Maomé, líder e profeta de um povo

Esta coluna, que completou em 28 de março quatro anos ininterruptos de artigos (194 no total), tratou ao longo desses anos de temas diversos, seja sobre os palestinos, sobre a situação do Iraque, Síria, Israel, mas também

Esta coluna, que completou em 28 de março quatro anos ininterruptos de artigos (194 no total), tratou ao longo desses anos de temas diversos, seja sobre os palestinos, sobre a situação do Iraque, Síria, Israel, mas também sobre a Turquia e Irã. Comentamos vários livros, artigos de autores conceituados. Falamos também o Islã, religião que mais cresce no mundo hoje e já supera, em termos de adeptos, a católica (mas não ainda os cristãos de todas as confissões). O perfil da coluna não é acadêmico. Ela se caracteriza por artigos curtos, sem muitas citações, quase que jornalísticos ou de reportagens curtas.
           
Hoje, resolvemos falar sobre um personagem que marcou a história não só dos povos árabes, mas inseriu seu nome na história mundial: Maomé. A melhor forma de escrevermos o nome do Profeta do Islã deveria ser Mohammad, como em alguns momentos já o fizemos. No entanto, a grafia ocidental de Maomé esta amplamente difundida e assim a usaremos.
           
As pessoas sabem que não sou um crente. Como dizia Isaac Asimov, grande cientista e ficcionista, posso dizer que tenho fé e crença, mas minha fé e mina crença partem do princípio de que todas as coisas do Universo são explicadas pelas leis gerais que regem esse próprio Universo. Essa é a minha fé e minha crença.
           
Também aqui, para falar de Maomé, eu o faço como sociólogo, como estudioso das relações sociais e a própria religião que ele criou e se desenvolveu, deve ser estudada como um fenômeno social, objeto de estudo dos sociólogos. E, claro, para falarmos desse árabe do século VI e VII, devemos também ter olhos de historiador, procurando entender o contexto em que as suas revelações divinas teriam ocorrido e as transformações que elas acarretaram nos povos da região da Arábia, os impactos sociais, políticos e econômicos.

A origem, em Meca
           
As datas não são precisas, mas Maomé deve ter nascido no em 29 de agosto de 570, do calendário cristão. Já nasceu órfão de pai e com seis anos fica órfão também de mãe. Foi criado por seu avô Abd Al Muttalib e integrava a tribo mais importante e tradicional de Meca, que era a dos coraixitas. Uma espécie de classe dominante, classe alta. Dentro dos coraixitas, pertencia ao clã de Beni Hashemi, um ramo um pouco mais pobre da tribo. Conta uma tradição religiosa que logo quando era criança, teria avistado dois seres iluminados, que teriam retirado de seu peito um coágulo negro, que o teria salvado (1). Mas também Muttalib morreu em seguida, e Maomé passou à tutela de seu tio, também poderoso, Abu Talib.
           
A cidade de Meca era uma espécie d parada obrigatória das caravanas de comércio que vinham da Índia e rumavam para a Europa, atravessando o Mediterrâneo. Ainda que localizada no deserto da Arábia, hoje Saudita, tinha vários oásis por perto sendo que o mais famoso deles era a cidade de Yathrib, hoje chamada de Medina, onde Maomé teria se abrigado depois de tantas perseguições a que sofreu depois do início de sua pregação como profeta de Deus aos 40 anos. Por uns anos, abrigou-se na vizinha Abissínia, que era dominada por cristãos, que também o receberam bem. A sua estada em Medina foi um exílio e inicia-se em 622, quando ele tinha apenas 42 anos. Essa data, conhecida como a Hégira, para os muçulmanos é considerado o ano 1 do seu calendário, que é lunar e não solar como o nosso (o ano lunar tem 11 dias a menos que o solar, ainda que seus meses sejam em número de 12 como o nosso).

As revelações
           
A vida de Maomé não era diferente de outros jovens de família abastada. Logo iam aprender o comércio e integravam as caravanas que saiam de Meca ou que por ela passavam. Os lucros dessas expedições deveriam ser guardados e bem planejados para um e dois anos até, pelo fato que tais trabalhos eram demorados e não eram rotineiros.
           
Já com 25 anos, Maomé decide se casar com Khadija, uma mulher bonita, viúva e sem filhos, e muito rica para os padrões locais. Maomé passa a administrar uma espécie de central comercial que ela tinha e ganha bastante dinheiro com isso. Com Khadija tem quatro filhas mulheres e dois homens, mas estes morrem quando criança. Mesmo entre as mulheres, apenas Fátima lhe deu netos. Ela se casa com um primo de Maomé, Ali, que se tornaria o seu quarto sucessor, conhecidos como Califas (os filhos de Fátima e Ali, que se chamavam Hassan e Hussein, são considerados pelos xiitas, uma espécie de fundadores dessa corrente religiosa).
           
