Missão Impossível 3: “Fronteiras violadas”

Filme do americano J.J. Abrams mostra que as fronteiras entre países foram abolidas pelos EUA
             

O agente Ethan Hunt é daqueles espiões herdados da Guerra Fria. Tem escrúpulos, sentimentos, ética, defende interesses coletivos, enquanto ao seu redor a podridão impera. Parece perdido, ingênuo, num mundo globalizado, tomado pela multiplicidade de interesses e poder unilateral dos EUA. Em “Missão Impossível 3”, baseado na série homônima de TV, grande sucesso na década de 60, estes valores permanecem. Ethan Hunt está interessado tanto em defender seu país da ameaça do mega-traficante do mercado negro, quanto de salvar sua amada. Ambos entrechos fazem o filme andar, num clima de “filme noir”, que mais parece um pesadelo. Visto desta forma, trata-se de um filme comum, daqueles que se assiste e depois se lembra apenas das peripécias do mocinho.
            
“Missão Impossível 3”, de J.J Abrams, diretor da premiada série de tv “Lost”, se presta, no entanto, a outro tipo de leitura.  Não é apenas um filme de espionagem/aventura que se possa esquecer. Precisa ser contextualizado, mesmo que seja só para destrinchar seus meandros. Nos antigos filmes de espionagem os heróis se locomoviam de num país ao outro, tendo as fronteiras como barreiras. Em “O Espião que Saiu do Frio”, de Martin Ritt, baseado no livro homônimo de John Le Carré, as fronteiras entre dois países (Alemanhas Ocidental e Oriental) era um empecilho para a concretização dos sonhos de dois dos personagens. Teriam que escolher. Ultrapassar a fronteira representava grande risco de morte. Ela seria, na verdade, uma linha inviolável, de soberania de um país. Desrespeitá-la feria, como ainda o é, os direitos e a integridade territorial de outra nação.
               
Idéia é de que as fronteiras foram abolidas
             
No contexto da Guerra Fria seria impossível, mesmo no cinema, não considerar este ponto, por demais importante. Em “Missão Impossível 3”, isto não mais representa um risco, as fronteiras, pelo que nos passam os roteiristas Alex Kurtzman, Roberto Orci e J.J Abrams foram abolidas. Visão condizente com os tempos da unipolaridade, da globalização, em que, teoricamente, as barreiras foram abolidas, pelo menos para mercadorias, capitais especulativos e, principalmente, para os interesses imperiais dos EUA. O agente da IMF (Agência Federal Missão Impossível), Ethan Hunt (Tom Cruise) locomove-se por países diferentes sem nenhuma preocupação com a soberania de outro estado, nem tampouco o roteiro se preocupa com isto. Passa-se a idéia de que é possível transitar por nações diferentes sem violar regras internacionais, desde que se trate dos interesses maiores ou menores dos EUA. Desta forma, a checagem de passaporte no aeroporto vira tão só uma burocrática formalidade dramatúrgica.
               
Numa das espetaculares seqüências do filme, Ethan Hunt e seus parceiros Luther Stichell (Ving Rhames), Declan (Jonathan Rhys-Meyers) e Zhen (Maggier Q.) deslocam-se para o Vaticano, onde seqüestram o mega-traficante Owen Davian (Philip Seymour Hoffman). Noutra, também de tirar o fôlego, eles agem em plena Xangai, China, com perseguições de carros, explosões e execuções. O território chinês surge, assim, como mero espaço de ação do serviço secreto norte-americano. Dá a idéia de que assim é na história real, no cotidiano, de dois países que lutam por espaço de poder político-econômico social e, porque não, ideológico, no planeta. Na verdade, as duas seqüências indicam duas coisas: a primeira é que os EUA se sentem à vontade em transitar pelos países sem lhes respeitar as fronteiras (vide o transporte de prisioneiros afegãos e iraquianos através do espaço aéreo europeu) e a segunda é que a China é, hoje, um dos alvos preferenciais dos filmes hollywoodianos. É o vilão atual, junto com os países árabes, ocupando o espaço que, na Guerra Fria, foi da União Soviética.
             
Vilão e herói transitam no espaço do mal absoluto
             
A suposta ética de Ethan Hunt atende mais ao estereótipo do herói, que não deve ter mácula, do que por sua ação. Ele transita no espaço do mal absoluto, em que a ação é radicalizada, para exterminar o vilão. Em “Missão Impossível 3”, ele é retirado de sua aposentadoria, velho clichê deste tipo de filme, para  resgatar uma de suas pupilas, Lindsey (Keri Russel), em posse de Owen Davian, em pleno Vaticano. Locomove-se, junto com seus parceiros, no estreito espaço concedido pelo vilão. Fracassa, pois este, a exemplo do que ocorre hoje na realidade, tem acesso à alta tecnologia e a usa, fazendo-o sucumbir. Sua queda, longe de representar um fracasso, humaniza-o, torna-o mais próximo do público. Não é o herói absoluto, mas abre caminho para seu triunfo. De novo, fica diante de uma opção pessoal, o perigo que corre sua amada Julia (Michelle Monaghan), e agora não pode fracassar.
             
