“Mutum”:Terra bruta

As relações no campo, na época de Guimarães Rosa, são o tema do filme de estréia da carioca Sandra Kogut, que trata também do amadurecimento de um garoto de 10 anos, no sertão mineiro.

Quando a mãe diz ao filho de 10 anos que “um dia irá a seu encontro”, numa viagem de esperança, abre-se um leque de sentidos, promessas e opções. Uma abertura que rompe o impasse criado ao longo de “Mutum”, filme de estréia da carioca Sandra Kogut. A vida do menino poderá mudar e com ela o futuro de toda a família. Mas é também a possibilidade do reencontro, do término do sofrimento e da opressão que lhe impõe o marido. E mais ainda: do caminhar rumo à outro espaço, cheio de transformações, que colocará a todos em contato com um meio social melhor. Essas projeções, ditas por ela entre afagos ao filho e o olhar para a paisagem agressiva do sertão, dão, enfim, sentido à sua existência, numa região onde a vida escorre devagar e a morte pode se abater sobre um dos seus e levá-lo, como num sopro para tirar cisco do olho.


 



Há todo um ciclo que se completa, através dos sons do meio onde vivem, das falas que seguem o ritmo lento da natureza, das armadilhas do isolamento no sertão, que tiram do homem mais do que ele pode lhe dar e lhe devolve quase nada. E não há, a cada dia, esperança de que algo mudará nas relações do sitiante com a terra. O que só o embrutece, o irrita, o torna vítima de uma relação que não sabe divisar a ponto de modificá-la. Nada de novo, não fosse o filme baseado no conto “Campo Geral”, do livro “Manuelzão e Miguilim”, do mestre Guimarães Rosa. É no sertão, sertão mineiro, com suas picadas, terra vermelha, vegetação miúda, a se perder de vista, gente que se liga ao ciclo da vida, que nada lhes reserva, que se passa o filme, sob o ponto de vista do menino Thiago (Thiago da Silva Mariz).


 



Adaptar uma obra de Guimarães Rosa para outro veículo requer obedecer a seu ritmo, comprar suas pausas, seus sons, largar os instrumentais cinematográficos para criar uma sinfonia, onde os acordes são gerados pela própria natureza, devendo o homem respeitá-la para sobreviver. Sandra Kogut obedeceu esta regra, a exemplo de Valter Avancini, que transformou numa excelente série o monumental romance “Grande Sertão: Veredas”. Seu filme tem a cadência roseana, com o falar mineiro, os silêncios, a relação do homem com a terra e a ausência de perspectivas para o pequeno sitiante. Não há música, trilha sonora para acentuar conflitos, induzir choques e enlevar espíritos, numa espécie de amor à natureza. Nada disso há em “Mutum”.


 



Violência contra a mãe distanciam filho do pai



 


Kogut usa o próprio som do sertão, dos pássaros, da natureza (o aterrorizante prenúncio da tempestade e o ciciar do vento), para acentuar a visão do menino Thiago, de 10 anos. Tudo em sua volta lhe assusta, ameaça. E se apresenta com uma grandiosidade superior à que realmente tem. A diretora acentua a maneira como ele absorve o que lhe rodeia com planos sempre amplos, a certa distância do pai (João Miguel), obrigando-o sempre a correr, a ver-se pequeno. Só nos instantes em que está com o irmão Felipe (Wallison Felipe Leal Barroso)  ou com o tio Terez (Rômulo Braga), irmão de seu pai, é que ele se abre, torna-se dócil, falante, seguro – e os planos então são fechados. Menos quando está com o pai, que o vê como alguém que busca algo diferente do que tem. E lhe espanca, humilha, sem buscar entender suas aflições de garoto. Principalmente porque é por meio dele que Rosa/Kogut explica as relações entre o pai e a mãe. E, portanto, os conflitos que distanciam um do outro e, portanto, dele, Thiago, também.


 



Kogut usa recursos que, embora usados em outros filmes, servem para expor o universo de Thiago. Quando é chamado em meio à briga dos pais, ele corre pela casa e se detém diante da porta. Kogut mantém sua câmera do lado de fora, ouve-se apenas as frases ríspidas do pai, a surra que a mãe leva, enquanto ele, o garoto, sofre do lado de fora. É mais violento do que se explícito fosse. Marca muito mais a vida do menino, que descobre a agonia e violência do mundo adulto. O pai sempre lhe surge como um ser brutal, ríspido, disposto a zombar dele e espancá-lo. Seus instantes de criança, de riso, de entrega à vida, se dão quando ele brinca com o irmão, a irmã, o papagaio e sua cadela. E corre solto de um lado ao outro do terreiro, ou senta do lado de fora da casa e fica quieto, na pura contemplação.