Maomé era conhecido como um dos homens mais íntegro de sua tribo. Mas também religioso. Gostava de fazer meditações, especialmente em uma montanha chamada Hira, nas proximidades de Meca. Foi exatamente numa dessas longas meditações, que ela relata um fenômeno que lhe teria ocorrido. O arcanjo Gabriel aparece a Maomé. Como sabemos, Gabriel, na literatura bíblica é o mesmo que aparece para a Abrahão e lhe pede que sacrifique seu filho e o que anuncia para Maria, que ela seria mãe de Jesus. O arcanjo pede que Maomé leia um pergaminho em seda escrito em árabe que lhe é entregue. Maomé, espantado e apavorado diz que não sabia ler, quando o anjo recita a primeira Sura do que viria a ser o Corão, livro sagrado dos muçulmanos, que é chamada de Shahada (é quando os muçulmanos declaram a sua profissão de fé, tanto em um só único Deus, que é Alá, como em seu Profeta e Mensageiro, que é Maomé). Nesse momento histórico, a ocorrer como Maomé relatou a seus seguidores, ele teria sido então ungido por Deus como o último dos Profetas do chamado ramo abrâmico, que fecharia o ciclo profético com as revelações que, a partir desse momento, lhe seriam feitas.
           
Há riqueza de detalhes na descrição desse processo de revelações e são várias as fontes. Maomé entrava em um transe, perdia peso, suava muito, enfim, era um extremo desgaste. Isso é típico de estados de transe, sejam eles de qualquer ordem. A mente fica concentrada em uma só fato e isso gera grande perda de energia. As suas revelações eram transmitidas ao seu círculo mais íntimo da família e podemos dizer que sua esposa, Khadija, pode ser considerada, portanto, a primeira muçulmana da história, pois foi a que primeiro teve contato e sua grande incentivadora para que revelasse ao mundo o que o anjo Gabriel estava lhe contando.
           
Os primeiros anos foram muito difíceis. Isso porque a cidade de Meca era pagã, idólatra, ou seja, viviam em um sistema politeísta, adoravam vários deuses e ícones, estátuas. Dentro da pedra negra, chamada de Caaba, que se supõe ter sido construída por Abrahão, a partir de um meteorito que caiu na terra, estavam vários símbolos de divindades pagãs. As deusas mais importantes da região eram Al Ozza, Al Lât e Manât. A pregação de Maomé caminha na linha do judaísmo e do cristianismo, da qual ele recebe influência pelas tribos que viviam tanto em Meca como em Medina (que, em árabe, quer dizer literalmente “cidade do profeta”). A região como um todo era completamente avessa ao monoteísmo e isso dificultou os primeiros anos da vida do Profeta.
           
Como ocorreram com os profetas que o antecederam (e o Corão fala em 25 profetas), todos foram desacreditados pelos fiéis. Estes, como na maioria dos casos, sempre exigiram realizações de milagres e, na maioria das vezes, isso não ocorria. No caso de Maomé, nunca ocorreu. Ele não se proclamava, como Jesus, “filho de Deus”, mas simplesmente o Profeta de Deus (2).

Assim, ele nunca participou de cura alguma. Sua pregação era religiosa, mas também se relacionava com costumes que eram novos para a época e para a região. E eram avançados para a sua época, como a pregação da igualdade e o desprendimento das pessoas, a exigência de que estas deveriam repartir as coisas com as pessoas e deveriam ser desprendidas com relação à suas propriedades (ainda que reconheça o direito a tê-las).

A cidade escolhida, Medina, lhe acolhe muito bem. Boa parte de seus moradores, quando ele chega por lá no seu exílio, a partir de 28 de junho de 622 (data da Hégira, que em árabe quer dizer exílio), já estão convertidas ao Islã, à exceção dos que são cristãos e judeus que seguem com suas próprias profissões de fé. Todos oferecem suas casas, mas Maomé prefere construir uma nova, que seria a atual mesquita da cidade, a mais importante.

