Necessária Crítica da Crítica Crítica a Eric Hobsbawm

Os socialistas burgueses querem as condições de vida da sociedade moderna sem as lutas e os perigos que dela decorrem fatalmente

(Karl Marx e Friedrich Engels em O Manifesto do Partido Comunista)

Acaba de ser lançada no Brasil mais uma obra de Eric Hobsbawm, um dos maiores historiadores vivos e leitura obrigatória quando se trata de temáticas sobre os trabalhadores.[1] Se chama Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011.[2]

São mais de quatrocentas páginas de textos. alguns presentes em outras coletâneas, especialmente em volumes de História do marxismo e em Sobre História, além de outros inéditos. Entre estes, são notórias as reflexões subjetivas decorrentes da crise atual do capitalismo e as tentativas de respostas marxistas a elas.

Seus ensaios, apesar de rigorosos nos métodos da historiografia, sempre resultaram polêmicos. Os antimarxistas gostam de sua forma de narrativa, odeiam o seu referencial teórico, como se fosse possível dissociá-los. A defesa histórica do pensamento de Marx e dos que o desenvolveram, mesmo diante da crise contemporânea do marxismo, especialmente após o fim da União Soviética, fez de Hobsbawm um dos pensadores mais lidos no mundo. Sua tetralogia, com A Era das Revoluções, A Era do Capital, A Era dos Impérios e A Era dos Extremos, é um marco da historiografia mundial.

Isto nunca evitou o ataque esquerdista ao seu pensamento, coincidentemente com o mesmo teor de críticas liberais e conservadoras, taxando-o de “servil ao stalinismo”, o que em termos teóricos não diz quase nada.

À Esquerda, a crítica a Hobsbawm centra-se em sua suposta não-observância da tese clássica defendida por correntes diversas e oriundas na IV Internacional, sobre a “revolução política” que deveria derrubar a burocracia e reconduzir o Estado Operário da União Soviética ao socialismo. Ora, o fim da URSS e o retorno capitalista ao Leste Europeu mostraram o equívoco histórico desta interpretação sobre a luta de classes no século XX e sobre a própria construção socialista soviética, ao desviar para uma interpretação subjetivista da História, pretensamente marxista. Porque o historiador Eric Hobsbawm teria que sucumbir a ela, transformando desejo político em interpretação histórica?

Já em entrevista recente, o longevo historiador radicado na Inglaterra, nascido em Alexandria, no Egito, em 1917, fala das chamadas “primaveras árabes”. [3]

Sobre as revoltas de 2011, entre outras considerações, afirma que ''as mais eficazes mobilizações populares são aquelas que começam a partir da nova classe média modernizada e, particularmente, a partir de um enorme corpo estudantil. Elas são mais eficazes em países em que, demograficamente, jovens homens e mulheres constituem uma parcela da população maior do que a que constituem na Europa''. Hobsbawm confessa uma “alegria imensa” ao descobrir que “mais uma vez, é possível que pessoas possam ir às ruas e protestar, derrubar governos”, reafirmando seus “ideais de transformação social que defendeu ao longo de toda a vida“.

Porém, afirma que “as ausências da esquerda tradicional e da classe operária nesses movimentos se devem a fatores históricos inevitáveis”. Para ele, ''a esquerda tradicional foi moldada para uma sociedade que não existe mais (…). Ela acreditava fortemente no trabalho operário em massa como o sendo o veículo do futuro. Mas nós fomos desindustrializados, portanto, isso não é mais possível''.

Hobsbawm vê semelhanças entre as insurreições da Tunísia, do Egito, da Líbia e do Iêmen com a “primavera dos povos” de 1848 e que originou a reflexão contida no Manifesto do Partido Comunista, escrito por Karl Marx e Friedrich Engels.

Desta forma, procura identificar o caráter do que aconteceu em alguns países árabes: “'Estamos em meio a uma revolução, mas não se trata da mesma revolução. O que as une é um sentimento comum de descontentamento e a existência de forças comuns mobilizáveis – uma classe média modernizadora, particularmente, uma classe média jovem e estudantil e, é claro, a tecnologia, que hoje em dia torna muito mais fácil organizar protestos”.

A reflexão do grande pensador marxista não está livre de questionamentos, mesmo que isso possa parecer atrevimento ou arrogância intelectual. Hobsbawm tem uma vasta obra sobre, em torno e em defesa do marxismo e da influência de Marx e dos marxistas desde o século XIX. Porém, quando define que o marxismo é um pensamento estrutural-funcionalista[4] sucumbe a uma incompreensão sobre a dialética no método do materialismo histórico.

