Marx, Engels e o Partido Comunista (fim)

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O Partido Social-Democrata Alemão


 


 


Durante os primeiros anos de funcionamento da Associação Internacional dos Trabalhadores (AIT), a influência de Marx era muito pequena em sua terra natal. Por isso, ele se dizia um “general sem exército”. A Associação Geral dos Trabalhadores da Alemanha, fundada em 1863, era fortemente influenciada pelas ideias de Ferdinand Lassale. Este apregoava uma aliança com os junkers (aristocracia rural prussiana) no poder contra a oposição liberal-burguesa, em troca de alguns benefícios aos operários. Uma tática oposta à defendida por Marx e Engels.


 


Em 1869, um grupo de socialistas de esquerda rompeu com a associação lassaliana e realizou um congresso em Eisenach no qual se decidiu pela criação do Partido Operário Social-Democrata. Este foi o primeiro partido proletário, sob inspiração do marxismo, em âmbito nacional. Seus fundadores foram Wilhelm Liebknecht e Augusto Bebel, recém eleitos para o parlamento imperial.


 



A nova organização quando nasceu possuía cerca de 10 mil membros. Não podendo, legalmente, se filiar a AIT, o novo partido se disse “solidário” com suas aspirações. Desde então a I Internacional passou a ter uma base sólida em território alemão. Bons auspícios se anunciavam para os socialistas europeus, porém a guerra franco-prussiana (1870) e depois a derrota da Comuna de Paris (1871) iriam fazer estancar e retroceder esses avanços.


 


Neste período destaque especial merece a atuação dos dois únicos deputados marxistas do parlamento alemão. Eles, primeiramente, denunciaram a agressão militar perpetrada por Napoleão III contra a Alemanha e, quando o conflito mudou de curso e transformou-se numa guerra de conquista prussiana, eles não temeram acusar os objetivos de rapina de seu próprio governo e defender uma paz sem anexações com a França.


 


Por seu ato corajoso, Liebknecht e Bebel foram presos e acusados de alta-traição. Marx e Engels escreveram uma carta na qual diziam: “Nós todos ficamos muito satisfeitos com a manifestação corajosa dos dois no Parlamento Imperial, em circunstâncias em que, de fato, não era fácil mostrar franca e determinantemente as nossas opiniões”. Nascia, assim, um novo tipo de parlamentar, que colocava os interesses do proletariado mundial acima dos interesses de sua pátria capitalista e com aspirações imperialistas.


 


No Congresso de Gotha (1875), o Partido Operário Social-Democrata (marxista) se unificou com a Associação Geral Operária (lassaliana), fundando um único partido socialista: o Partido Social-Democrata Alemão (PSDA). Embora a unificação tenha sido um acontecimento de grande importância para a classe operária, o programa nascido com a fusão não agradou Marx e Engels. O documento, segundo eles, fazia demasiada concessão às concepções do velho Lassale, morto em 1864.


 


Contra este programa eclético Marx escreveu “Crítica ao Programa de Gotha”, que não foi divulgada na época. Nela duas críticas se destacavam: a ausência no programa da exigência da proclamação de uma República Democrática e a utilização do termo impreciso “Estado Livre” – para definir o Estado no socialismo. Para os marxistas, o Estado era essencialmente uma máquina de dominação de uma classe sobre a outra. O próprio Estado socialista não estaria a serviço da liberdade em geral, ele seria um instrumento nas mãos do proletariado revolucionário em sua luta contra a burguesia agora apeada do poder.


 


Devido a essas diferenças conceituais, Marx e Engels chegaram mesmo a considerar que a fusão não tinha valido o preço. A vida demonstraria que, neste caso, eles estavam errados. Os resultados da unificação foram mais positivos do que negativos. Em pouco tempo, por serem mais consequentes, as ideias marxistas triunfaram no interior do PSDA. Em 1877, o Partido conseguiu cerca de 500 mil votos – quase 10% do eleitorado – e elegeu 12 deputados. Isso representava 36% a mais do que haviam recebido os dois partidos socialistas somados na eleição anterior. O número de seus militantes chegava a 32 mil. 


