Liberdade ao "Filho do Homem"

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Na história, o re-evolucionário nascimento do Espírito é uma estória de bicho-de-sete cabeças. Fenômeno escatalógico que, presumivelmente, vem desde quando o Australopithecus virou Homo sapiens há mais de um milhão de anos segundo teoria aceita pela Ciência. Mas, no campo político cultural, poder-se-ia chamar sem muita discórdia entre crentes e não crentes a vez do antropófago metafísico ou sublimação do inconsciente selvagem conforme conceito freudiano exposto em “Totem e Tabu”. Marx e Engels antecedidos há dois séculos pelo marrano Baruch de Espinosa, nos advertiram que o homem pode eventualmente compreender as leis da natureza e usá-las em seu benefício próprio, mas nunca as pode dominar e modificar. Brincar de Deus nem por entretenimento…

Marcelo Gleiser, professor de física teórica e autor do livro "O Fim da Terra e do Céu: o Apocalipse na ciência e na religião", lembra que a religiosidade do cientista judeu Einstein se fundamentava no Deus de Espinosa, que é afim à idéia de divindade no budismo e no taoismo. Cita trecho de carta de 1915 de Einstein a Edgar Meyer, que diz com requintada ironia: "Por que você me escreve dizendo que "Deus deveria punir os ingleses?" Não tenho relação íntima com um ou outro. Vejo apenas com grande tristeza que Deus pune tantas de suas crianças por seus inúmeros atos de estupidez, atos pelos quais Deus apenas deveria ser o responsável; em minha opinião, apenas a sua não-existência poderia desculpá-lo”.

Que Albert Einstein diria hoje diante da corrida atômica suicída consumindo tempo, cérebros e muito dinheiro? O que ele pensaria da Fome de milhões de seres humanos, a maioria crianças, em países de terceiro mundo, notadamente a África mãe da humanidade e matriz original da Civilização? Que se pode pensar em busca de soluções a partir de estudos comparativos dos rios Amazonas e Nilo, entre a Mudança climática e as pragas do Egito e outras maldições na Antiguidade? A malária como a luta de classes já faziam vítimas entre ricos e pobres àquele tempo.

"Tudo é determinado – dizia o pai da teoria geral da relatividade – por forças além de nosso controle. Isto é verdade para um inseto ou uma estrela. Seres humanos, vegetais, grãos de poeira todos dançam segundo uma melodia misteriosa, entoada à distância por um flautista invisível". ("Saturday Evening Post", 26/10/1929). "Acredito no Deus de Espinosa, revelado na harmonia de tudo o que existe, mas não em um Deus que se preocupa com o destino e as ações dos homens" (Telegrama de 1929 para um jornal judaico).

No mesmo século de Espinoza, o padre Antônio Vieira sairia de sua utopia evangelizadora na Amazônia condenado em Lisboa e Roma por “heresia judaizante”. Com certeza ele conhecia a controvérsia sobre Espinosa e embora não concordasse com este também o Deus do padre Vieira, sem abandonar a tradição monoteista, era segundo o jesuíta Antônio Vaz um Deus que carecia do ser humano para agir, materialmente, no mundo concreto (habitar a História, a sua utopia do “Quinto Ímpério” ou “Reino de Cristo consumado na terra”). Nietzche ou Zaratrusta anunciaram a morte de Deus: no mesmo momento ficou sentenciado, o que é amável no Homem é que ele é “um passar e um sucumbir”… (sem pensar duas vezes, os nazistas sequestraram o pensamento de Nietzche, então seria impossível ao nazi-sionismo tornar refém o judaismo libertário?).

Mais depressa que um típico erudito judeu-cristão, um babalorixá devoto a deuses animistas africanos poderia entender o sofisticado conceito moral de Einstein sobre o "flautista invisível", que representa um Deus que se revela através da "harmonia de tudo o que existe" nas transformações do mundo natural. Baruch de Espinosa, judeu português perseguido pela Inquisição e rejeitado pela ortodoxia judaica do século 17, acreditava que Deus e o mundo material são dois conceitos inseparáveis um do outro. A “Flauta Mágica” de Mozart expressa na ópera o que o intuitivo alquimista acreditava antes do cientista cogitar na intimidade de seu laboratório. Tudo isto conflui numa certa cultura política renascentista que a história da Itália explica, por exemplo, com a práxis revolucionária da Carbonária que uniu Giuseppe Garibaldi e Anita Garibaldi além do tempo e do espaço. Algo essencialmente cultural que Gramsci desvela a quem quiser saber do erro mortal da União Soviética e segredo de longevidade da China comunista. O problema é saber estabelecer as devidas conexões entre as partes e o todo.
Quanto melhor compreendemos o funcionamento do Universo, mais nos aproximamos de Deus, diz Einstein. Para ele a ciência é essencialmente religiosa. Religião, claro, que trata a natureza como metáfora do divino e o cientista como seu sacerdote, aquele capaz de desvendar os seus mistérios. Mas, não era este o espírito do Antigo Egito bafejado pelos deuses da Núbia (Sudão)?

O homem primitivo habita o inconsciente coletivo herdado pelo moderno cidadão intelectualizado, ele é o mesmo que no passado remoto acreditava serem os viventes (plantas, árvores, animais, gente) morada sagrada de deuses e santidades imortais. Tal qual na Encantaria afroamazônica da atualiade… O inquietante mundo dos espíritos – fonte perene de males e bens dos viventes – é filho natural da humanidade e neto da animalidade. Sem espírito não poderia existir civilização.

Por exemplo, sem a invenção espiritual da Etiópia e Núbia (África negra), há mais de quatro milênios, a divina e prodigiosa natureza do Nilo não faria o milagre do Egito em toda sua grandeza e complexidade geocultural até o fruto da heresia monoteista, cometida por razões de estado pelo faraó Akenaton e sua mulher mestiça Nefertiti, segundo alguns historiadores. O que teria determinado a revolução política e cultural da Antiguidade relatada na Bíblia como o memorável feito do libertador Moisés e manifestada pelos profetas do caos durante a Diáspora, cheios do Espírito Santo, no cativeiro da Babilônia. Influência direta no primitivo cristianismo da Galiléia através da Síria e que, em Medina, incendiou o coração do Profeta Maomé com as chamas da fé no misericordioso Alá.

Quando a gente diz mundo quer dizer humanidade: sem o animal político Aristóteles seria apenas o bicho que ele sempre foi. Não haveria escrita nem mídia, boato, biodiversidade, diversidade cultural, globalização, efeito estufa et caterva. Dependendo do ângulo por onde se vê a coisa seria melhor Javé cancelar o projeto de criação de Adão e Eva ou fazer, visto o erro de planejamento, providenciar o recall… Hoje, todavia, com alguma dose de tolerância e boa vontade da teoria da evolução das espécies pode-se capitular o fiat lux da Gênesis como o Big Bang dos povos originais avant la lettre.

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