Luiz Aparecido: Crônica póstuma a um trovador da luta e do amor

Uma prova atualíssima da perenidade de Luiz Aparecido avivou-se no seu mural do Facebook, onde, indiferentes à insólita notícia de sábado (6) e a qualquer outra realidade, centenas de amigos e amigas o cumprimentaram (e ainda cumprimentam) pelo seu aniversário. Na terça-feira, nove de setembro, rumando para o limiar de uma permanente nova era.

Pois Luiz, com sua capacidade de unir sonho e realidade, promoveu as vidas restantes ao desafio de viver além do tempo e dos instituídos limites, e eternizar a perspectiva da utopia numa radiante aurora, ao nosso alcance.

Numa postagem de facebook, dizíamos que Brasília é um lugar que ficou mais vazio e triste. E também todos os lugares pelos quais passou e conviveu desde seu berço penapolense, no interior paulista, singrando pela nostálgica vivência capixaba, até as imponderáveis fronteiras da vivência mais humana. Um lugar mais vazio e triste pelo menos para quem preservou a sensibilidade nesses novos tempos do cólera, a ceifar suas vítimas entre os bons no perdulário desvão entre a saúde e as guerras genocidas que consomem usurários e usurpados trilhões.

Naquele sábado, véspera do dia da nossa ainda incompleta e almejada independência, Luiz desapareceu de forma previsível mas sempre inesperada enquanto submergiu em sua guerra pessoal nunca solitária, acompanhada passo a passo pelos inúmeros afetos que cativou e, como no Pequeno Príncipe, de Antoine de Saint-Exupéry, a eles se dedicou.

Sucumbiu, lutando, à enfermidade que o açoitava há alguns anos. Um tempo em que, contemporâneo da velha máquina de escrever e do telex, nunca silenciou, modernizando-se nas compartilhadas comunicações instantâneas de seu blog e de seu mural. Fisicamente próximo ou distante, cada um desses cativos afetos sentiu, a cada passo de um Luiz andador, sua própria dor no calvário da lancinante intensidade.

Na mochila dos sonhos, a política, o humor e a vida

Daquele Luiz dos nossos primeiros tempos do cerrado, do amigo dedicado à felicidade de cada um dos seus amigos — que aportavam no tropical exotismo das peraltices vividas e das histórias extraídas de cada pródiga fábula do cotidiano. Daquela presença constante, às vezes aparecida do nada aparente, com fatos e surpresas agradáveis, quase sempre com um convite aos bons momentos de convivência, rumo a uma saída noturna ou domingueira, ou simplesmente com uma cesta de hortaliças que cultivava no terreno de sua casa.

Surprendente e do bem, só não extraía prazer de alguma invasiva e inevitável tragédia. (De tal modo que até hoje é difícil não marejar a alma e janelas à visão do seu flagelo de torturado: que tipo de monstro foi capaz de seviciar alguém assim traduzido).

Numa de suas peças, passeando na superação das horrendas torturas nos cárceres da ditadura, nos convidou para a inauguração de sua “piscina” na casa do lago, onde vivia um tórrido e inquieto romance com uma loiríssima capixaba. Ligou para João Amazonas e o convidou; o retorno veio numa espirituosa pergunta: “Luiz, você se aburguesou?” A “piscina” era “vertical”, instalada no quintal da casa, na verdade um chuveirão para um belo banho ao ar livre.

Do mesmo modo, convidava para os almoços dominicais no apartamento de um querido compadre capixaba, Carlos Fernando, onde as libações destiladas, em geral, se consumavam nas muquecas de peixe Robalo e outras delícias da refinada culinária de um cuidadoso anfitrião — que, vestido a caráter num garboso avental, afrontava em simpatia os nordestinos na sua célebre e desafiadora sentença: “Muqueca é capixaba, o resto é peixada”. Num outro domingo, quando Luiz já morava no Paranoá, foi com orgulho que, no capricho, presenteei-lhe com um belo frasco de ardosas, variadas e cromáticas pimentas compradas na feira do lugar. Tudo simples assim.

Como não lembrar daquele Luiz que um dia liberou seu pranto quando, ante o receio demolidor da recuperação, resgatei inúmeros desses bons momentos nossos e também outros, de companhias diversas, entre as quais pontificava sempre Marcos Tenório. Mais lágrimas quando lhe disse que voltaríamos a viver tudo aquilo. Porque, lhe diria, ele surgira como aquele especial e predestinado camarada que sempre carregava na mochila da sua vivência os conselhos certos das horas incertas, transformando-se no amigo necessário das horas difíceis ou confortáveis. Estava assim vetada sua ausência.

Com virgens, Vinicius e Darcy

Daquele amigo e camarada de uma certeza profunda da perenidade e sobranceira imortalidade dos que, imprescindíveis, lutam por um mundo novo, humano e justo. "Nós não morremos, somos highlanders", sentenciava tão convincente e com tão usual frequência — que, hoje acreditamos: a essa altura da vida está iniciando uma vida nova, de onde contempla uma numerosa descendência. Aquela dimensão na qual fiava uma determinação muçulmana: uma outra existência enquanto continuidade renovada de sua renitente esperança na vida, com um paraíso e 70 virgens sedentas dos seus afagos.