 


Em 1878, diante do assustador crescimento eleitoral do Partido Social-Democrata, e aproveitando-se de dois atentados ocorridos contra o imperador, o primeiro-ministro Bismarck editou as leis antissocialistas. O Partido, recém-organizado, passou a viver numa situação de semi-clandestinidade. Suas sedes e jornais foram fechados. Vários dirigentes acabaram sendo presos e exilados.


 


Surpreendentemente, mesmo sob as leis discricionárias, o PSDA continuou crescendo. Em 1884 obteve 550 mil votos e, pela primeira vez, o número de parlamentares permitiu aos socialistas apresentar projetos de lei no parlamento. Três anos depois alcançou 774 mil votos. Um novo problema surgiu: a fração parlamentar acabou, de fato, assumindo a função dirigente do partido. Essa passaria a ser uma das características marcantes da social-democracia européia.


 


Um grande salto eleitoral aconteceria em 1890. O Partido conseguiu quase 1,5 milhões de votos, elegendo 35 deputados. Como resultado desta vitória estupenda dos socialistas, caiu o poderoso Bismarck e, com ele, todas as leis antissocialistas. Em 1893 chegou a 1,8 milhões de votos (mais de 25% do eleitorado) e elegeu 44 deputados. As leis autoritárias mostraram-se impotentes para conter o avanço da esquerda alemã. Os agrários e a grande burguesia precisavam agora encontrar outros meios para barrar a ameaça vermelha.


 


Diante de uma situação tão incomum, escreveu Engels na sua famosa Introdução ao livro de Marx, “As Lutas de Classes na França”: “A ironia da história universal põe tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘subversivos’, prosperamos muito melhor com os meios legais do que com os ilegais e a subversão. Os ‘partidos da ordem’, como eles se intitulam, afundam-se com a legalidade que eles próprios criaram. Exclamam desesperados com Odilon Barrot: a legalidade nos mata, enquanto nós, com essa legalidade, revigoramos os nossos músculos e ganhamos cores nas faces e parecemos ter vida eterna. E se nós não formos loucos a ponto de lhes fazermos o favor de nos deixarmos arrastar para a luta de rua, não lhes restará outra saída senão serem eles próprios a romper com esta legalidade tão fatal para eles”. Neste caso a violência seria defensiva, uma resposta operária e socialista à violação da legalidade por parte da burguesia.


 


Existia na época – fruto dessas estrondosas vitórias eleitorais – uma ilusão que nas próximas eleições o PSDA conseguiria a maioria dos votos e com isso poderia iniciar a transição socialista, sem maiores traumas. O próprio Engels, nesta mesma introdução, escreveu otimista: “O seu crescimento (do PSDA) dá-se tão espontaneamente, tão constantemente, tão irresistivelmente e, ao mesmo tempo, tão tranquilamente como um processo da natureza. Todas as intervenções do governo provaram nada conseguir contra ela. Já podemos contar com 2 ¼ milhões de eleitores. Se isso continuar assim conquistaremos até o fim do século a maior parte das camadas médias da sociedade (…) e nos transformaremos na força decisiva do país perante a qual todas as outras, quer queiram ou não, terão que se inclinar.” As coisas, no entanto, seriam muito mais complicadas do que pensavam os socialistas alemães naquele momento.


 


O Congresso de Erfurt (1891) aprovou um novo programa partidário. No processo de elaboração deste documento, Engels escreveu o artigo “Para a crítica do projeto de programa social-democrata”. A grande parte de suas propostas foram incorporadas ao texto final. O Partido, finalmente, passava a ter um programa efetivamente marxista.


 


O PSDA acabou se constituindo num modelo que seria seguido por uma grande parte das organizações políticas socialistas que foram sendo criadas na Europa e na América. Surgiram partidos deste tipo na França, Áustria, Espanha, Itália, EUA, Inglaterra e Rússia. A maioria nasceu sob o signo da teoria mais avançada produzida até então: o marxismo.


