Lula, Vargas e uma independência nacional e classista

“Sempre tive em vista, ao resolver o problema das relações do trabalho e do capital, unir, harmonizar e fortalecer todos os elementos dessas duas forças do trabalho social.”(Getúlio Vargas, em discurso de 1940)



“O caminho da política exige

Recentemente, em 30 de agosto, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva afirmou, durante a reunião ministerial na Granja do Torto, que o Brasil vive um momento altamente positivo e que as realizações do governo dele só têm comparação com o governo Getúlio Vargas, tendo como maior legado de sua gestão “a consolidação das realizações sociais” e uma fase de “crescimento econômico sustentado com distribuição de renda”. Para Lula, referendado pelo seu ministro Guido Mantega, a proposição “social-desenvolvimentista”, que lembra Vargas, tem como norte um crescimento econômico mais vigoroso, associado a uma redução das desigualdades sociais e regionais, através da eficiência na aplicação dos recursos para investimentos, sobretudo nas áreas de assistência social, habitação e obras de infra-estrutura.


 


 


Resta saber sobre qual perspectiva getulista Lula e Mantega fazem referência: certamente não é em relação ao primeiro Vargas, do pós-1930 e da ditadura do Estado Novo, que buscava o desenvolvimento econômico e a harmonia social, reprimindo os movimentos autônomos dos trabalhadores; até agora, tem se aproximado do segundo Vargas, menos subserviente ao imperialismo, mesmo que não projete o rompimento com este, e mantendo a harmonia social.[1]


 


 


Gisálio Cerqueira já disse há tempos que no Brasil o pensamento político burguês trata a questão social no interior de uma teoria da integração social, visando naturalizar os efeitos da luta de classes, procurando apresentar uma imagem de harmonia e integração.[2]


 


 


Em outro artigo, ao estudar os conflitos entre a consciência de classe e a consciência nacional, tendo como recorte histórico a década de 1930, abordei o significado do discurso da harmonia social, a partir de uma perspectiva nacionalista, que se prestava à da dominação burguesa, em contraposição à libertação da classe operária.[3] Naquele tempo, alicerçada na máxima da manutenção da ordem para a construção do progresso, a ampla frente de apoio a Getúlio Vargas, construída por coerção e consenso, elaborou um discurso político hegemônico fundamentado na lógica da integração social entre os indivíduos e as diferentes classes sociais. Em síntese, contra a luta de classes para manter a dominação de uma sobre a outra, a harmonia social e a conciliação política apareciam como a panacéia para um projeto de desenvolvimento nacional.


 


 


Entre os governos que mais se aproximaram deste projeto, tendo atrás de si uma idéia de Nação, tivemos os de Getúlio Vargas (1930-45 e 1951-54), o de Juscelino Kubitschek (1955-60) e o de João Goulart (1961-64).


 


 


Porém, em cada um deles, com todos os seus limites históricos, cada vez que a harmonia social colocou em xeque a dominação das frações de classe dominante mais retrógradas e conservadoras e avançou para a diminuição da taxa de exploração dos trabalhadores, a solução foi a quebra dos projetos em curso: em 1954, com o reacionarismo udenista que só não se efetivou em corte constitucional devido ao suicídio de Vargas; em 1964, com o Golpe Civil-Militar que recolocou o Brasil na divisão internacional e capitalista do trabalho, submetido ao domínio geopolítico norte-americano.


 


 


Nestes momentos, qualquer avanço que englobasse, através de um projeto nacional, os setores sociais menos favorecidos, fez com que a classe dominante optasse, baseada no latifúndio e sócia menor do capital financeiro, pela quebra da ordem democrática. Pois, foi, justamente, nestes momentos que apareceram as contradições e os limites de um projeto nacional dirigido pela “burguesia brasileira”, devido ao explicitamento de sua visão seguidista do imperialismo.