Sim, porque as mulheres, alinhadas aos persistentes sonhos de revolução, ocuparam intensamente seu gentil e gentio imaginário — que, dedicado, as confortava em atenção num humorado e afetivo cuidado, agradando-as, a todas as que passaram ou permaneceram em sua vida, de cada uma delas um país a ser desvendado no infinito universal onde nadou de braçadas. E não foram poucas. A essas horas faz seu balanço ao lado de Darcy Ribeiro e Vinicius de Morais, entre outros trovadores das sensuais primícias e fartas colheitas e, cada um ao seu modo, dos sonhos de subversão da desigualdade e institucionalização da felicidade.

De suas vicissitudes e peripécias revolucionárias, teceu sensíveis linhas, inspiradas na indômita bravura, José Reinaldo Carvalho: http://www.vermelho.org.br/noticia/249092-1#.VAs8__k7WuY.facebook . Acerca de seus derradeiros momentos, a firme, serena e solidária memória de Marcos Tenório (Sayid Ahmad), guardou as mais agudas lembranças, ao lado do seu (missionário na extrema dedicação) médico Hudson Mourão Mesquita e de todos os que assumiram quase anônimos seus cuidados finais.

De um modo tal que recordar Luiz Aparecido da Silva é um tão enciclopédico e coletivo resgate quanto a tarefa de reunir todos aqueles velhos amigos e outros, de quem tratei de aproximá-lo, entre muitos dos bons polemistas da luta dispersos pelo país, de suas mais remotas ou recentes amizades. E isso dará um belo e majestoso livro, dádiva de uma época heroica e generosamente subversiva.

Com Luiz, nosso querido e pranteado Aparecido, somos todos eternos.

E veio seu inacreditável aniversário, ao terceiro dia

No crepúsculo dessas linhas, deparei-me com aquela renovada confirmação do seu aniversário: Luiz impactou seus amigos — cada um a chamá-lo de “meu” — como uma raríssima proeza humana que repercutiu nas redes sociais como se o dom corpóreo driblasse as possibilidades da matéria. Uma dessas, daquelas que fazem chorar junto, é de seu amigo Rogério Siqueira, num leal retrato do Luiz que conhecemos, aquele que exercia quaisquer debilidades como escravas de suas qualidades e que, com sua existência, nos conclamou à unidade diante da adversidade e da alegria:

“O meu Luiz Aparecido, "…Ou não! Como diria Caetano

Eis que o nosso Luiz Aparecido, "partiu fora do combinado", como diria o Rolando Boldrin. Nos despedimos dele justamente num 7 de setembro, que prá mim, doravante, será o feriado de Luiz Aparecido, sim, porque entre ele e Dom Pedro I, sou mais o meu amigo highlander!

Militante comunista, cangaceiro judeu, revolucionário até o último fio de cabelo, sociólogo, compositor e poeta bissexto, bombeiro (isso mesmo, ele também manjava muito de bombas…), e maior especialista em capivaras de toda a "Grande Penápolis", que prá quem não sabe, e ele vivia explicando: vai de Três Lagoas-MS até Bauru-SP.

Pai de quem quisesse ser seu filho, meu camarada e amigo Aparecidinho não tombou nem à tortura, que lhe ceifou um dos rins, nem às balas da ditadura militar, uma das quais mora até hoje em seu crânio, e deve ter permanecido lá para que nunca nos esqueçamos deste período nefasto da história brasileira. Sim, amigos, se hoje estamos aqui em liberdade, também é graças ao nosso Luiz Aparecido e tantos outros militantes que deram seu sangue, sua saúde e muitos a própria vida.

Numa certa manhã, quando trabalhávamos juntos aqui em Brasília, vindo do Aeroporto, Aparecido adentra nossa sala, abre um enorme sorriso e diz: "Acabei de dar de cara com um japa que foi um dos meus torturadores!". Perguntei por que ele estava dizendo isso com tanta leveza e sorrindo, se o sujeito foi um dos que quase o mataram. Ainda com ar sorridente ele respondeu: " Nos cinco segundos em que paramos frente a frente, ví o desespero no olhar dele, desespero que nunca tive quando ele me torturou !"

Dizia que era "highlander" e não iria morrer nunca… Assim como seus camaradas Cloves Wonder e Arthur De La Meza. E só hoje podemos constatar que é a pura verdade, não morrerá mesmo, e vivo está por sua trajetória revolucionária, pelo sentimento de amizade que cultivou do seu jeito, pelo seu humor ácido e certeiro.

Semana passada ao visitá-lo no San Marcos, me despedí dizendo que ele sairia dessa, pois já havia vencido embates piores. Ele me respondeu que iria se reerguer mesmo, e quando eu já me afastava ele completou: "ou não, como diria o Caetano".

Cada um tem o seu… Este é, e será sempre o meu Luiz Aparecido.

Rogério Siqueira 07/07/14”

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