 


Alguns estudiosos, como Umberto Cerroni, chegaram mesmo a afirmar que o PSDA não foi apenas o primeiro partido socialista (marxista) de base nacional, mas o primeiro partido político moderno. Segundo eles, a burguesia, acossada pelo seu avanço, começou a copiar alguns aspectos de sua organização, fundando os seus próprios partidos eleitorais e de massas.


 


 


Engels e a 2ª Internacional


 


 


Desde o início da década de 1880 foi surgindo a necessidade de reunir estes novos partidos socialistas e agrupá-los numa organização de caráter internacional. Marx e Engels resistiram muito à ideia de reconstruir uma nova internacional nos moldes das antigas. Observou Annie Kriegel: “Entre 1876 e 1888, congressos e conferências internacionais se sucedem (1881 em Coire, Suíça, 1883 em Paris etc.). Os socialistas da Bélgica e Suíça eram os que animavam estas iniciativas com o objetivo de reconstruir a AIT. Porém seus esforços resultaram inúteis pela oposição da social-democracia alemã, especialmente de Marx e Engels, para os quais o problema não era voltar a um estado de coisas considerado superado, mas era criar partidos poderosos e coerentes nos três países decisivos da Europa: Inglaterra, Alemanha e França”.
Depois de vários contatos e reuniões, os socialistas franceses resolveram convocar para o ano de 1889 um novo congresso internacional. Este deveria se realizar, por proposta de Engels, no dia 14 de julho – quando se comemoraria o centenário da grande revolução francesa. 


 


O congresso contou com a participação de 300 delegados, representando 23 países. Engels resistira até o último momento à “nostalgia de se reconstituir a Internacional de uma ou outra forma”. Não foi por acaso que ali não se proclamou oficialmente a formação de nenhuma organização socialista internacional. Apenas no congresso de Bruxelas (1891) isso seria feito.


 


Os socialistas alemães relutaram muito em dar à Internacional uma estrutura muito centralizada. Como afirmou Kriegel, a II Internacional era uma “federação de partidos ou grupos nacionais autônomos, que assegurava as relações internacionais entre os movimentos dos diversos países na forma de congressos internacionais (…) Porém os congressos internacionais evitavam escrupulosamente intervir nos assuntos internos das seções nacionais que conservavam sua competência exclusiva em matéria de tática”. As resoluções congressuais tinham apenas um caráter indicativo. Apenas em 1900 foi constituído o Bureau Socialista Internacional – espécie de direção central – composto por dois delegados de cada país membro, com sede em Bruxelas.


 


Engels e seus camaradas consideraram, num primeiro momento, inconveniente excluir as minorias anarquistas da organização. Os marxistas esperavam ainda atrair setores vacilantes para posições mais consequentes, isolando os anarquistas. Como ocorreu na I Internacional, a tática era continuar aprovando resoluções que exigissem dos seus aderentes uma posição cada vez mais clara diante da luta política, inclusive parlamentar. 


 


Em Zurich (1893), por exemplo, foi aprovada uma moção que afirmava: “são admitidos no Congresso todos os sindicatos profissionais operários assim como aqueles partidos e associação socialistas que reconhecem a necessidade da organização operária e a ação política”. Apenas três anos depois, em Londres, os anarquistas foram expulsos das fileiras da II Internacional. Engels exclamou: “Com isso a velha internacional chegou ao seu fim e começamos uma nova internacional”.
Por outro lado, Engels estava muito preocupado com a democracia no interior dos novos partidos socialistas, considerava que esta era uma das condições para se manter a unidade de ação política. “O partido operário, afirmou ele, se baseia na crítica mais aguda da sociedade existente. A crítica é um elemento vital. Como pode, então, evitar ele mesmo as críticas, proibir a controvérsia no seu interior? É possível que demandemos mais liberdade de palavra somente para logo depois eliminá-la dentro de nossas próprias fileiras?”. Numa carta, se referindo ao PSDA, esclareceu: “O partido é tão grande que a absoluta liberdade interna de debate resulta numa necessidade (…) O maior partido do país não pode existir sem que todos os matizes de opinião dos que o integram se façam ouvir plenamente’”.