A consolidação do Islã
           
Tal qual outras grandes religiões, o Islã começa frágil, mas pela extrema habilidade, desprendimento, humildade entre tantos outros valores que Maomé tinha, os adeptos vão aumentado a cada dia. No entanto, a expansão das idéias do Islã não ocorre pacificamente. Ainda que o plano inicial de Maomé fosse no sentido de que as revelações seriam apenas para os árabes, ela se expande para outros povos e outras regiões da terra, na Ásia e África e parte da Europa. Essa expansão se dá mais depois da morte do profeta em 532, pelos quatro Califas que o sucederam (são os “bem guiados”), que foram, pela ordem Abu Baker, Omar, Othman e Ali. A expansão ultrapassa a península arábica, estende-se ao Norte da África, conhecida como Maghreb, atravessa o mediterrâneo na península ibérica e à Leste da Arábia, ganha a Índia e parte da China.
           
Essa expansão se dá pela combinação de vários fatores, mas fundamentalmente pela personalidade do Profeta, pelas idéias que ela difundia e pela força da armas. Alguns autores chamam o Islã da “religião guerreira”. Esse fenômeno é observado também pelo cristianismo. No entanto, há que se registrar historicamente que o Islã é de todas as religiões, a mais tolerante delas. Certa vez o sociólogo francês, Gustave Le Bon, disse que é verdade que não existiu nenhum império “bonzinho”, mas entre todos, o menos ruim, que causou menos dados aos povos conquistados, foi o Árabe-Muçulmano.
           
Aqui também há que se levar em conta a habilidade do Profeta, sua diplomacia, os acordos que estabelecia – e os cumpria à risca. Também aqui pesaram até alguns de seus 11 casamentos (ainda que o Corão fale em que o muçulmano possa ter só quatro esposas, uma revelação especial foi feita pelo anjo Gabriel para permitir que o Profeta casasse mais vezes).
           
Maomé usa a força da religião para impor novos costumes, novas idéias, uma nova moral e novos valores a um povo que vinha de uma situação de adoração de imagens e estátuas, que era idólatra. Introduziu hábitos saudáveis de higiene e saúde. Exemplo disso são as cinco vezes ao dia que os fiéis devem se lavar antes das suas orações. Veja o aspecto interessante sobre alimentação. Maomé proibiu o consumo de carne de porco (que já havia alguma restrição antes, mas não era vedado). Numa região em que a temperatura média é de 40 graus imaginem o quanto mal faz o consumo dessa carne, ainda mais criado na época sem quase nenhum rigor higiênico.
           
Os estudiosos do Corão (que em árabe quer dizer “revelação”) costumam dividir as Suratas reveladas, que são 114 ao todo, com mais de seis mil versículos, em quatro grandes blocos: as que tratam da crença e da fé (Al Agida), as que tratam do culto em si (Al Ibáda), as que tratam da moralidade (Al Akilád) e por fim, as que tratam das relações sociais entre as pessoas (Al Muamalád). Este quarto bloco é que normatiza as relações entre as pessoas, entre os cidadãos, trata dos direitos e deveres, aborda a questão da propriedade, fala dos direitos da mulher – pela primeira vez no século VII -, fala do casamento, da herança, do divórcio e tantas outras normas e questões sociais. Para a sua época e em certa medida ainda nos dias atuais, pode-se dizer que a mensagem do Islã é uma mensagem progressista, avançada, igualitária e libertária. Não é de se estranhar que hoje o imperialismo norte-americano tenha ódio mortal dessa religião e de seus seguidores. Além do livro sagrado dos muçulmanos, existem dois outros que são importantes: a Sunna, que trata das tradições e do comportamento do Profeta e os Haddits, que trata das palavras do Profeta e seus atos, descritos a partir de seus principais seguidores. Tal qual os livros sagrados do cristianismo, o Corão só foi sistematizado na forma atual, entre os anos de 650 e 656 da nossa era, ou seja, pelo menos entre 18 e 24 anos da morte do Profeta, sob o Califado de Othman, o terceiro Califa Hashidun (em árabe, “bem guiado”).
           
Na fase final de sua vida, Maomé mostrava-se um homem cada vez mais desprendido de coisas materiais. Ainda que muitas batalhas tivessem sido necessário para a conquista das cidades na região da Arábia, uma a uma elas foram se convertendo ao domínio do Islã e respeitando as orientações e as normas emanadas do Profeta. A sua última peregrinação à Meca, saindo de Medina, acompanhado de mais de 80 mil fiéis, mostra a consolidação da sua liderança como chefe religioso, como chefe político e militar de um povo que agora tinha um rumo, um norte, orientações clara e unificadoras de sua maneira de ser, ainda que emanadas de preceitos religiosos, mas também sociais e até econômicos. Meca foi completamente subjugada, prostrou-se completamente ante ao Profeta Maomé. Nessa entrada triunfal na cidade, nenhum tiro foi disparado. Os primeiros fiéis que emigraram com ele reencontraram seus familiares, foi uma grande confraternização, uma festa. Os seguidores de Maomé, que o observam em tudo que ele fazia, viram que ele adentrou a cidade com apenas um manto branco, simples e despossuídos de todas as roupas do corpo e andando à pé. Adentro na pedra negra da Caaba, e lá dentro destruiu todas as imagens que ainda lá estavam. Nesse sentido, também é um avanço com relação a outras religiões, como a católica e as ortodoxas, que adoram imagens e ícones.


