Lima Barreto: “A pátria que quisera ter era um mito”
“Cem mil réis me bastavam… Todos por aí arranjam, e eu…,” diz Isaias Caminha ao figurão, o deputado Castro, a quem fora recomendado pelo chefe político de sua cidadezinha interiorana. Era a lei de Gerson (aquela que recomenda levar vantagem em tudo) em plena ação, pedaço da realidade fixado num romance escrito em 1909, Recordações do escrivão Isaias Caminha, de Lima Barreto.
Publicado 11/06/2015 17:46
Que país é este? Que país tem sido este cujos hábitos parecem ter mudado tão pouco em mais de um século e fazem da obra de Lima Barreto uma descrição atual, lúcida e cruel, da elite, de tantos políticos, intelectuais e jornalistas do Brasil?
Lima Barreto, escritor preto, pobre e louco, viveu poucos anos. Morreu com 41 anos, em novembro de 1922, ano que foi um marco no modernismo brasileiro: fundação do Partido Comunista do Brasil, realização da Semana da Arte Moderna e ocorrência do Levante tenentista dos 18 do Forte.
Apesar de sua vida curta deixou uma obra formada por romances, contos, sátiras, crônicas, artigos, ensaios e memórias cuja atualidade continua surpreendente.
Crítico ferino e mordaz dos hábitos e formas de pensar da elite de seu tempo, defensor persistente de reformas profundas na sociedade brasileira, necessárias para melhorar a vida do povo, Lima Barreto viveu em uma época que, sob muitos aspectos, assemelha-se à nossa. De um lado a alienação de setores da elite, plasmada na imitação servil do estrangeiro, no deslumbramento daqueles que pensam que somente com a modernização, isto é, adoção de hábitos, modos de vida e formas de pensar brancos e europeus, é que o Brasil poderá vencer o atraso e embarcar no bonde da história rumo ao progresso. De outro lado as entranhas reais do país, escondidas sob o tênue verniz modernizante: a permanência de estruturas sociais arcaicas e injustas que oprimem a enorme maioria do povo e nutrem as elites.
Lima Barreto não só enxergou essas estruturas mas conviveu com elas em seu cotidiano e sofreu na carne as pesadas restrições que elas impunham aos que ficavam de fora.
Ele revolveu essas entranhas e as expôs aos olhos de quem se recusava – ou se recusa – a encará-las.
Vasta comilança
Sua descrição da República – da qual aliás nunca foi um entusiasta -, dos políticos, da burocracia governamental, varia de um naturalismo quase jornalístico, a situações que beiram o surrealismo.
“A nossa burguesa finança governamental só conhece dois remédios para equilibrar os orçamentos: aumentar os impostos e cortar lugares de amanuenses e serventes. Fora esses dois paliativos ela não tem mais beberagem de feiticeiro para curar a crônica moléstia do déficit”, escreveu em 1918.
O presidente era Venceslau Brás. Podia ser José Sarney: a mania conservadora de atacar o déficit público por seus aspectos secundários, demitindo funcionários públicos, parece duramente a mesma.
Na época os gastos com obras públicas de utilidade duvidosa eram vistos como normais. Em 1921 Lima Barreto acusou a administração de se orientar pela “estética urbana dos rajás asiáticos” onde a minoria “tem direito a tudo e os restantes, no máximo, à vida e são obrigados a pagar impostos para gáudio daqueles outros”.
O Brasil, escreveu num artigo de jornal, ”é uma vasta comilança” cujos convidados eram uns poucos privilegiados. Isaias Caminha tentou pegar uma beirada nesse banquete mas foi barrado devido à sua cor e origem modesta.
Essa mesma barreira foi o obstáculo com que Lima Barreto se chocou na vida real. Insubmisso e inconformado, ele forçava a barra e denunciava o preconceito – sua literatura, dizia, servia para escandalizar a burguesia.
Como aluno da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, amanuense do Ministério da Guerra, jornalista, escritor e interno de um instituto para doentes mentais, Lima Barreto conheceu de perto as situações que descreveu.
O personagem Gonzaga de Sá é um retrato cruel da burocracia encastelada na administração pública. Neste romance (Vida e morte de M. J. Gonzaga de Sá, 1919) um chefe de repartição pública imaginou um sistema que abolia completamente a necessidade de eleições presidenciais. Era um “curioso sistema de nomeação” no qual “entrava-se amanuense e, de promoção em promoção, ia-se a presidente”.
