“Meu irmão quer se matar”: O universo mórbido dos inadaptados

Filme da diretora dinamarquesa, Lone Scherfig, mostra as contradições de uma sociedade em que os inadaptados fazem às vezes dos marginalizados.

Quando o letreiro final de “Meu Irmão quer se matar”, da diretora dinamarquesa Lone Scherfig, termina muitas pessoas continuam sentadas. Fato raro nos filmes de hoje. Muitas vezes os créditos começam, elas já estão de costas para a tela. Nada demais: é o momento de se deixar o cinema e ir para casa ou para o bar tecer vagos comentários sobre o que se acaba de ver. Mas, desta vez, elas permanecem ali como se a refletir sobre o que acabam de assistir. Há uma forte ligação entre elas e os personagens e sair depressa é como partir sem se despedir ou reter as derradeiras imagens de quem acabamos de receber uma boa lição de vida. Pois, durante quase duas horas, compartilharam sentimentos tão íntimos que é como se alguém querido tivesse partido. E os personagens; salvo por Wilbour (Jamie Sivens), são dotados de uma profunda compulsão pela vida, mas à maneira deles. Daí, o inusitado de as pessoas ainda permanecerem após as imagens desaparecerem.



Elas são mergulhadas desde o início no universo de Wilbour, um suicida contumaz, que nunca alcança sucesso em suas tentativas. Com seu jeito de garotão desligado, o andar pesado, o cabelo espetado para cima, ele circula por Copenhague, à procura de uma situação que o permita por fim à sua vida. Seu contraponto é Harbour (Adrian Rawlings), seu irmão mais velho, administrador da livraria herdada do pai. Ele circula pelo espaço povoado de livros, como se percorresse labirintos cheios de teses, histórias e personagens. O negócio, porém, não é explorado a contento e ele vive de pequenas compras e vendas de obras usadas. Representa, tanto ele quanto o irmão, o lugar comum dos pais que legam aos filhos seus negócios e eles, por completa incompatibilidade, não conseguem prosperar.


 



Filme não aborrece com lições intelectuais



 


Além disso, Wilbour e Harbour não têm tendências intelectuais e não entopem os espectadores com lições de vida, e pujança intelectual. Ambos vegetam enquanto o tempo passa, um tenta se matar e o outro se esforça para salvá-lo. Às vezes essas tentativas são cômicas, dada a falta de criatividade de Wilbour. Numa delas, ele busca se sufocar pelo gás de cozinha, noutra entra a toda numa enorme poça d´água, ansioso por ela ser funda, e ela mal dá em suas pernas. Não é diferente a vida da faxineira Alice (Shirley Henderson), mãe de pré-adolescente Mary (Lisa McKinlay), que sempre chega atrasada no hospital onde trabalha e não distingue uma poça de sangue de um monte de poeira. Estamos, portanto, no círculo dos deslocados, dos “inabilitados para a vida”, imposta pelo sistema que exige pessoas articuladas, concentradas e com pleno domínio de suas ações.


 



Eles são o centro de “Meu Irmão quer se matar”, mas não estão sós em sua inadaptação ao sistema, principalmente de um país escandinavo, onde os deslocamentos sociais são mínimos. Junto deles estão o médico Horst (Mads Mikkelsen), a enfermeira Moira (Júlia Davis) e a faxineira Sophie (Susan Vidlen), que não conseguem se distanciar dos pacientes ou não deixar a nu suas vidas solitárias e sem sentido. São personagens cujas vidas não incentivam a visão de que tenham saída ou mesmo consigam sobreviver sem provocar danos a si ou aos que deles estão próximos. Scherfig, no entanto, consegue fazer de “Meu Irmão quer se matar” um filme leve e cheio de esperança. É como se dissesse; eles são assim, como você que está sentado na poltrona deste cinema, mas podem mudar, ainda que às custas dos sofrimentos e das perdas que a vida lhes impõe.


 



Não possui otimismo bobo e amargo



 


Não é um filme de otimismo bobo, daqueles que terminam por deixar um gosto amargo na boca, porém, carregado de esperança e ditado pelos encontros e desencontros impostos pelo acaso. Começa pelas situações criadas pelo roteiro de Scherfig e Anders Thomas Jensen, que centra o filme em personagens, não numa história. Se torcemos para  Wilbour sobreviver é porque, à maneira das crianças da creche onde ele trabalha, o aceitamos como ele é; se gostamos de Harbour, é por ele ser boa praça e querermos que ele tenha sucesso em sua dupla empreitada: de retomar a livraria, de salvar Wilbour e de encontrar sua amada. O equilíbrio entre eles é ditado por Alice, a pequenina Alice, esquisita, jeito de criança, que, uma vez demitida, tenta aceitar a sugestão da filha e sai em busca de seu par.


