante do mesmo produto. As vítimas são todas de classe média, com razões de sobra para atrair a atenção do sequestrador-assassino. O dinheiro, motivo maior desses casos, não escapa a Chan-Wook. Ele é o moto das famílias – elas o querem reaver. Então se reúnem para obter seu quinhão de sangue, estimuladas por Geum-Ja, que busca purgar sua culpa. Chan-Wook estrutura a cena sem grandiloqüência, para ressaltar o sofrimento do algoz; quer mostrar que o ser humano, quando pode, deixa sobressair seu instinto selvagem, animal. O faz em nome de algo compreensível, embora não aceitável. Entretanto, não perde a racionalidade. Esta configura-se na busca do dinheiro, superior até ao dano que pode causar ao sequestrador-assassino.


                  


 


Famílias buscam recompensa na devolução do resgate


               


 


Então, não é a justiça por conta própria que os recompensa – é a capacidade de não deixar que ele, o sequestrador-assassino, leve seu ente querido e, além disso, o dinheiro pago quando da tentativa de resgate. Tal é o espírito do capitalismo, entranhado na psique e no objetivo daqueles que vivem numa sociedade, onde ele é buscado a todo instante. É um primor a cena das famílias comemorando com Geum-Ja, num bar, depois de terem atingido seus objetivos. Ela, porém, foi além: precisava encontrar a redenção para esquecer parte importante de sua existência. Sai pela rua e é tomada pelo vazio. Anda a esmo, junto com a filha, seguida pelo amado, Geon-Shik (Kim Shi-Hoo). Poderia estar calma, recompensada, mas fica ainda mais exasperada. Chan-Wook reflete, assim, sobre a vingança. O faz de forma plástica, genial: a rua estreita, os flocos de neve caindo, Geum-Ja abraçada à filha, enquanto o amado se aproxima. Ela fica diminuta, um detalhe no cenário gélido. Vingar, diz o diretor, não é suficiente, não justifica sua condição humana.
               


 


Para quem fez “Old Boy”, cheio de cenas violentas, uma análise dessa natureza atesta um avanço e tanto. A violência levada ao extremo, dado ao vazio da alternativa visível, por mais que esta exista, não pode ser usada apenas como manifestação estética. Seu conteúdo torna-se reacionário, porquanto seu objetivo é chocar, causar furor, gerar bilheteria. Depois de ser usada in extemis por Quentim Tarantino em “Kill Bill”, um filme também sobre vingança, difícil não mudar o foco. “Lady Vingança”, de uma beleza surpreendente, usa-a, questionando-a. E observa que a violência, usada para provocar no algoz a mesma dor imposta às famílias de suas vítimas, acaba por não surtir o efeito desejado. É inócua. O algoz só pode ser justiçado uma vez. Chan-Wook ao tratar deste tema com lucidez faz pensar.


               


 


Estética e técnica ressaltam o tema de “Lady Vingança”
            
              


 


Seu filme não teria a mesma fluidez e vigor sem a montagem suave da dupla Kim Sang-Beom e Kim Jae-Beom, a esplêndida fotografia de Yeong Yeong-Hun e a música de Jo Yeong-Wook e Na Seok-Joo com  orquestração de Choi Seung-Hyun, que usa vários movimentos de concertos para violino de Vivaldi e Paganini. Formam um todo estético, com a direção e enquadramentos perfeitos de Park Chan-Wook, e a interpretação segura e nuançada do conjunto do elenco. Estão a serviço da história, do modo original como foi contada, permitindo ao público acompanhá-la. Logo na abertura, os letreiros são ladeados por formas, que revelam uma composição. Ao longo de “Lady Vingança”, ela, a composição, é ressaltada pela luz que expõe o essencial da ação. Com uma plasticidade difícil de ser vista no cinema atual. Personagens e objetos se completam, não existem no quadro para fazer figuração. O diálogo faz a ação avançar, sem ser, por demais, explícito.
          


 


 


Mesmo que o filme enrede para discussão da culpa, do papel inútil da crença, o centro é a violência. Esta fica sem sentindo quando se transforma em vingança ou tentativa de agredir a outrem. Todo empenho se torna fútil, sem sentido, pois a eliminação do outro não traz recompensa interior alguma. É tão só o poder de exacerbar o ódio acumulado durante anos, no caso de Geum-Já, treze anos de prisão, até o reencontro com o antigo amante, que a deixou sofrer na prisão. Idêntica purgação vivem as famílias cujos filhos foram vítimas de Baek. Elas dão a si próprias o direito de justiçá-lo, com toda a crueldade que o ser humano é capaz nestes momentos. Há, sobretudo, a irracionalidade. A capacidade de gerar dor e a sensação de que pondo fim ao outro, seus problemas se resolvem.


           


 


Grupo, ao fazer justiça por si mesmo, mostra falência do Estado atual


          


 


Sob este ponto de vista, Chan-Wook projeta o anseio grupal ou, em muitos casos, coletivo, de levar adiante o uso da violência contra aquele que lhe causou sofrimento. Não se trata de fazer justiça com as próprias mãos, mas de reconhecer em si mesmo a capacidade, gerada pela perda de ente querido, de substituir o Estado na proteção ao cidadão. Há muito de religioso nesta visão: quem busca o bem, pode também alcançá-lo através do mal. Este vem na forma de eliminação de quem lhe gerou sofrimento extremo. Ao levar ao espectador a esta reflexão, Chan-Wook consegue transcender a realidade, uma vez que o real aqui não alicerça seu filme, porém o permite projetar os anseios coletivos, numa época em que o Estado burguês, em decadência, não lhe dá segurança.
          


 


Esta dialética entre a realidade e sua projeção está, no entanto, centrada numa crítica feroz à sociedade capitalista atual, onde não há mais limite entre o público e o privado. O Estado que leva Geum-Já à penitenciária é o mesmo que permite ao detetive Choi (Nam II-Woo) presenciar a ferocidade do grupo de vítimas do Sr. Baek e nela não intervir. Fica à distância, observando, sabendo a que fim aquela atitude levaria. Somente Geum-Já irá refletir no final sobre o que acabou de fazer. Fica perdida, sem resposta. A violência usada termina por não satisfazê-la. O vazio predomina. Difícil não sair do cinema com a sensação de ter visto a arte de artistas que sabem compreender o impasse a que chegou a sociedade capitalista atual.


 


 


“Lady Vingança” (Chinjeolhan Geumjasshi). Coréia do Sul. Drama. 2005. 112 minutos. Montagem: Kim Sang-Beom e Kim Jae-Beom. Fotografia: Yeong Yeong-Hun. Música: Jo Yeong-Wook e Na Seok-Joo, com  orquestração de Choi Seung-Hyun. Roteiro: Jeong Seo-Guyeong e Park Chan-Wook. Direção: Park Chan-Wook. Elenco: Choi Min-Sik, Lee Yeong-Ae, Kim Byeong-Ok.


(*) Prêmio de Melhor Filme no Festival de Veneza.

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