“Meu Homem”, com outro olhar
Cineasta japonês Kazuyoshi Kumakiri discute a moral do terceiro milênio em filme sobre a relação amorosa de pré-adolescente com seu pai adotivo
Publicado 25/09/2014 16:12
..e não bastasse sua obsessão, Hana (Fumi Nikaido) atrai para si desconfianças mal configuradas. Mostra-se capaz de, com frieza, afastar o obstáculo que ameaça sua relação com Jungo Kusino (Tadanabo Asano). Desde “Cega Obsessão” (1969) não se via uma paixão tornar-se tão dilacerante. Mas, diferente de seu compatriota Yasuzo Masumura, que prima pelo realismo cru, o cineasta japonês Kazuyoshi Kumakiri prefere contextualizar este “Meu Homem” em meio à ferocidade da natureza.
Seu filme tem a aridez e a crueza da paisagem gelada, pós-destruição de Fukushima por tsunami, em 2011. Milhares de vítimas perambulam desnorteadas entre os escombros, dentre elas a pequena Hana. E em meio ao caos, Jungo, de 26 anos, talvez por consanguinidade termina por adotá-la. Mas Kumakiri e seu roteirista Takashi Ujita tornam a relação ambígua, a tal ponto que o espectador não centra nela suas reações. Prefere vê-la como criança protegida pelo pai adotivo. Até…
Eles mantém a dualidade natureza/ser humano, com agitadas ondas e montes de neve a pontuar a narrativa. Existe a Hana em crescimento, com seus colegas de escola, e a vida solitária de pescador de Jungo, em alto mar. Mas também a relação deles no interior da casa, dominada por sombras, e a câmera de Kumakiri à distância, só mostrando contornos de corpos, quase sem diálogos, nem mútuos questionamentos.
Oshio vê Hana como indefesa
Estes sobrevêm nas vigilâncias do idoso Oshio, que delimita o espaço entre a permissividade e o inaceitável. Suas razões refletem a ideia comum na cidadezinha às voltas com a penosa reconstrução pós-tsunami. E se sente com autoridade para protegê-la do suposto abuso sexual de Jungo. Mas as atitudes dele terminam por reforçar superadas visões de “incapacidade” da mulher para escapar às dubiedades do sedutor/predador por si mesma. Entretanto, Hana não é ingênua nem inocente.
Isto permite a Kumakiri trazer à tona traços sombrios da adolescente, a exemplo da “perversidade” da mulher-fatal, embora o filme não seja um noir. É um drama sobre a derrubada das cinzentas paredes erguidas pelo conservadorismo ainda imperante, reflexo dos recalques submersos do universo burguês/cristão. Diferente da “Lolita” (1955), de Vladmir Nabokov (1899/1977), manipuladora, porém sem a malignidade de Hana, ou a sedutora Lolita (1962), de Stanley Kubrick (1928/1999), no filme homônimo, sem a entrega, a malícia e a permissividade de Hana.
Ambos, romance e filme, foram superados pela liberação feminina, o movimento hippie, a pílula e a cultura pop na década de 60, embora os antecipasse. Perto de Hana, Lolita é ingênua. Mesmo na longa sequência do encontro dela com Oshio em meio à densa neve, ela não perde o equilíbrio e a malignidade. Vai se modificando, fria, enquanto entram mar adentro, sobre grossos blocos de gelo. Estes vão se separando, ele entrando mar adentro, empurrado apenas pelo frio olhar dela.
Hana se vale da perversidade
Kumakiri joga nesta sequência com espaço, tempo, estado psicológico e perversidade. Não a perversidade do assassino, a conotação aqui é de quem se livra do olhar moralista que o desestabiliza. Ela apenas o espreita, a natureza em sua grandiosidade faz o resto. A montagem de Zenzuki Hori é tão precisa e dialética quanto as dos suspenses do católico Alfred Hitchcock (1899/1980). Vide “Psicose” (1962). E Kumakiri dispensa flashbacks que urdiriam uma falsa crise de consciência de Hana.
Esta sua atitude reforça o caráter amoral deste “Meu Homem”. Os personagens, Hana e Jungo, criam suas próprias defesas. Isto num país xintoísta (982 AC), cujas reverencias se concentram nas forças da natureza. Daí talvez a violência das ondas e dos blocos de gelo, na metafórica sequência de Oshio debatendo-se sob os olhares de Hana. Nenhuma cena, porém, faz referência explícita à adoração ou tem citação religiosa – Kumakiri cuida só dos vivos, não do além.
Portanto, ele usa a natureza como reflexo do comportamento de Hana e Jungo. Eles evoluem para outro tipo de relação, incluindo parceiros para ela, ainda que na presença e avaliação dele. Maneira de Kumakiri romper também com o tratamento dado às mulheres que fogem ao padrão moralista/burguês, sendo punidas por afrontá-lo. Hana, ao amadurecer, não tem marcas de ter cometido incesto ou ser uma executora.
Mesmo Jungo, personagem dissimulado, de poucas palavras, não tem o estereótipo do pescador robusto, rude, ainda que às vezes tenha ciúme dela, aja com violência e ache seus namorados inadequados. Ela é a um só tempo filha e amante, sem que referência faça ou tenha dores de consciência por isto. É o contínuo dado por Kumakiri à história que elimina os supérfluos da narrativa, para deixar o espectador livre de julgamentos que ao invés de elevar sua consciência a deforma.
"Meu Homem”. (Watashi No Otoko). Drama. Japão. 2014. 129 minutos. Fotografia: Ryuto Kondo. Montagem: Zenzuke Hori. Roteiro: Takashi Ujita. Direção: Kazuyoshi Kumakiri. Elenco: Tadanobu Asano, Fumi Nikaido, Moro Morooka.
(*) Melhor filme do Festival de Moscou 2014.
(**) Exibido na Mostra de Cinema de Belo Horizonte – Indie 14 e no Indie São Paulo (17/09 a 1°/10/2014), no CineSesc.