 



Cada personagem em “Meu Irmão quer se matar” fornece uma razão para os espectadores o aceitar. São por demais carentes, salvo por Mary, que procura não choramingar, mostrar-se criança ou manipular os adultos. Por isto, é simpática e não um empecilho ao que virá no desenrolar do filme, quando Scherfig quase cai no lugar comum dos triângulos amorosos. Os personagens vão caindo um nos braços dos outros de forma natural, pois precisam um dos outros. Wilbour precisa de Alice, que precisa de Harbour, mas se sente atraída por Harbour, enquanto Moira aprecia estar com Wilbour, mas não atrai a ira de Alice. Eles não são, assim, coitadinhos, que dão pena aos espectadores, provocando empatia entre ambos. Numa das cenas que ilustram o deslocamento das relações entre eles, Sophie tenta lamber (literalmente) a orelha de Wilbour e ele retruca: quem mandou você lamber minha orelha? É engraçado, mas tétrico.


 



Relações com Wilbour não podem ser normais


 



As relações com Wilbour não podem ser normais, comuns, precisam de certo clima, de sua aceitação para haver a troca. Isso quem consegue é Moira. Tampouco a relação de Alice com Harbour, por sua normalidade, transcorre sem percalços. Ele a atira, cada vez mais, nos braços do suicida Wilbour. O espaço onde estas relações se dão é na própria livraria, a North Books, lugar de troca de mercadorias já usadas, de parceiro e de renovação de esperança. A bagunça das prateleiras reflete o conflito interior de Wilbour, que precisa se encontrar, de Harbour, que deve aceitar a doença que o acomete, de Alice que tem de optar por um dos irmãos, mas quer a ambos. Os livros estão ali misturados, sem divisões entre autores, temas e especialidades. É preciso por tudo em seu devido lugar, assim como dar sentido à vida, mesmo que às custas da morte de um deles, não por iniciativa própria, mas por imperativo das circunstâncias, do caminho que cada um deles escolheu.


 



A forma que Scherfig encontra para encaixar as peças, sem que os espectadores percebam, é elogiável. Mesmo com um tema pesado igual a esse, cujas nuances são o fracasso pessoal, a falta de perspectiva futura (casos das faxineiras Alice e Sophie e da enfermeira Moira), a inadaptabilidade social e o espectro da morte, ela engendrou uma obra cheia de possibilidades e saídas e, por que não, de esperança. Muito disso é devido aos atores, o jeito como conduzem seus personagens, sem arroubos sentimentais, em pequenos detalhes, e à sua direção segura. O espaço em que se deslocam é o do hospital, dos grupos de terapia para suicidas, da livraria de livros usados e a rua sombria, onde, de repente, pode despontar um suicida. Este é, aliás, um traço característico dos países escandinavos, líderes em altos índices de suicídios. Poderia ser doentio, fazendo os espectadores deixarem o cinema tendendo à depressão.


 



Livraria é símbolo do mundo interior



 


Nada disso ocorre. A livraria vai, aos poucos mudando, à medida que Harbour decai e Wilbour se encontra. E vai sendo arrumada, estruturada, até o desfecho final. E de uma forma que as pessoas aceitam, ficam pensando se para um se encontrar, o outro precisa morrer e deixar um legado de esperança. Parece metafísico, uma busca da felicidade, caminho que Scherfig escapa, dialeticamente – trata-se de uma construção a partir da realidade enfrentada pelos amantes Wilbour/Alice, com o incentivo de Harbour. Nada condenável. Sem artifícios, Scherfig faz uma clara opção pelos inadaptados, não os marginalizados, porquanto, salvo por Alice, desempregada, estão todos integrados à estrutura econômico-social dinamarquesa. No entanto, é Alice, a faxineira, mulher, que irá conduzir a estruturação da livraria, portanto o universo de produção de conhecimento. Sutil, sem estardalhaço, mas com tomada de posição de Scherfig pelos inadaptados.


 



Mesmo com esta tomada de posição, “Meu Irmão quer se matar”, filme dinamarquês, como já observado, não segue a estética do “Manifesto Dogma”, liderado pelo genial cineasta Lars von Trier (“Ondas do Destino”). Scherfig usa a câmera com maestria, colocando-a a distância, não a aproximando demais do personagem. Nos raros momentos que o faz é apenas para destacar uma impressão, marcar um fato. A fotografia de Jorgen Johansson ainda que sombria, para servir ao tema, não torna o clima opressivo, e a bela música de Joachin Holbeck não acentua por demais os estados de espírito ou marca em demasia as passagens mais dramáticas do filme. O único senão é a opção da produção, ou mesmo de Scherfig, não se sabe, de ganhar o mercado internacional, exibindo cópias em inglês. Tira a identidade dos diálogos e a maior compreensão da interpretação dos atores em sua língua original. É um detalhe importante que, porém, não impede, devido à forma com que Scherfig conduz sua obra, que o público chegue ao final tomado pelas contradições dos personagens, suas buscas e a maneira como, enfim, a vida os une, ainda que às custas da penalização de um deles.


 


 


“Meu Irmão quer se matar”(Wilbur wants to kill hinself). Dinamarca, 2002, 111 minutos, 14 anos. Direção: Lone Scherfig. Elenco:  Jimie Sives, Adrian Rawlins, Shirley Henderson, Lisa McKinlay.

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