 


A 2ª Internacional não estabeleceu o princípio do partido único do proletariado em cada país. Por isso, reconhecia o direito de existência de vários partidos e mesmo de várias tendências num mesmo Partido. O que não impediu que ela advogasse a necessidade política de unificação das diversas organizações nacionais num único e poderoso partido socialista, pois facilitaria a luta dos operários pelo poder político.
Assim, no final do século XIX, o marxismo se consolidou como a principal força no interior do movimento operário e socialista europeu. A partir de então as grandes batalhas teóricas e políticas passariam a se dar no seu próprio interior.


 


Engels morreu em 1895 deixando de pé um poderoso movimento socialista internacional. Mas, logo após sua morte, a Internacional se viu mergulhada num grande debate em torno das ideias reformistas capitaneadas por Bernestein. Este privilegiava a luta parlamentar e sindical corporativa. Para ele seria através do voto que o trabalhador se elevaria “da condição social de proletário para àquela de cidadão”. As reformas políticas e sociais já seria a própria realização molecular da nova sociedade socialista. A corrente de Bernestein no interior do PSDA foi denominada “revisionista”.


 


Ela foi derrotada no Congresso da Social-Democracia alemã de 1903. Uma das resoluções aprovadas afirmava: “O Congresso condena energicamente as tendências revisionistas que visam mudar nossa tática vitoriosa baseada na luta de classes”. Embora batida nas plenárias, as ideias de Bernestein continuaram influenciando a social-democracia até tornar-se hegemônica nas décadas seguintes.


 


 


Conclusão


 


 


Como foi possível observar durante toda nossa exposição, Marx e Engels foram decididamente homens de Partido. Sempre o valorizaram como instrumento privilegiado na luta pela superação revolucionária do capitalismo e a conquista do socialismo. Mas, nunca se prenderam, dogmaticamente, a única forma de organização. Esta deveria servir, em última instância, à política transformadora e não o contrário. Cada vez que uma forma de organização era superada pela vida, eles não temiam em abandoná-la e procurar outros caminhos, mais adequados.


 


Sumariamente, podemos ver as formas adotadas pelos partidos operários ao longo do século 19: 1º) a pequena organização internacional de quadros comunistas (A Liga dos Comunistas: 1847-1852); 2º) A ampla federação internacional de organizações operárias (A Primeira Internacional: 1864-1872); 3º) Os partidos socialistas nacionais e de massas (ex: a Social-Democracia Alemã – 1870 à 1914); 4º) Federação de Partidos Socialistas – marxistas (2ª Internacional: 1889 – 1914). Além desses, tivemos os partidos de massas operários não-marxistas (cartistas e trabalhistas).


 


Marx e Engels tinham a consciência que as formas partidárias deveriam variar de país para país, tendo em vista o nível da luta de classes e as particularidades nacionais. Johnstone escreveu: “A Alemanha em 1860 e, em menor medida, a França em 1880 haviam alcançado a etapa em que os partidos se arraigavam na classe trabalhadora sobre a base de programas socialistas mais ou menos desenvolvidos e para Marx e Engels qualquer tentativa de fundir com outras organizações ou de ganhar mais votos em troca da adulteração ou da deterioração desse programa representava um ‘decisivo retrocesso’. Porém na Grã-Bretanha e Estados Unidos, onde os trabalhadores haviam estado politicamente ligados a partidos burgueses, qualquer movimento até um amplo partido unido e próprio dos trabalhadores, por mais retrógradas que fossem suas bases teóricas, era um avanço”.


 


É claro que, para eles, todos esses movimentos deveriam convergir para a constituição de um partido socialista de novo tipo, que tivesse os seguintes princípios norteadores: ser um partido da classe operária e, ao mesmo tempo, um partido de vanguarda desta classe; ser um partido para a ruptura com o capitalismo; ser um partido internacionalista e, por fim, ser um partido regido por normas centralistas que fossem profundamente democráticas. Esses princípios seriam desenvolvidos e adaptados por Lênin à situação aberta no início do século 20 com a consolidação do imperialismo e com os avanços das revoluções populares e socialistas. Isso, no entanto, veremos num dos próximos artigos.


 


 


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