A humanização do herói e a possibilidade de ele fracassar são uma boa proposta, desde que consignada nos limites da dramaturgia. Os roteiristas de “Missão Impossível 3” conseguem fazê-lo, transferindo seus poderes para Julia. É plausível no decorrer da ação, quando ela se mostra apta a transitar no espaço do mal absoluto, em que liquidar o inimigo é o menor dos males – mas é falho na medida em que o filme se calcava em seu decorrer na veracidade. Nenhum preparo há para Júlia ao longo do filme para ela se revelar exímia atiradora e capaz de superar-se no climax do filme. Mas se trata de ficção, em que a tecnologia brilha. Os vôos de Ethan Hunt dos prédios são espetaculares, enfatizados pela montagem ágil de Maryann Brandon e Mary Jo Marhey, e pelos efeitos especiais da Industrial Light & Magic, de George Lucas,  e da Lola Visual Effets. Estão a serviço da ação, para enfatizá-la, não do espetacular pelo espetacular.
                
Todos são suspeitos, inclusive as agências
               
Efeitos, montagem, fotografia (Daniel Mendel) e trilha sonora (Michael Giacchino) contribuem para o clima de pesadelo que predomina da seqüência inicial à final. Sombras, iluminação que acentua parte do cenário, personagens que não emergem em sua integridade, reforçam a sensação de que estamos no meio da catástrofe. O vilão Davian, visto como único no início, à medida que a história avança, mostra-se apenas peça das maquinações de um cérebro poderoso que se revela no final. Novamente, como se a não destoar da visão atual de que as próprias agências de espionagem americanas estão infiltradas de inimigos, contribuindo para a paranóia que tomou conta dos EUA, Ethan Hunt não sabe em quem confiar. O perigo está mais dentro da IMF, do que nos supostos inimigos externos. Não deve ser sem razão que a trinca de roteiristas o matizou assim. Mesmo que depois, Ethan venha a receber, de dentro, uma reverência por seu trabalho.
            
“Missão Impossível 3”, diferente dos dois anteriores, não se prende a uma história, com vilões bem delineados. Centra-se na figura do agente Ethan Hunt, humanizando-o, ao mesmo tempo em que o mostra como alguém capaz de operar sacrifícios para resgatar a quem ama ou faz parte de seu círculo profissional. Não tem a beleza das cenas do primeiro da série, dirigido por Brian De Palma, nem a estrutura milimétrica do segundo, dirigido pelo chinês John Woo; é um filme de ação puramente. Aparentemente gira em torno da busca do “pé de coelho”, espécie de udunit (uma peça que nenhum significado tem, mas que faz a ação ir em frente. Alfred Hitchcock usou-o na maioria de seus filmes), que se espera, no final, seja desvendado. Surge como os mais diversos formatos, faz muitas vítimas, viaja de um lado ao outro do planeta, e ninguém sabe ao certo o que é. Lembra a escultura de “Falcão Maltês”, que todos queriam, mas ninguém consegue tê-la.
          
Não fosse as implicações já levantadas, “Missão Impossível 3” poderia passar batido. É mais um filme para o protagonismo de seu astro, Tom Cruise, também seu produtor, junto com sua sócia Paula Wagner. Com ação continua, seqüências espetaculares, ele diverte, mas nenhum filme, por mais inocente que tente parecer, deixa de discutir temas candentes da atualidade. E os filmes de aventuras, com suas histórias, às vezes intricadas, se prestam a mensagens cifradas, sem que com isto não se esteja vendo significado no que não existe. Nada melhor do que as produções baratas, para mostrar vilões nas esferas das finanças e do poder. Não poderia ser diferente com uma produção destinada ao grande público, mais interessado em se divertir, mas que acaba torcendo para que o herói atravesse as fronteiras para realizar ações ilegais, sem se dar conta disso.
           
À dramaturgia, porém, tudo é permitido: até tropeços iguais aos apontados. Ruim é acreditar que isto possa ser o usual. Coisa normal nos tempos globalizados.
Missão Impossível 3 (Mission Impossible 3). EUA, 2006. Duração: 126 minutos. Direção: J.J. Abrams. Elenco: Tom Cruise, Ving Rhames, Philip Seymour Hoffman, Michelle Monaghan, Keri Russel, Lawrence Fishburne.              

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