Naguib Mahfouz

Desde o último dia 31 de agosto, não está entre nós o maior escritor árabe da história e único prêmio Nobel da região, Nagib Mahfouz. Internado desde o dia 19 de julho por ter sofrido uma queda e ferido a cabeça, Mahfouz veio a falecer no Hospital Policia

Sua fama internacional vem da trilogia do Cairo, publicada entre os anos de 1956 e 1957, onde descreve a vida em um bairro islâmico no Cairo existente há mais de mil anos. Meu contato com a obra da Mahfouz vem da época que no Brasil foi publicado, pela Editora Record (hoje esgotado), o primeiro volume e o mais famoso da trilogia, que é Entre dois palácios, ao qual recebi de presente do saudoso amigo e advogado Aníbal Fernandes. Foi exatamente nesse ano que Mahfouz foi laureado com o maior prêmio de literatura existente no mundo, que é o Nobel. Com o curso de Língua e Literatura Árabe que fiz na USP entre os anos de 1994 e 1995, acabei por ler quase tudo que dele havia sido publicado em português e os que saíram posteriormente.


 


 
Apesar de famoso internacionalmente, levando ao mundo a vida dos cairotas nas décadas de 1930 a 1950, Mahfouz nunca foi aceito por setores da comunidade muçulmana. Tanto que, em 1994, acabou sofrendo um atentado. Quando saia de sua casa no Cairo, foi atacado por um militante muçulmano a facadas. A acusação era de que ele não retratava corretamente a vida muçulmana. Tal ataque acabou provocando graves seqüelas em sua visão, de forma que acabou diminuindo a sua produção literária.


 



A obra de Mahfouz


 
Mahfouz escreveu durante toda a sua vida, cerca de 50 livros, dos quais pelo menos doze foram publicados no Brasil, sendo que o mais recente, O Beco do Pilão, chegou-nos pela Editora Planeta, com tradução de Paula Daniel Farah, professor da USP. Temos ainda os livros da fase do Egito antigo, que são Batalha de Tebas (Record), O Jogo do Destino (Record) e Akhenaton, o Rei Herege (também pela Record, a que mais publicou Mahfouz no Brasil). Por fim, pela pequena editora Caminho, temos Em Busca e A vilela de Midaq. Pela também pequena editora Berlandis, saiu Miramar e pela Cia. das Letras o belíssimo Noites das Mil e uma Noites. Seus cerca de 50 livros são contos, coletâneas de pequenas histórias e romances, hoje publicados em mais de 25 idiomas em todo o mundo.


 


 
Pessoalmente, não gosto da fase do Egito antigo de Mahfouz. Até porque ele descreve uma época em que o país não havia sido ainda islamizado e arabizado. No entanto, os livros da fase do Egito do século XX, especialmente da primeira meta são os mais deliciosos para uma leitura agradável. A descrição dos detalhes da vida das pessoas, de seus dramas pessoais, suas crises, os desvios de conduta. Todos os personagens humanos estão descritos nos seus livros, ainda que fictícios, existem nas grandes cidades. Do funcionário corrupto no serviço público, do carreirista e puxa saco, do homossexual, da prostituta, os donos de cafés, enfim, estão todos lá retratados de forma excepcional. Ler um livro de Mahfouz é como se viajássemos no tempo, nos transportando a uma época que não vimos e não conhecemos, ainda que possa ser nos dias de hoje vista em muitas localidades em que o tempo parece não passar nas ruas do Cairo.


 


 
Mahfouz é considerado uma espécie de “pai” do romance árabe moderno e foi comparado muitas vezes a Charles Disckens (1), maior escritor inglês e dele recebeu fortes influências. Formado em Filosofia na Universidade do Cairo em 1934, era também servidor público de carreira, de onde tomou emprestados muitos personagens de seus livros. Seus primeiros livros saem a partir de 1939 e até 1944, retratam com a maior riqueza de detalhes o Cairo num momento histórico de final de II Guerra e emancipação de uma série de países árabes, ocupados ora pela França, ora pela Inglaterra. A fase mais antiga retrata o período dos faraós.


 



Na primeira metade do século XX, ressalta o nacionalismo árabe, hoje infelizmente em baixa, que vai ter o seu apogeu com a tomada do poder por Gamal Abdel Nasser em 1956, que vai governar o Egito até sua morte em 1970. Em suas obras Mahfouz reflete os bairros pobres e ricos do Cairo, as contradições, as classes sociais. Tudo com uma pitada de politização, pelo viés nacionalista. Há personagens inclusive mais à esquerda, mais radicais. Sempre citando personagens históricos reais, aos quais nomina um a um, entre eles, Michel Aflack, um dos ideólogos e fundadores do que viria a ser o Partido Baath, que governa hoje a Síria e já governou o Iraque. O processo de ocidentalização do Egito é bem retratado, a aculturação, a penetração de valores e idéias ocidentais. Isso fica claro inclusive quando da descrição dos diversos bairros cairotas em que vivem os seus personagens, que parecem saltar da literatura para a vida real. Como sociólogo, costumo dizer que Teoria Literária e Literatura em geral, são também obras sociológicas e no caso de Mahfouz, os aspectos sócio-políticos estão sempre presentes e são muito fortes. Em suas obras, ele sempre passa as críticas das injustiças e as mazelas existentes em seu país.


 


 
O nome Naguib, em árabe quer dizer nobre e Mahfouz quer dizer o protegido de Deus. É usado tanto por cristãos como por muçulmanos. Recebeu esse nome em homenagem ao obstetra que fez o parto em sua mãe na década de 1910. Sua obra por muitas vezes chegou a ser comparada a de grandes escritores como Victor Hugo, Emile Zola, Tomas Mann entre outros, mas, pode-se dizer que seu trabalho esta mais relacionado com a história das novelas (2).


 


 
Sabemos que outros tantos escritores árabes ocuparão seu espaço, como Amin Maalouf e Taha Hussein, mas de Mahfouz sentiremos muita saudade, que serão amenizadas na proporção que sua obra completa seja traduzida para o português e editada em nosso país.


 



Notas


(1) Ver artigo de Paulo Daniel Farah, intitulado “Inovador, escritor egípcio foi o pai do romance árabe”, publicado no jornal Folha de São Paulo do dia 31 de agosto de 2006, na Ilustrada.



(2) Ver artigo da professora Safa Jubran, da USP, intitulado “Mahfouz, o escritor que encarnou no Egito as mazelas do mundo”, publicado no jornal O Estado de São Paulo do dia 3 de setembro de 2006.



PS: semana passada, deixei de publicar minha coluna semanal no Vermelho, ao qual peço desculpas aos meus leitores fiéis. Ocorre que meu envolvimento nas eleições de 2006, num projeto popular de reeleição do presidente Lula e do PCdoB tem tomado completamente o meu tempo.

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