Linguagem flexível, conteúdo coerente

De todos os quadrantes vem a observação, com grande surpresa, que a “velha direita” parece ter saído da moda, desaparece ou fica tão insignificante que mais parece peça de museu para lembrar um tempo passado como a “idade da ignorância”.

Coincidindo ou não com o início do século XXI, parece um momento promissor em que os preconceitos mais retrógrados são superados com o conhecimento da realidade humana e a assimilação dos princípios democráticos. Mas, na verdade a direita se enfurnou e vestiu uma roupagem menos ostentosa dos seus preconceitos de superioridade, para poder sobreviver na sombra.

Com a experiência de dois milênios a humanidade já não pode continuar a ser manipulada pelas elites. Quer viver com dignidade e ser respeitada. Sabe que tem sido esbulhada e humilhada por uma minoria que detém o poder devido às manobras de concentração da riqueza em nome de uma falsa superioridade pessoal. São novos tempos em que alguns líderes democráticos denunciam os grandes crimes cometidos nas guerras e na exploração colonial que deram origem ao sistema dominado pelo capital dividindo o mundo em países ricos e pobres. A diferença estabelecida pela posse de riquezas deixou de ser atribuída à superioridade individual da elite deixando à mostra os privilégios acumulados políticamente por uma classe dominadora. Caíram por terra os predicados antes atribuídos ao sangue, à raça, à formação escolar, ao comportamento social, à situação privilegiada no apregoado relacionamento direto com reis e com Deus.

As conquistas democráticas desvendaram a realidade que iguala os cidadãos enquanto os mecanismos políticos do poder dividem as riquezas de forma injusta e criminosa que condena povos à fome e beneficia as elites com um poder quase divino. Têm ocorrido várias intervenções que clarificam a situação real dos povos, como a do Presidente Lula que exige que os Governos que se opõem ao desenvolvimento da energia atômica para uso pacífico pelo Irã, primeiro assumam a responsabilidade de liquidar as suas próprias armas atômicas para terem moral na crítica que pretendem fazer aos outros. São discursos claros, feitos sem agressividade, que traduzem a realidade em que vivemos.

Circula pela internet, – nesses dias em que se realiza a 2ª Cúpola dos Paises da América Latina e Caribe, em Cancúm, onde se propõe a criação de um organismo próprio que exclue Estados Unidos e Canadá (países ricos e dominadores) -, um texto atribuído a um Cacique – Guaicaipuro Cuatemoc (do século XVI) – agora apresentado como se fosse Embaixador do México em uma Conferência dos Chefes de Estado da União Européia, Mercosul e Caribe, em Madri, ( que teria ocorrido em 2002 ou 2007). Trata-se de um brilhante discurso irônico e contundente sobre a dívida externa que pesa sobre alguns países europeus por terem ficado com 185 toneladas de ouro e 16 mil toneladas de prata levadas das Américas através da Companhia das Índias Ocidentais de 1503 a 1660. Baseia-se, afirma, em registros históricos que constam do Arquivo daquela empresa colonizadora que devem permitir hoje o pagamento das dívidas externas dos países pobres e ainda o financiamento dos seus processos de desenvolvimento pelas antigas colônias.. Certamente trata-se de uma versão ficcional de verdades que ainda não foram apresentadas com tal clareza nas análises de direito internacional, mas encontrou uma linguagem amenizada pela ficção – como se fosse uma poesia, metáfora ou música – para vencer os bloqueios institucionais que ainda existem no diálogo diplomático entre representantes governamentais que são obrigados a se adequarem ao jogo político vigente.

A Bolívia, sob o Governo de Evo Morales, tem a oportunidade de avançar concretamente na proposta de fusão dos valores indígenas (que corresponde à maioria da sua população) na superação dos problemas existentes no sistema sócio-economico moderno que afeta todas as sociedades do planeta. Não precisa recorrer à modesta forma ficcional para propor uma nova filosofia para o desenvolvimento independente das suas forças produtivas. O estudo da cosmovisão quetchua demonstra uma diferença fundamental com a que se desenvolveu no Ocidente onde foi implantado o capitalismo: predomina o conceito de coletividade humana na administração social e não o individualismo subordinado à elite no poder. Isto quer dizer que todo o planejamento feito visa garantir as mesmas condições de vida a toda a população e que a existência de hierarquia apenas garante a transmissão das leis, normas, crenças e conhecimentos ancestrais que disciplinam a vida social. Em decorrência deste pensamento básico, o que seria desenvolvimento para os indígenas obrigatoriamente prende-se ao estudo da viabilidade no contexto social e a sustentabilidade ambiental, econômica e social. É o princípio de vivir bién, como explica Carlos Viteri Gualinga em texto de estudo “Visión indígena del desarrollo em Amazônia”publicado na Revista Polis da Universidade Bolivariana em Santiago do Chile.

Mais que a coragem de dizer as verdades, tal como os povos entendem, sem agressividade desnecessária e falta de respeito pelas pessoas que representam os seus paises, será necessário abandonar os preconceitos que nos foram transmitidos pela maneira como a História foi escrita para manter o medo e a submissão aos mais fortes.

Se as grandes empresas capitalistas hoje introduzem nos seus planos contabilísticos o novo (e democrático) conceito de demanda social que era antes descartado para o Estado, as Igrejas, merecendo apenas a sua esmola caridosa, é de se esperar que os demais setores que se apresentam ainda como conservadores, mas simpáticos, evoluam pelo menos na linguagem. Claro que os povos terão de cobrar a coerência na ação política, o que beneficiará as eleições mais conscientes.

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