Este romance traz outro perfil de burocrata: o Barão de Inhangá, que foi baseado na figura real do Barão de Itaipu, diretor da repartição onde Lima Barreto servia. “Em falta de qualquer coisa mais útil aos interesses da Pátria, o barão fazia, a toda hora e a todo instante a ponta do lápis. Era um gasto de lápis que nunca mais se acabava; mas o Brasil é rico e aprecia o serviço de seus filhos. Quando completou 25 anos de serviço foi feito Barão”.
Se o perfil dos funcionários de carreira é tão pouco lisonjeiro, os políticos são mostrados com um desencanto que tem paralelo exato no pessimismo provocado pelo fracasso da Nova República no final da década de 1980.
Isaias Caminha, por exemplo, sempre considerou a Câmara dos Deputados o lugar sagrado da soberania popular. Ao visita-la, decepcionou-se: encontrou deputados cochilando, conversando ou desatentos aos discursos da tribuna.
O patriota extremado
Em Recordações do escrivão Isaias Caminha Lima Barreto mostrou como a polícia agia de forma arbitrária, à margem da Justiça e das leis. “Nada de justiça, de pretorias…”, diz o personagem. “Qual! Com a polícia a coisa vai mais depressa, a questão é ter bons amigos” a quem recorrer.
Outro aspecto da atividade policial é a perseguição aos adversários políticos do governo. Até o patriota extremado major Policarpo Quaresma conheceu esse destino: ele foi preso e o motivo, supunha, foi protestar contra a prisão de alguns soldados. Mas ninguém o informou de nada. “O oficial que o conduzira nada lhe quisera dizer; e desde que saíra da ilha das Enxadas para a ilha das Cobras não trocara palavra com ninguém, não vira nenhum conhecido no caminho”. Acabou fuzilado, devorado pelo monstro que ajudara a criar.
O outro extremo dessa realidade política – e da fauna que a povoava – foi registrado na descrição de Numa Pompílio de Castro, de Numa e a Ninfa (1915), um político oportunista e carreirista, membro de uma elite ciosa de suas vantagens e prerrogativas, cuja atividade política, intelectual, artística, científica tinha um objetivo preciso: impulsionar carreiras e capacitar para o acesso a esse restrito clube de privilegiados.
Quando estudam “medicina, não é a medicina que eles pretendem exercer, não é curar, não é ser um grande médico, é ser doutor”. Assim “também são os literatos, que simulam sê-lo para ter a glória que as letras dão” e contentam-se “com as aparências literárias e a banal simulação de notoriedade”, escreveu Lima Barreto em Os Bruzundangas (1922).
Até o simples contínuo de jornal Isaias Caminha foi contagiado com esse vírus. Julgava-se superior ao resto da humanidade “só por que levava tinta aos tinteiros dos repórteres e redatores e participava assim de um jornal, onde todos tem gênio”.
As redações de jornal, os institutos, os órgãos públicos, eram cheios desses arrivistas posudos, formais, cuja miopia os tornava estéreis, capazes apenas de discutir detalhes, donos de uma cultura de fachada, alienada e decorativa.
O homem que sabia javanês (1911) expõe de forma satírica e caricata essa vocação oportunista, improvisatória e falsamente erudita. É a história de Castelo, um desempregado que um dia atendeu a um anúncio de jornal que procurava um professor de javanês. Castelo, que não conhecia essa língua, procurou informações em uma enciclopédia e conseguiu o cargo. Adquiriu notoriedade, foi reconhecido como grande linguista, participou de congressos internacionais e chegou a cônsul em Havana.
A figura da vida real em que Castelo foi baseado teria sido o escritor Afrânio Peixoto, de grande reputação na época mas que Lima Barreto considerava um falso erudito e péssimo escritor. Afrânio Peixoto foi o autor da ideia de que a literatura é o “sorriso da sociedade”, expressão de uma arte alienada, mero passatempo para a elite.
A visão de Lima Barreto era outra. “Eu tenho muita simpatia pela gente pobre do Brasil, especialmente pelos de cor”, escreveu no Diário Íntimo.(publicado postumamente, em 1953).
Essa simpatia dirigiu sua militância intelectual. Formulou por exemplo o projeto, nunca realizado, de escrever uma História da Escravidão Negra no Brasil e sua influência em nossa nacionalidade.