 


Nos tempos atuais, ainda no quadro da ascensão neoliberal, este dilema retorna, agora sobre novas bases. Uma análise mais aproximada da realidade da luta política e da correlação de forças entre as classes permite identificar que a questão nacional tornou-se paradigmática para o rompimento com a ofensiva do capital. Não foi por nada que o discurso político do “Consenso de Washington” resultou na criação ideológica da armadilha do “fim do Estado-Nação”, lamentavelmente assumida por muitos integrantes que militavam em torno da esquerda, em nível mundial.


 


 


A questão que ainda resta, é se existe a possibilidade de um rompimento nacional com o neoliberalismo e o imperialismo, travestido de “globalização”, sem que seja já um rompimento de classe.


 


 


Para o PT, que nasceu baseado no discurso político de contraposição à “esquerda tradicional” (leia-se aqui os comunistas) e ao “populismo” (os trabalhistas), oriunda do “novo sindicalismo” e da “nova esquerda”, é de se reconhecer que houve uma virada na sua antiga argumentação, em especial depois de assumir o Governo Federal em 2003.


 


 


Desde que o Partido dos Trabalhadores chegou ao poder da República, com Lula, foi fortalecida a perspectiva do rompimento com a ordem mundial, com todos os seus limites e contradições. Também, desde que assumiu o Governo, Lula tem feito diversas comparações com governantes passados, em especial com Vargas e Juscelino, em contraposição a Fernando Henrique Cardoso, o qual vivia vociferando que a “Era Vargas” deveria ser ultrapassada.


 


 


Para FHC, sustentáculo do projeto neoliberal durante oito anos, superar os tempos de Vargas, significou retirar direitos dos trabalhadores, privatizar estatais, romper com um projeto de nação soberana e autônoma, enfim, subordinar-se aos velhos ditames das classes dominantes conservadoras, cujo DNA sempre foi a entrega do patrimônio público e da riqueza do país as monopólios estrangeiros, acumulando para si uma parte menor desta fatia.


 


 


Lula já falou que Getulio Vargas insurgiu-se contra as elites e que ele vem fazendo o mesmo.


 


 


Não há dúvidas que os neoliberais não admitem o gerenciamento do país por Lula, mesmo que ele tenha firmado compromisso, através da Carta ao Povo Brasileiro de 2002, com a política econômica conservadora que respeitou os contratos e o mercado.


 


 


Sabemos que, no conteúdo do que tem feito até aqui, Lula vem fotalecendo o pacto histórico de harmonia com o capital. O problema é que nossas classes dominantes sequer têm aceitado pequenas mudanças como as limitadas políticas sociais e uma maior diversidade nas relações comerciais internacionais, mesmo que sustentadas por um superávit primário além daqueles exigidos pelos organismos internacionais, além de uma política de juros, mesmo que decrescente, mas que ainda soma fabulosos lucros ao capital financeiro.


 


 


Apeadas de parcela do poder, em especial do Executivo, as classes dominantes brasileiras Liberais e conservadoras, só têm feito renovar sua tática do discurso moralista e hipócrita em torno da corrupção: foi assim no pré-1954, com a UDN e Carlos Lacerda a frente; se repetiu antes de 1964, com a construção golpista do IPES-IBAD (Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais-Instituto Brasileiro de Ação Democrática)  e a Marcha da Família com Deus pela Liberdade, novamente lideradas pela UDN e com apoio norte-americano; se repete agora com o Movimento “Cansei”, dirigido a partir da FIESP, tendo atrás de si participantes “ilustres” de parte da sociedade civil e de figuras midiáticas pretensamente despolitizadas.


 


 


Nossas classes dominantes não aceitam desviar um milímetro de seu projeto antinacional, antipopular e entreguista, não aceitando qualquer via “social-desenvolvimentista”.


 


 


Por outro lado, parece que a estratégia do governo Lula, ao não aprofundar a defesa da questão nacional e de classe, vai demonstrando o seu limite histórico e do Partido dos Trabalhadores. Estaria, assim, repetindo as experiências européias de Miterrand e González, os quais, não tendo projeto contra o neoliberalismo, sucumbiram a ele?


