Maria Trindade e a chacina da Lapa

(…) Destes que caminham aí pelas ruas desta cidade sitiada
pelo medo e pela fome. Destes que pegam ônibus às
quatro, cinco da manhã; comem marmita ao meio-dia; tomam
o trem lá pela ave-maria; chegam em casa só o pó e
encontram forças para

Ao sair de Blumenau para Porto Alegre, em 1991, eu e minha companheira Glaucia reencontraríamos o PCdoB do Rio Grande do Sul que nos iniciou na militância na década de 1980, em Santa Maria. Sabíamos que ali estariam Jussara Cony, Raul Carrion, José Ouriques de Freitas, Edson Silva e tantos outros que haviam lutado contra a Ditadura Civil-Militar pós-1964, sobrevivido a ela e fortalecido o instrumento fundamental de luta do proletariado, o seu Partido.


 


Entre tantos que passamos a conhecer na capital gaúcha, estava uma camarada de traços firmes, forjada pela luta e um símbolo da resistência das mulheres contra a opressão.


 


Morava com Marcina dos Santos Campão, também solidária com aquela lutadora que havia se radicado no Rio Grande do Sul. Em vários ativos, conferências e outras atividades sempre lá estava a militante, exemplo para muitos de nós jovens que sempre acreditaram em um mundo socialista. Poucos de nós sabiam de sua trajetória histórica. Sua presença constante e silenciosa contrastava com a militância de mais de quarenta anos.


 


Na passagem de 1993, em confraternização de final de ano, na residência de Ângelo, Carolina, Gabriel e Denise Ramos Campão, meus cunhados e sobrinhos, com a presença de Marcina, ficamos sabendo mais de sua vida pela própria Maria Trindade, a guerreira que sobreviveu a Chacina da Lapa. Na ocasião, em relato pungente nos falou sobre o massacre de parte do Comitê Central do PCdoB, dos sobreviventes, das prisões e da tortura que seguiram ao 16 de dezembro de 1976.


 


Contou que estava no fundo da casa quando as forças da repressão chegaram atirando, matando de imediato Pedro Pomar e Ângelo Arroyo. Na prisão do DOI-CODI, em seguida, seria assassinado João Batista Drumond.[1] Muitos outros seriam presos e torturados.


 


Maria Trindade sobreviveu à traição e a delação da Lapa, às violências dos militares e aos anos de prisão para recepcionar João Amazonas, na volta do exílio em 1979. A foto dela abraçada a Amazonas se tornou um marco da história de nosso Partido.


 


No endereço 767 da rua Pio XI, Maria tinha como tarefa as atividades caseiras, fundamental para a infra-estrutura das reuniões e atividades clandestinas de resistência à Ditadura. Foi, como outros, vítima da Operação Araguaia, a caçada  repressiva após 1975 que visava liquidar o que restava da direção do PCdoB, em especial Amazonas.


 


Ao ser presa, Maria Trindade encontrou detidos seus camaradas Elza Monerat, Wladimir Pomar, Aldo Arantes e Haroldo Lima, todos da Executiva do Partido.


 


Joaquim Celso de Lima também foi preso. Todos foram barbaramente torturados. Drumond não resistiu.


 


 


A Chacina


 


 


De 11 a 16 de dezembro de 1976, no bairro da Lapa, realizavam-se as reuniões do Comissão Executiva e do Comitê Central do PCdoB, na casa da Pio XI. Lá residiam “Mara” (Maria Trindade) e “Jaques” (Joaquim Celso de Lima), com experiência militante e com amplo crédito da direção, como se fossem empregados: a primeira com afazeres domésticos; o segundo como motorista. Moravam na casa “Cid” (João Amazonas),[2] “Maria” (Elza Monerat) e “Jota” (Ângelo Arroyo), oriundos do Araguaia, após o fechamento da área pelo Exército Brasileiro.


 


Para as reuniões, com normas rígidas de segurança, Maria e Joaquim conduziam os dirigentes do Partido com olhos vendados, monitorados por Elza Monerat, responsável pela segurança dos deslocamentos.


