Malcolm X: Um mestre da organização de bases sociais de resistência

De menino órfão e aluno exemplar, Malcolm Little – abismado pela cidade grande, representada por Boston e, depois, por Nova Iorque –, abandonando os estudos, converteu-se em trabalhador de baixa qualificação (engraxate, lavador de pratos, menino de ferrovia a vender sanduíches nos vagões, faxineiro de trem, balconista etc.); depois em pequeno vigarista, a dar golpes no carteado e a bater carteiras; até ingressar de uma vez no tráfico de drogas, no comércio do sexo, na vida bandida e ser preso.

Sua conversão na cadeia ao islamismo (num momento em que o Islã se apresentou como alternativa de resistência ao racismo nos EUA – não por acaso ídolos negros fizeram o mesmo, a exemplo do campeão de box Muhammad Ali), marca o nascimento de um dos maiores intelectuais negros dos EUA e do mundo. Porém, esse intelectual devorador de livros de linguística, história, geografia, sociologia, filosofia, literatura, atualidades, entre outros, teve como placenta não os currículos de bacharelado ou doutorado das universidades, mas apenas sua extraordinária capacidade autodidata e suas reconhecidas habilidades de linguagem e oratória.

Do momento em que saiu da prisão, em 1952, até o momento em que foi vítima do atentado que o vitimou, aos 39 anos de idade, em 1965 (fevereiro deste anos completaram-se cinqüenta anos de seu assassinato), Malcolm teve apenas doze anos para se tornar no ícone que hoje serve de inspiração a jovens e lutadores da causa da igualdade do mundo todo.

Em que pesem as críticas que possam ser feitas a aspectos de seu radicalismo – algumas realizadas por ele mesmo após sua viagem ao Oriente Médio –, deve-se reconhecer o verdadeiro prodígio realizado por Malcolm Little nesse tão curto espaço de tempo.

E que prodígio foi esse? O de, recuperando sua história familiar, a dos negros nos EUA e a dos oprimidos do mundo operar uma radical metamorfose em si mesmo e oferecer-se de peito aberto como veículo de transformação e luta por justiça social. Não fosse universalmente sabida, seria legítimo dizer em relação a essa metamorfose: não é verdade, não aconteceu, é pura ficção. Porém, ela aconteceu, continua pelo tempo a fora e atende pelo nome Malcolm X.

Tratei um pouco dessa metamorfose em meu livro O jovem Malcolm X, recentemente lançado pela editora Nova Alexandria, de São Paulo. Não foi surpresa o que ocorreu depois. Desde junho, data da mesa redonda “Malcolm X entre amigos” tenho sido solicitado a falar sobre ele em escolas, universidades, comunidades e até mesmo em reuniões organizadas na casa de pessoas que o admiram.

Em todos esses encontros o que se sobreleva é o respeito por ele jamais ter-se afastado das bases sociais (algo tão reclamado hoje em nossas organizações de esquerda – de partidos a sindicatos, de entidades estudantis a movimentos comunitários), a admiração profunda por seus laços com os guetos de extrema pobreza; por sua coragem de enfrentar as situações mais adversas com espírito de luta, sua persistência no combate ao racismo e sua incrível capacidade de organização.

Num momento em que as esquerdas no mundo todo se encontram acossadas por forças conservadoras, não seria ocioso estudar criticamente as estratégias empregadas por líderes como Malcolm X, assassinado exatamente pelo sucesso de suas ações juntos às bases da sociedade. É o que tenho feito nos últimos anos, também em relação a Luther King, Nelson Mandela (sobre o qual escrevi um, livro O jovem Mandela, em 2013) e Patrice Lumumba (sobre o qual pesquiso atualmente).

Para semelhante trabalho convido os amigos pesquisadores, escritores e intelectuais, por entender que na trajetória de líderes como esses residem muitas lições a serem extraídas acerca dos resultados péssimos que colhemos quando nos afastamos do duríssimo mas decisivo trabalho de organização de bases – que teve em Malcolm X um de seus mais criativos e bem sucedido mestres. A NOI, Nation of Islam, seita em que ingressou ainda na prisão, tinha perto de 400 membros quando ele aderiu a ela. Doze anos depois, fruto de suas estratégias de “pescaria” – como ele as chamava, ela contava com 40.000 militantes fortemente organizados e perto de 400.000 adeptos por todos dos EUA.

A história tem demonstrado que, quando perdemos as bases, perdemos em seguida a própria direção. Os últimos duzentos anos do mundo são pródigos em exemplos de organizações revolucionárias que se corromperam em sua trajetória em busca do poder exatamente por terem perdido a própria alma: a fidelidade para com as classes trabalhadoras, os pobres, os injustiçados e perseguidos pelo sistema capitalista, os expulsos para as periferias geográficas e sociais, os confinados em guetos de extrema pobreza e violência – a essa fidelidade (uma vez que o critério da verdade é a prática) que só pode ser concretizada no trabalho real, permanente, persistente junto a essas mesmas bases sociais, razão de ser de todo movimento revolucionário contemporâneo.

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