Morto Não fala: Terror desvenda o IML

O horror brota neste filme do cineasta paulista Dennison Ramalho como reflexo da realidade sócio-econômica do Brasil
 

 Muitas vezes os filmes de terror tocam de tal forma o espectador que ele sente emergir de seu subconsciente todo o medo por ele reprimido. Não só o temor de ser assassinado ou de ver-se envolvido em situações fora de seu controle. Não se trata de fantasmas ou de crendices, mas de ser colocado em ambientes sobre os quais pouco ou nada sabe. É o caso de ser estirado na mesa de autopsia do Instituo Médico Legal (IML).

Esta é a magia do cinema brotada das mentes dos roteiristas e diretores fuja criatividade está justamente em prendê-lo no sofá durante cerca de duas horas no escuro. Há, contudo, algo a mais nas imagens encadeadas de forma a contar uma história que não o deixe refletir sobre a veracidade do que se desenrola na imensa tela à sua frente. Tudo depende do jogo no qual o cineasta o faz crer no que vê e ele se deixa levar até o desfecho. Afinal, nada daquilo está vinculado à realidade em que vive.

Os aficionados a estes centenários parâmetros, para não dizer clichês, entram num frenesi de situações neste “Morto Não Fala” das quais não se livram nem depois de deixar o cinema. O diretor paulista Dennison Ramalho e sua co-roteirista Claudia Jouvin as estruturam de tal modo que ele vê brotar na tela não a ficção, mas a realidade com a qual convive em sua dia-a-dia. Torna-se, assim, a extensão imagética da corrupção, dos crimes sem punição, numa sociedade excludente, racista e desigual.

Horror não brota dos mortos

Desta forma, o horror não brota dos mortos ainda a amedrontar os vivos na alta madrugada. Nem são instigados pelas mandingas das encruzilhadas ou entre os vivos tão cheios de culpas que acabam por entranhar-se em seu subconsciente. Mas, sobretudo, dos confrontos armados entre gangs nas lutas pela manutenção de seus territórios e o controle dos pontos de vendas drogas e armas nas periferias e nos aglomerados. O resultado é o temor da bala perdida ou ficar em meio a tiroteios,

É neste contexto que Ramalho inclui este “Morto não Fala”. Sua narrativa se desenrola na Zona Leste de São Paulo, tendo como tema central a relação dos vivos com os mortos, a partir das autopsias dos que chegam ao IML. Daí emerge o terror, pois o necrotomista Stênio (Daniel de Oliveira) não só prepara o morto para ele ser posto no gigantesco frízer, como troca com ele informações sobre o que o fez ter morte violenta. “Matei meu pai porque ele batia em minha mãe”, lhe revela seu conhecido estirado na gélida lápide à espera da autopsia.

A sucessão de cadáveres a entrar e passar pelo mesmo processo deixa o espectador diante do que pode ser o seu fim. É a realidade a desmontar sua fantasia de eternidade. Espécie de choque lhe aplicado pela dupla Ramalho/Jouvin, porquanto nada na encenação entre os atores foge às pesquisas e os estágios feitos por Oliveira antes das filmagens no próprio IML. Mas também dá conta das carências financeiras do próprio instituto. Falta-lhe infraestrutura, equipamentos e profissionais suficientes para dá conta da pesada carga de trabalho.

Ramalho encena cadáver na gelada mesa de mármore

Numa bem construída sequência, Ramalho encena a permanência do cadáver por horas na gelada mesa de mármore. Falta espaço para ele no frízer e o necrotomista ainda não chegou. O que sobrecarrega ainda mais o atarefado Stênio. É a inclusão de sequências de documentário-sócio-político num filme de terror, matizado pela realidade sócio-política. Isto angustia e choca ainda mais o espectador, pois fica espremido entre a ficção e a realidade encenada com ampliado realismo.

Ramalho atinou para as repetidas imagens veiculadas pelos noticiários de TV anualmente. Na sequência de multidão reunida numa praça do bairro classe média baixa, ele dá ideia do que o IML enfrenta uma situação limite. Um dos moradores ao ver a sucessão de mortos ser retirado de veículos diz aos amigos que são vítimas das chuvas no morro. Percebe-se a diversidade de realismo encenada por Ramalho, dando a seu filme mais do o horror de um país à deriva em razão da opção pelo capital.

Não pense que a dupla Ramalho/Jouvin fugiu de sua linha dramática, pois ela inclui o coletivo, o individual, o social e o político sem negligenciar as tramas paralelas. Todas giram em torno do tema central, pois os personagens e as subtramas a ele estão vinculados. A sequência dos deserdados mortos pela chuva reforça o exposto por Ramalho sobre as carências do IML. E denuncia o descaso do Estado com a população carente.