 


No dia 16 de dezembro, aconteceu o massacre. Os corpos de Arroyo e Pomar foram dispostos como se tivessem morrido em confronto, mas foram executados de forma sumária, sendo que Pomar tinha mais de cinqüenta perfurações. [3] O laudo da morte de Drumond foi atropelamento. O ataque do II Exército a casa na Lapa, certamente, foi o último combate reacionário contra a Guerrilha do Araguaia


 


Que a história continue desmontando estas farsas para que não repitamos a tragédia brasileira do pós-1964. Rememorar nossos mártires da Lapa, contar esta história de assassinatos em nossas escolas e manter viva esta tradição de luta é o mínimo que podemos fazer para que o Brasil continue na trilha para a sociedade sem opressão de classes.


 


 


Maria e os 30 Anos da Chacina da Lapa


 


 


Em 9 de setembro de 1997, o coração de Maria Trindade parou de bater, aos 74 anos. Desde lá se foram quase dez anos. No dia seguinte a sua morte, na 67ª Sessão Ordinária da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, a deputada Jussara Cony anunciou: “assumo esta tribuna, em nome do PC do B, com muita tristeza, porque não apenas o nosso Partido, mas a luta popular, a luta das mulheres e dos homens pela transformação perdeu ontem uma grande militante. (…) Era uma pessoa simples, dedicada ao trabalho. Durante toda a sua vida aplicou-se com rara devoção às tarefas partidárias. Maria Trindade foi daquelas militantes anônimas, disciplinada, consciente, assídua e persistente, inclusive no árduo dever de atuar no Partido na época da clandestinidade, sem escolher tarefas, realizando nas atividades aparentemente pequenas a sua opção cotidiana de ser uma brava militante do Partido Comunista do Brasil. Nos duros anos da clandestinidade, Maria Trindade serviu na infra-estrutura do Partido, arriscando a cada minuto a sua própria vida. Cuidava com esmero dos locais onde a direção do Partido se reunia, nos períodos mais difíceis da ditadura militar. Quando o regime militar atacou a nossa direção partidária, no triste episódio conhecido como a Chacina da Lapa, lá estava Maria Trindade cumprindo com o seu dever. Ela foi a única sobrevivente daquela chacina. Foi presa, torturada, e não disse nenhuma palavra ao DOI-CODI que pudesse comprometer a nossa organização e a nossa luta. Cumpriu pena de prisão durante três anos e só foi libertada com a promulgação da anistia, em 1979, que surgiu no Brasil fruto da luta do povo brasileiro. Em liberdade, Maria prosseguiu no partido, atuando em Porto Alegre, com a dedicação de sempre. Foi um exemplo de militância para todos nós. Costumava dizer, naquele seu modo singelo mas eloqüente: ‘Minha vida é o partido’. Até o último momento de sua existência, Maria Trindade manteve inabalável a sua opção cotidiana de ser membro do Partido Comunista do Brasil. Quando fizemos, há duas semanas, a convenção do partido, rumo ao IX Congresso, lá estava Maria. Como sempre, de forma anônima, mas consciente, trazendo, com seu exemplo de vida e com a sua dedicação, mais forças para atuarmos na busca de um Brasil soberano, digno e socialista. Recebemos esta belíssima mensagem escrita pelo Presidente Nacional do Partido, João Amazonas: ‘Seus camaradas, saudosos, os militantes e dirigentes do PC do B, e pessoalmente o camarada João Amazonas, com quem atuou durante muitos anos, guardarão da camarada Maria Trindade as melhores recordações e farão da sua memória o exemplo vivificante a inspirar e a mover energias em prol da causa pela qual viveu e lutou.’ Digo que viveu e lutou; não digo morreu, porque mulheres como Maria Trindade não morrem, porque continua viva a sua luta por um Brasil socialista, por um Brasil com dignidade.”[4]


 


Nos 30 anos da Chacina da Lapa, Maria Trindade continua viva em nossa memória. Assim como Pedro Pomar, Ângelo Arroyo e João Augusto Drumond que deram a sua vida por um Brasil socialista. Que honra sermos herdeiros de suas lutas!