Maomé na história
           
Acho que ainda a história, pelo menos a Ocidental, não fez justiça ainda a essa figura chamada Maomé. Sua morte em 632, aos 62 anos, fez consolidar um império que seria um dos maiores que a história conheceria, mas até hoje, de meu ponto de vista, ele não é estudado e reconhecido como a dimensão que deveria ter tido desde então.
           
Diferente de Jesus e os que o antecederam, outros profetas judeus e mesmo Gautama Sidarta, da religião budista, onde quase não há registro histórico algum de suas existências, no caso de Maomé, esta fartamente documentado. Seu túmulo é local de peregrinação, a sua casa é uma mesquita e seus atos foram amplamente documentados por historiadores. Mensagens que ele enviou estão guardadas em locais sagrados os islamismo.
           
De qualquer forma, independente disso, a sua figura contribuiu para o desenvolvimento da região,seja do ponto de vista econômico, seja político e social. As idéias que ele pregou, para a época foram avançadas, como a abolição da escravidão e a repartição dos bens, com a ajuda aos mais pobres. Os direitos que ele defendeu para as mulheres são avançados para a sua época, ainda que precisem ser atualizados para os dias atuais (os povos árabes ainda são extremamente patriarcais).
           
Maomé, como já dissemos, não era um super-homem, nem se proclama filho de Deus. Tinha seus defeitos, seus problemas, suas dores e suas doenças. Gostava das mulheres e cuidava bem delas, desposando-as corretamente dentro das normas e leis islâmicas (Roger Garaudy, ex-membro do Partido Comunista Francês, convertido ao Islã, afirma que a legalização da poligamia nessa religião desfaz a hipocrisia da monogamia professada pelos cristãos, pois legaliza as amantes perante a sociedade).
           
Sua morte em 632, por mais que ele se proclamasse um simples mortal, acabou por abalar e transtornar todos os árabes da península. Em seus últimos momentos de vida, acometido de febre muito alta por dez dias seguidos, ele foi cuidado por Aisha, uma de suas esposas. Mas, antes de morrer, ainda lúcido, indicou Abu Baker para conduzir as últimas preces, fato que o fez seu primeiro sucessor no comando do já imenso Império Árabe-Islâmico. Reuniu suas últimas forças para assistir a essas orações, em 8 de junho de 632, o que causou um grande furor em Medina, quando se espalhou essa notícia de sua recuperação. Mas não. Voltou aos braços de sua esposa. Deixo aos leitores a descrição de sua morte, nas palavras de Barnaby: “Na madrugada do décimo dia de sua febre, Maomé arrastou-se para fora do quarto de Aisha com enorme força de vontade para participar das preces. A notícia dessa melhora parcial espalhou-se por Medina como um rastilho de pólvora. Ele voltou ao quarto de Aisha logo depois, deitou a cabeça em seu colo e segurou a sua mão com firmeza. Ficou deitado, imóvel, enquanto a febre subia durante a manhã. Então Aisha sentiu que a cabeça dele ficou mais pesada e ouviu-o dizer ‘Senhor, concedei-me o perdão’. O aperto em sua mão afrouxou-se. O Profeta tinha deixado este mundo” (página 250 da biografia citada).
(1) Revista História viva, Duetto Editorial, nº 8, junho de 2004.
(2) Recomendo aos meus leitores a leitura da biografia de Maomé, publicada pela Editora Record, de autoria de Barnaby Rogerson, intitulada O Profeta Maomé – uma biografia, 2004, RJ, traduzido por Lis Alves.
Observação: a despeito de eu comentar aqui passagens da biografia escrita por Barnaby, indico ainda aos meus leitores outras duas, às quais conheço e avalizo: uma delas, escrita por Karen Armstrong, publicada no Brasil pela Companhia das Letras e a de Máxime Rodinson, cuja tradução para o português esta disponível pela Editorial caminho, em Portugal (as versões em francês e em inglês são encontradas mais facilmente).
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