“Morto não fala” não é filme panfleto”

Ainda assim, “Morto não Fala” não é filme-panfleto. Trata-se de uma obra a mostrar ao espectador que o terror não advém só dos mortos, dos fantasmas e das mandigas. Está principalmente na forma como a sociedade se organiza para permitir a todos terem acesso ao que irá tranquilizar a família do morto. Atento, Ramalho inclui sequências no IML para atestar o quanto Stênio depende de seu trabalho para sustentar sua família.

Desta forma, a dupla Ramalho/Jouvin cria dois eixos narrativos que ampliam o tema central: a) A ação de Stênio no estatal IML com seus cadáveres paranormais; b) A paciência dele ao suportar a dissimulação de sua companheira Odete (Fabiola Nascimento), dividida entre ele e suspeitas relações na comunidade. Principalmente por não lhe sobrar tempo para estar com ela e os filhos adolescentes Ciça (Annalara Prates) e Edson (Cauã Martins). E torna-se o elo de ligação entre as subtramas.

Não só ele, a dupla inclui Odete nesta ligação, forma de tornar real a duplicidade vivida por ela. Ramalho inclusive centra a narrativa em explícita realidade, fugindo à abordagem de outros filmes nacionais que trataram da relação do crime organizado com as comunidades dos conglomerados. E mostra como eles transitam e atuam e trocam informações vitais para sua sobrevivência no choque e na fuga das forças de segurança. Não só Odete transita entre eles, como Stênio o faz por conhecê-los.

Política de marginalização sustenta o terror oficial

Desta ambígua relação, Ramalho retira o impacto da ótima sequência de multidão em plena praça do bairro classe média baixa da Zona Leste de São Paulo a envolver o casal Odete/Stênio.

Intercala a um só tempo a vingança dele e o sacrifício dela. Mais uma vez é o realismo se impondo à ficção numa narrativa estruturada para atrair o espectador para esta mescla de ficção e realidade mais pertinente ao filme policial. Aqui assume a configuração de terror dada à opção da dupla.
De forma clara, Ramalho elucida para o espectador a razão de o terror oficial ser sustado pela política de marginalização dos destituídos e explorados moradores da periferia e dos conglomerados. A dupla Ramalho/Jouvin não estruturou um filme de terror qualquer para levantar suspeitas. As forças políticas sejam de extrema direita, de centro e “democratas” centram suas políticas neoliberais em estímulos às empresas nacionais e multinacionais e os trabalhadores ficam sem nada.

Esta termina sendo a leitura do espectador deste “Morto não Fala”. A narrativa, porém, não se restringe ao terror brotado nos gabinetes oficiais. A dupla Ramalho/Jouvin o estende ao terror eivado de vingança. É onde os efeitos visuais de Guilherme Ramalho reforçam a construção do sobrenatural. E rende antológicas sequências de puro terror interpretadas pelos ótimos Daniel de Oliveira e Fabíola Nascimento. Ambos sustentam a construção dramática na qual prevalece a criatividade do ator e da atriz ao interpretarem o puro horror.

Ramalho cria outra vertente do terror

Ramalho usa para estas estruturações dramáticas a iluminação em planos aproximados do diretor de fotografia André Facioli e os efeitos visuais de Guilherme Ramalho. O resultado é a densa atmosfera cinzenta em que o sobrenatural predomina nas sequências de medo e terror. São fortes as sequências no cemitério onde a morte mostra ter mais truques do que o ser vivo. Ramalho sequer usa os truques dos sustos e das súbitas aparições dos mortos para provocar sustos e gritos.

Com este “Morto não Fala”, Ramalho cria outra vertente do filme de terror. Não se vale das aparições em ambientes escuros, tendo como vítimas crianças e mulheres desprotegidas. Nem cria personagens cujas composições estão fora da realidade cotidiana. Suas metáforas se prestam a reforçar suas construções dramáticas a exemplo das duplas relações de Jaime (Marco Ricca) e ainda de como Odete se mantém nas trevas. Sua grande ideia é identificar o terror do poder como o mal absoluto. O que não deixa de ser inovador e grande ideia neste momento!

MORTO NÃO FALA. Brasil. Terror/drama/policial. 209.110 minutos. Ficha técnica: Música: Paulo Beto. Montagem: Jair Peres. Fotografia: André Faccioli. Roteiro: Dennison Ramalho, Claudia Jouvin. Direção: Dennison Ramalho. Elenco: Daniel Oliveira, Fabíula Nascimento, Bianca Comparato, Marco Ricca, Cauã Martins, Annalaura Prates,

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