 


 


Notas


 


[*] Professor Adjunto do Departamento de História da UFSM, Doutor em História do Trabalho pela Unicamp.


 


[1] A versão oficial da morte de Drumond foi de atropelamento, assinada pelo 1º legista José Gonçalves Dias. Já para Ângelo Arroyo e Pedro Pomar a visão oficial foi de confronto, assinada pelos primeiros legistas José Gonçalves Dias e Harry Shibata, respectivamente. No dia 10 de abril de 2002 o Conselho Federal de Medicina, em Brasília, manteve a decisão do Conselho Regional de São Paulo, de cassação do exercício profissional do médico Abeylard de Queiróz Orsini, acusado de assinar laudos falsos que confirmavam a versão oficial das mortes de vários militantes, entre eles Pomar, Arroyo e Drumond. No dia 16 de julho de 1993, a juíza federal substituta Marianina Galante condenou a União a indenizar, por danos materiais e também morais, a viúva e as filhas de Drumond. Segundo o relato de Maria Trindade, militante presa no mesmo local – “….Eles não tinham armas e morreram sem nem saber por quê…”. Cf. Boletim Grupo Tortura Nunca Mais RJ – 23/04/2002.


 


In. http://www.desaparecidospoliticos.org.br/noticias/nt_abr2002.html. Acesso em 03/12/2006. Os depoimentos de Maria foram fundamentais para a cassação do médico e a indenização da família de Drumond.


 


[2] Quando da chacina da Lapa, João Amazonas estava representando o Partido no exterior e foi na China que recebeu a notícia do trágico acontecimento. Esta viagem o salvou novamente da morte. Pois esta operação, comandada pelo II Exército, tinha como um dos objetivos a eliminação do secretário-geral do PCdoB. Em entrevista à revista ISTO É o general Dilermando Monteiro, então comandante do II Exército, afirmou: “Nós descobrimos que naquele dia iria haver uma reunião em tal lugar, com a presença de tais e tais elementos, e aí fomos um pouco embromados, porque constava para nós que o João Amazonas estaria presente e o mesmo estava na Albânia, mas para nós ele estaria presente naquela reunião”. Apud BUONICORE, Augusto. “Tributo a João Amazonas (1912-2002) – Um comunista brasileiro”. In. http://www.vermelho.org.br/diario/2005/0527/0527_amazonas7.asp. Acesso em 03/12/2006. Sobre a Chacina da Lapa, ver tb. POMAR, Pedro Estevam da Rocha. Massacre na Lapa. Como o Exército liquidou o Comitê Central do PCdoB. São Paulo: Busca Vida, 1987; LAFORGIA, Reynaldo. Dezembro sangrento: a Chacina da Lapa. Campinas: Pontes, 1988.


 


[3] Pomar foi enterrado no Cemitério Dom Bosco, em Perus, sob nome falso. Em 1980, a família conseguiu localizar e trasladar seus restos mortais para Belém do Pará, onde estão enterrados (…)” Cf. sua biografia em http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/mor_mortes_oficiais/mor_1976_pedro_pomar.htm. Ver tb. POMAR, Pedro; CARVALHO, Luís Maklouf de et al. Pedro Pomar. São Paulo: Brasil Debates, 1980.


 


Ângelo Arroyo foi enterrado pela família no Cemitério da IV Parada, em São Paulo. Ver uma biografia sua em
http://www.torturanuncamais.org.br/mtnm_mor/mor_mortes_oficiais/mor_1976_angelo_arroyo.htm. Acessos em 03/12/2006.


 


[4] Ver o discurso de Jussara Cony na íntegra em
 http://www.al.rs.gov.br/anais/49/plenario/1997/970910.htm. Acesso em 03/12/2006.

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