Memórias de um Menino, ou Adeus Mr. Johnny

Às vezes me identifico as minhas próprias palavras escritas. Certa vez fiz e enviei uma bitrova ao compositor, radialista e declamador Muibo Cury:

“Fôia do Inhame”

Eu pudia vivê bem

Se eu fosse um home só

Se eu vivesse nos sertão

Onde canta o xororó

Lá as coisa são bunita

Num é perciso recrame:

-Insiste coisa mái bunita

Que orváio na fôia do inhame?

***

-“as gotas d´orváio nas fôia do inhame” representam para mim o supra-sumo da beleza; obra fechada com que a Natureza nos brinda todas as manhãs, especialmente as de outono.

As gotas de orvalho pousadas nas folhas do inhame, parecem pedras preciosas, ou semi; que detém a luz do sol incidente e a devolve com brilho e fulgor ampliados. Mais parecem pedras de águas marinhas líquidas, ou até mesmo brilhantes em estado gel. Por vezes tentei pegá-las com minhas mãos calejadas de menino caipira, mas elas, furtivas e apavoradas, fugiam por entre meus dedos de menino poeta e retornavam “briosas”, nas folhas do inhame.

• -o brilho das escamas de um dourado; peixe de rio de água doce que, quando ferrado no anzol, luta bravamente, corcoveando-se e saltando para muito acima do nível da água e, ato contínuo, mergulha até o fundo do leito do rio. 

Se for então num fim do dia, ao lusco-fusco do sol poente, enche-se de magia: magia dourada. Quando eu era menino, pensava que os lambaris “tambiú” dos córregos que banhavam a fazenda de café, quando crescessem, transformar-se-iam em dourados. Achava fabulosa esta metamorfose, mesmo sendo uma utopia criada por mim.

• -nos tempos de eu menino, achava que, quando velhos, os ratos se transformavam em morcegos. 

No dia em que me mostraram o feto que haviam tirado da barriga de um morcego fêmea, com as asinhas e tudo, fiquei pasmo.

• -durante os primeiros treze anos de minha vida, ganhei presentes de natal, presentes estes que o Papai Noel deixava sobre o meu sapato, engraxado e lustrado de véspera e deixado sob o presépio que a dona Guidinha, minha mãe, montava todos os anos até então.

A partir dessa idade, vim morar em São Paulo, sem a família; ocorreu que o bom velhinho nunca mais me encontrou. Por algum tempo acreditei que e o motivo que impedia que ele pudesse me encontrar, era devido ao exagerado número de crianças da grande cidade. “Chose de lês enfant”.

• -quando menino, ao tempo que vivia ainda na fazenda de café, costumava alongar o olhar até a linha do horizonte para compor uma tese própria: eu acreditava que o céu estava apoiado no espigão que cercava o Vale do Rio do Pântano, onde se localizava a fazenda de café na qual vivia.

Acreditava ainda que, na primeira vez que eu subisse aqueles espigões, eu tocaria o céu com minhas pequeninas mãos de menino caipira. Pois bem: a primeira vez que, conscientemente, subi o espigão junto com a família, causou-me espanto o fato de que, por mais que nos elevássemos, o céu parecia também elevar-se. Como corolário da tese de eu menino, concluí que haveria de ter espigões ainda mais altos que aqueles do Vale do Rio do Pântano e, decerto, o céu estaria apoiado neles. Confesso que pela vida afora, tentei colocar minhas mãos de jovem, de adulto e de velho caipira, no céu. Devo confessar ainda ao leitor: jamais consegui. Hoje já estou descendo a encosta do último espigão da vida. Percebo agora, caros leitores, que o tempo escoa por entre os dedos de minhas mãos de sexagenário. Percebo que, quanto mais passos dou rumo à terra dos justos; mais se alonga a distância entre eu e o céu. Minha hipótese de menino caipira estava errada. Só agora percebo isso.

• -em toda minha vida, só tive dois cães: quando menino, o Viajante; quando adulto, o Johny Reevers. 