 


 


Se não, suas teses congressuais de impedir o avanço do neoliberalismo têm de ter conseqüências mais práticas e avançadas para nosso país, com soberania nacional, valorização do trabalho e maior distribuição de renda, no rumo do socialismo.


 


 


Gisálio Cerqueira escreveu sobre nosso país que “nos momentos conjunturais em que uma crise de hegemonia não se configura como viável, o pensar e o agir das classes dominantes tendem a se aproximar”, a qual “se resolve na base da conciliação, do favor recíproco, da barganha, da política enfim”. Por outro lado, continua o autor, “nos momentos conjunturais de aguçamento da crise de hegemonia”, a solução dos conflitos “deve ser resolvida na base dos aparelhos repressivos de Estado.[4]


 


 


Parece que, na atual conjuntura, mesmo que o governo Lula tenha optado mais pela conciliação, a classe dominante brasileira, alicerçada no bipé partidário do PSDB-DEM, tem preferido o confronto, sobretudo buscando desestabilizar o Governo, visando, primeiro, impedir uma alternativa à esquerda para as eleições de 2010 e, segundo, não devemos subestimar, pois conhecemos suas opções históricas, romper com as limitadas experiências de democracia burguesa.


 


 


Mais do que nunca, é nesta quadra que as forças de esquerda e classistas, tendo Vargas ou Jango como horizontes, mas não como um fim, devem colocar na ordem do dia um projeto que seja nacional e classista, que vá além da conciliação e da harmonia social (esgotados historicamente) e se baseie na neutralização política da burguesia financeira, como um movimento proveniente dos movimentos sociais e dos setores comprometidos com mudanças, que rompa definitivamente com o ciclo de mudanças pelo alto, das constantes “modernizações conservadoras” que marcaram nossa República.


 


 


O Bloco de Esquerda poderá representar o início desta alternativa? Talvez, transformando crescimento em desenvolvimento sócio-econômico, construindo um programa avançado e democrático, com mais direitos para os brasileiros, explorando ainda mais as contradições que existem entre os projetos autônomos da América Latina e o imperialismo norte-americano, se apoiando em um amplo movimento popular e de trabalhadores, com perspectiva nacional, desde que classista. Daí sim caminharemos para uma verdadeira independência nacional.


 


 


Notas


 


 


[1] Osvaldo Bertolino explica que “quando Vargas assumiu o seu segundo governo, ele se deparou com problemas complexos herdados do governo do general Dutra e enfrentou a crise econômica acelerando o papel do Estado na economia e atraindo os trabalhadores para o seu projeto. Ao contrário de Dutra, que considerava indevida a intervenção do Estado na economia, Vargas aplicou — como havia feito no início da década de 40 — uma orientação política que correspondia às tendências nacionalistas das forças que o apoiavam e à sua doutrina de harmonia dos interesses de classes”. Cf. Eleições, reformas e golpes no Brasil. In.http://www.vermelho.org.br/diario/2004/1027/bertolino_1027.asp?NOME=Osvaldo%20Bertolino&COD=3858. Acesso em 04/09/2007. Sobre as contradições do segundo Governo Vargas, ver o artigo Radicalização e crise do segundo governo Vargas, de Augusto Buonicore. In. http://www.vermelho.org.br/diario/2004/0902/0902_gv9.asp. Acesso em 04/09/2007.


 


 


[2] Cf. CERQUEIRA FILHO, Gisálio. A “questão social” no Brasil: crítica do discurso político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982, p. 27.


 


 


[3] Ver KONRAD, Diorge  Alceno. Operários no Rio Grande do Sul (1930-1937). Conflitos entre identidade nacional e identidade de classe. In: Centro de Estudos Marxistas – CEM. (org.). Os trabalhos e os dias. Passo Fundo: Editora da UPF, 2000.


 


 


[4] CERQUEIRA FILHO, Gisálio, op. cit., p. 28.

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