 



O escoar de “Mutum” ajuda o espectador a absorver o clima do filme e do espaço onde ele se passa. A vida infantil, ao contrário do que se pensa, é tomada por descobertas cruéis. Thiago o percebe: que alguém querido pode morrer de uma espetada, aos poucos, em cima da cama; que o pai, a quem tenta admirar pode fazer desabar sobre ele toda sua frustração; que ele pode transitar de um espaço a outro, do sítio da família para o campo aberto dos vaqueiros e a vida no lugarejo, sem perceber direito o que se passa. E, principalmente, ter de arcar muito cedo com seu próprio crescer. Esse entender a vida se dá sutilmente, tanto para ele quanto para o espectador. Kogut usa recursos mínimos; da calça curta de Thiago, menino, aprendiz de lavrador, da calça comprida de Thiago, vaqueiro, a liderar a manada na travessia do rio. E percebe-se que ele cresce, amadurece, entrega-se a outras descobertas.


 


Filme não reforça o estereótipo do matuto


 


Não há vestígio no universo de Guimarães Rosa do estereótipo do matuto, do lavrador simplório, mas do camponês em sua relação com a terra. Mal dá para sustentar a família e sonhar adiante. Sua produção não se organiza visando o mercado, tão só relações de trocas primárias. Quando muito o pai vai ao lugarejo para fazer a compra do mês. Nada se eleva além disto. Um doce com um pouco mais de açúcar é visto como luxo, motivo de agressão à mulher. Mas a terra está à disposição, à espera de melhor organização, de exploração intensiva, para elevar a produção e expandir os negócios. Rosa/Kogut são pessimistas ao tratar desta questão. O pai não consegue ver para além da labuta diária na terra. No máximo ensina ao filho os rudimentos do bom lavrar e nada mais.



             


É como se não houvesse salvação no lavrar a terra e dela tirar o sustento. As relações capitalistas não chegaram ao campo e o camponês precisa de alguém de fora para o alertar. Este alertar não vem na forma de organizar a produção, mas de abrir espaço para Thiago entrar em outro tipo de relação social. É a mãe que o esclarece. Diz-lhe que, ao aceitar a proposta que se lhe apresenta, ele poderá estudar, abrir a possibilidade de ter trabalho diferente. O meio urbano, então, surge como o Eldorado, a “terra prometida”. Lá é que está a saída para a vida não só dele, mas de toda a família. É quando ela lhe fala sobre a viagem que um dia também fará. É uma forma de se libertar, de transitar de um espaço que, na visão de Rosa/Kogut, não lhe oferece alternativas, para o que vai tirá-la da opressão, do medo, da violência a que a submete o marido. 



            


Talvez seja essa visão que Rosa tinha do sertão em seu tempo; um tempo nada romântico, de pouca opção fora da terra. Kogut torna sua visão ainda mais dura ao eliminar do filme qualquer interferência sonora, musical, que não seja os sons da natureza. Nada ali é romântico, bucólico, marcado pelos acordes de viola caipira. O homem está ali, solitário, em sua relação com a terra. E a maneira bruta com que a trata é a mesma com que trata a família. Se a máquina afasta o homem de suas relações afetivas, o mesmo se dá, nesta visão de Rosa/Kogut, com o lavrador em seu cotidiano com a terra. Sem contar a miséria, que predomina, dada à falta de ganho excedente para dotar a casa do conforto necessário à vida, semelhante ao do meio urbano. Vive-se com o mínimo, inclusive o mínimo de afeto.
       


        


Para Kogut, o futuro do garoto está no meio urbano
   
        


No momento em que Thiago caminha em direção à estrada, sente-se que a vida está em outro lugar. O campo, embora Kogut tenha adaptado o conto para as relações de hoje, nada pode lhe oferecer. O futuro, diz Rosa/Kogut, está no meio urbano. O sertão de Rosa/Kogut é dominado pela lavoura de subsistência. As transformações ainda estão para surgir, gerando outro tipo de relação homem/campo. O pai representa, assim, o camponês dominado pela terra, sem compreensão do que dela pode tirar. E o garoto vai de um lado ao outro, tentando encontrar seu espaço. Para Kogut a saída para ele, pelo que lhe dita a mãe, com a possibilidade de viagem, de redenção, é estudar e construir sua vida em outro patamar, longe do campo. Para os tempos de Guimarães Rosa era uma visão e tanto, para os de hoje, nem tanto.


 


“Mutum”. Drama. Brasil. 2007. 95 minutos.Roteiro: Ana Luíza Martins Costa, Sandra Kogut. Direção: Sandra Kogut. Elenco: João Miguel, Thiago da Silva Mariz, Izadora Fernandes.


 


(*) Prêmio: Troféu Redentor de Melhor Filme, no Festival do Rio de Janeiro, 2007.

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