O primeiro, ficou na fazenda São José, quando vim morar, sozinho, em São Paulo. Do alto dos meus treze anos de idade, quantas noites chorei de saudades dos pais, dos irmãos e do Viajante. Ele era um “purus vira-latas”, de pelos curtos e negros como o azeviche. Ele adorava correr pelos trilhos (caminhos secundários), fora das rotas de estradas de servidão e dos carreadores da fazenda de café, onde nós vivíamos. Ele era quase que necessariamente um cão de companhia; não era um cão de guarda, na verdadeira acepção da palavra, mas era aquele que mais barulho fazia na presença de algo que pudesse intimidá-lo; não era um cão de caça, mas tinha uma qualidade incomum de “caçar frangos”, quando saíamos a caçar frango para a refeição do dia; frangos estes criados livres e que beiravam o estado selvagem. Sem o Viajante, teríamos comido muito menos frangos lá na fazenda; isso implica em dizer que o frango caipira que abatíamos para consumo era a maior fonte de proteínas de que dispúnhamos por aquelas bandas. Uma vez que nós já houvéssemos escolhido qual era o frango daquele dia e o indicávamos ao Viajante, incitando-o, ele se dedicava a correr atrás daquele frango, mesmo que voasse, que pousasse em árvore ou se escondesse, o viajante não desistia nunca, até que a ave se cansasse de correr; o viajante o alcançava e punha as duas patas dianteiras sobre a ave e só as retirava após chegarmos ao local, solicitando que ele largasse o frango. Às vezes, ele me acompanhava até o córrego (Rio do Pântano) e ficava aguardando todo o tempo que brincávamos, sentado calmamente no barranco do rio; algumas vezes nós levávamos toras de bananeira, para brincar de jangada no rio: nós lançávamos as toras no rio num ponto a montante do local desejado; como as toras de bananeira bóiam, nós nos debruçávamos sobre elas, que nos levavam devido à corrente, até um ponto à jusante. Por vezes isso representava 50 metros, às vezes, mais; ato contínuo, colocávamos as toras nas costas e seguíamos correndo por fora d ´água, entre os barrancos, com o fito de que a parte mais gostosa do brinquedo, a cavalgada nas toras, se repetisse. O Viajante latia feliz, correndo atrás, com aquele jeito feliz que só os cães de menino caipira sabem latir.

No dia em que saí de casa, não encontrei o viajante, para despedir-me dele. Nunca mais o vi. Oito meses depois que cheguei em São Paulo, minha família chegou de mudança. Perguntei pelo Viajante: ele havia morrido um mês depois que saí da fazenda. Durante muito tempo me senti culpado pela morte dele, provavelmente por saudade. Minha mãe certa vez me confidenciou de que o Viajante havia contraído uma doença esquisita, após a minha partida e não queria comer; de jeito nenhum. Meu coração caipira, feito de vidro, quebrou-se ali. Nunca mais haveria de ter um cão.

• Mas, aos vinte e quatro anos de idade, eu órfão de pai e com os irmãos mais velhos todos casados, morava com minha família, que a esta altura se compunha de minha mãe, duas irmãs e o irmão caçula. Com o casamento de uma delas (se mudou para o estado do Pará), a outra irmã fazia faculdade à noite e reclamava da distância de Taboão da Serra até a avenida Paulista, num trajeto de hora e meia de ônibus. Ela decidiu alugar um apartamento em Pinheiros (só quinze minutos de ônibus); minha mãe e irmão caçula aderiram à idéia. Fiquei só. Um amigo de trabalho tinha uma cadela linda. Certa feita, a cadela ficou prenha e meu amigo me prometeu, sem que eu pedisse, um filhote para mim. Certo dia ele me falou que a cadela havia dado cria de oito filhotes, sendo dois machos e um era pra mim. Exigiu que eu fosse à casa dele escolher. Quando vi os filhotes, lembrei-me do Viajante e me deu um aperto no coração: será que vou sofrer tudo de novo? Acostumado ao tempo da fazenda, peguei um e outro pela pele do torso, atrás da cabeça dos filhotes: aquele que permanecesse quieto era o melhor! O primeiro, branquinho, gemeu, reclamou, chorou e latiu fraquinho; o segundo malhado de amarelo e branco, sequer deu um pio, decerto seria um cão de fibra. Naquele momento estava tocando no rádio da casa do e meu amigo uma música do Johnny Rivers, “Dou you want to dance?”. Eu o coloquei junto ao meu peito, o filhote fechou os olhos e dormiu: – apaixonei-me por ele.

o O Johnny foi meu companheiro por seis anos, enquanto solteiro e mais dois anos após casado. Pois não é que depois que me casei ele ficou muito mais companheiro da minha mulher do que de mim! Por exemplo: eu quando queria dar um banho nele, ele resmungava muito, se debatia tentava sair de dentro do recipiente (a maioria das vezes era um velho tanque de cimento). Com a minha esposa, ele ficava calmamente até que ela o enxaguasse safado do Johnny. Ele nem sequer se lembrava de quando só vivíamos eu e ele. Na falta de interlocutor, por morar sozinho, falava com ele o tempo todo: fazia comentários das notícias do jornal, da TV, do rádio, falava de futebol e de cinema. Talvez o fato dele ter nome inglês o deixava fleugmático: entendi finalmente porque o Johny se aborrecia comigo. O Johnny, meus amigos, nunca falou Português. Que pena! O Johnny numa certa semana santa desapareceu. Nunca mais voltou. Passei muitos sábados procurando seu cadáver na Rodovia Régis Bittencourt, no depósito de cães da Prefeitura de São Paulo (carrocinha). Nunca o encontramos!

Assim são os entes queridos que nos querem bem: quando estão na pior situação, desaparecem, para não nos deixar preocupados. Mas, minha lembrança lembra dele; trinta anos depois de seu desaparecimento.

Adeus Mr. Johnny! I really loved you!

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