Lima Barreto tinha consciência de que, no Brasil, povo é sinônimo de preto, e vice-versa. Ele deplorava as ideias racistas e alienadas da elite, seja seu estrangeirismo extremado, seja seu nacionalismo ufanista. Policarpo Quaresma, por exemplo, estudou a “Pátria, nas suas riquezas naturais, na sua história, na sua geografia, na sua literatura, e na sua política”; defendia o Amazonas como o maior rio do mundo e pretendeu implantar o tupi como língua oficial do país. Tudo em vão. Em sua impotência, reconheceu, na véspera de seu fuzilamento, que “a Pátria que quisera ter era um mito”.
Imitadores do futurismo
Lima Barreto atacou os que se rendiam à influência estrangeira. Gonzaga de Sá aponta a causa social da modernização arquitetônica do Rio de Janeiro, expressa no slogan da época: “O Rio civiliza-se”. Isto é, tornava-se uma cidade europeia, escondia a influência negra em sua população, afastava os pobres para os subúrbios e engalanava-se para receber o rei Alberto, da Bélgica.
Lima Barreto criticou também os primeiros arranha-céus que apareceram no Rio de Janeiro depois da Primeira Grande Guerra. “Por mera imitação enchemos o Rio de Janeiro de descabelados sobrados insolentes, de cinco e seis andares…, verdadeiras torres a esmagar os sobradinhos humildes dos tempos do Império”.
Em 1922 condenou os modernistas de São Paulo vendo-os como meros imitadores do futurismo italiano de Marinetti.
Lima Barreto foi também anti-norteamericano, por solidariedade aos negros daquele país e por hostilidade ao imperialismo econômico que ensaiava sua expansão. “Não dou cinquenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e o México se coliguem para acabar de vez com a atual opressão disfarçada dos yankees sobre todos nós”, esperava.
A alternativa para essa situação era outra. A verdadeira modernização do país seria resultado da superação do preconceito racial que dividia a nação em uma elite restrita e arianizante e uma enorme massa de mestiços, negros, índios e brancos pobres – estes últimos tinham ao menos a vantagem de sua cor.
“É triste não ser branco”, escreveu Lima Barreto no Diário Íntimo. Tristeza que ficou registrada no destino de personagens como Isaias Caminha ou Clara dos Anjos, a adolescente negra deflorada por um aventureiro branco e humilhada quando seus pais procuraram a família do agressor para uma “reparação do dano”.
Era preciso eliminar essa elite restrita, retrógrada, racista e alienada que impedia a modernização do país. Lima sabia que “a sociedade repousa sobre a resignação dos humildes” (Gonzaga de Sá). Daí sua militância no movimento anarquista, o apoio entusiástico à Revolução Russa de 1917 e ao maximalismo (nome que então se dava ao bolchevismo), e a atuação na imprensa popular.
Ele definia o maximalismo como “a aspiração de realizar o máximo de reformas possíveis dentro de cada sociedade, tendo em conta as suas condições particulares”, e apresentou um programa de quatro pontos para isso: revisão dos fundamentos da propriedade, subordinando seu uso ao bem estar coletivo; confisco dos bens de certas ordens religiosas; fim do direito de testar; adoção do divórcio para livrar a mulher da opressão do casamento.
Apesar de limitado esse programa acentua a dramática atualidade de Lima Barreto e sua aguda percepção de uma modernidade que, para ocorrer, implica em mudanças sociais profundas para eliminar a estrutura social arcaica que o país tem e incorporar toda a população em um desenvolvimento que beneficie a todos os brasileiros.
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Este texto foi publicado originalmente em 1988, em plena crise da Nova República e do governo de José Sarney. Embora mantenha atualidade sobretudo em relação à elite neoliberal, é ´preciso levar em conta que, nestes 27 anos, o Brasil mudou muito, e para melhor, principalmente desde 2003. E vai mudar mais… Queiram ou não os barões de Inhangá!
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Uma explicação necessária: continuo em meu périplo para recuperar a visão. Fiz duas novas cirurgias (em maio e em junho) e isso me obrigou a me afastar de qualquer escrita, mesmo no computador… Volto a elas agora, aos poucos… Agradeço a compreensão, apoio e a solidariedade dos camaradas e amigos! – José Carlos Ruy.
Referência:
Barreto, Lima. Prosa Seleta. Rio de Janeiro, Editora Nova Aguilar, 2001
Publicado originalmente no jornal Leia. Outubro de 1988.