Eu outra crítica, citando seu artigo "O presente como história", também contido em Sobre História, por mais paradoxal que possa ser, já afirmei dos problemas sobre seu entendimento da História como história dos ingleses, dos europeus ou dos ocidentais e não a partir das visões de mundo estabelecidas pelas classes sociais em luta e em um contexto histórico determinado. Ali, disse que “privilegiar a análise sob o ponto de vista individual do historiador ou de uma região, resulta em uma concessão ao relativismo historicista, tão em evidência nas tendências ‘pós-modernas’”.[5]

Quando Hobsbawm fala da “esquerda tradicional” talvez tenha esquecido momentaneamente de um dos trechos essenciais do Manifesto: “Entretanto, a nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se por ter simplificado os antagonismos de classe. A sociedade divide-se cada vez mais em dois vastos campos opostos, em duas grandes classes diametralmente opostas: a burguesia e o proletariado”. Aqui, por obviedade, Marx e Engels não estão se referindo apenas ao operário da época da consolidação do capitalismo na Europa Ocidental, mas da classe em oposição antagônica à burguesia, a classe dominante do modo de produção capitalista. Por isso, o Manifesto completa esta sentença afirmando que “a organização do proletariado em classe e, portanto, em partido político, é incessantemente destruída pela concorrência que fazem entre si os próprios operários. Mas renasce sempre, e cada vez mais forte, mais firme, mais poderosa. (,,,) A burguesia vive em guerra perpétua; (..) Em todas essas lutas, vê-se forçada a apelar para o proletariado, reclamar seu concurso e arrastá-lo assim para o movimento político, de modo que a burguesia fornece aos proletários os elementos de sua própria educação política, isto é, armas contra ela própria”.

Se Hobsbawm passou a ver no desenvolvimento de parte das forças produtivas e na técnica a história de forma “renovada”, repete o caminho economicista e equivocado de todos aqueles que centraram na informática, na robótica e na microeletrônica, ou seja, na sociedade “pós-industrial” ou da “informação” o centro da sociedade dita “Contemporânea”. Que o digam André Gorz, Adam Schaff, Alain Touraine e outros ex-marxistas. O dilema teórico aqui pode ser o caminho sem volta das teses que defenderam o fim da História ou da Pós-História, por conseqüência, do fim da luta de classes e do esgotamento teórico do marxismo, defendendo a armadilha da estética tese sobre a sociedade consumidora sem os antitéticos produtores da riqueza, o proletariado, bem ao gosto da condição que se proclama como “pós-moderna”.

Seu encanto com a classe média e a técnica contemporânea, já que se trata de comparar “primaveras” com o contexto de 1848, encontra também no Manifesto a resposta clássica do marxismo: “As classes médias – pequenos comerciantes, pequenos fabricantes, artesãos, camponeses – combatem a burguesia " porque esta compromete sua existência como classes médias. Não são, pois, revolucionárias, mas conservadoras; mais ainda, reacionárias, pois pretendem fazer girar para trás a roda da História. Quando são revolucionárias é em conseqüência de sua iminente passagem para o proletariado; não defendem então seus interesses atuais, mas seus interesses futuros; abandonam seu próprio ponto de vista para se colocar no do proletariado”.

Se Hobsbawm está desencantado com o proletariado e o que chama de esquerda tradicional, vendo na classe média a classe que vai mudar o mundo, está se apegando na aparência das mudanças que ocorrem pelo planeta. O historiador se distancia do processo histórico concreto de desenvolvimento e crise do capitalismo, bem como da observância da ampliação quantitativa do proletariado, ao mesmo tempo em que confunde classe operária industrial com proletariado. Se retornasse para a essência da interpretação científica e materialista da História, continuaria vendo, assim como Marx e Engels, há mais de 160 anos atrás já afirmaram no Manifesto: “de todas as classes que ora enfrentam a burguesia, só o proletariado é uma classe verdadeiramente revolucionária”. Também voltaria a perceber que “os comunistas constituem, pois, a fração mais resoluta dos partidos operários de cada país, a fração que impulsiona as demais; teoricamente têm sobre o resto do proletariado a vantagem de uma compreensão nítida das condições, da marcha e dos fins gerais do movimento proletário”, sem ilusões diante do “ascetismo geral” ou da saída fácil para um “grosseiro igualitarismo”, como já afirmava o clássico de 1848.

E este nos ensinou mais ainda. Fora do materialismo histórico só resta o retorno ao socialismo utópico, o qual compreendeu “bem o antagonismo das classes, assim como a ação dos elementos dissolventes na própria sociedade dominante”, mas não percebeu “no proletariado nenhuma iniciativa histórica, nenhum movimento político que lhe seja próprio”. Por isso substituiu a atividade social pela imaginação social, as condições históricas de emancipação por condições fantasiosas, atenuando a luta de classes e conciliando os antagonismos. Assim, mais do que nunca, a consigna está atual para a luta socialista de 2012, para o socialismo do século XXI, para a revolução anticapitalista: “Proletários do mundo, uni-vos!”.[6]

Hobsbawm, pelas contribuições que já deu ao desenvolvimento da historiografia e na defesa do próprio marxismo, talvez mereça cada vez mais dos marxistas de hoje o que Marx e Engels fizeram com Bruno Bauer e consortes, uma crítica da crítica crítica, ou seja, uma síntese arrojada de sua obra para ver suas contribuições e seus limites.

Notas

[1] Destaco aqui: Os trabalhadores: estudos sobre a história do operariado. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981; Mundos do trabalho. Novos estudos sobre história operária. 3 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000.

[2] HOBSBAWM, Eric J. Como mudar o mundo: Marx e o marxismo, 1840-2011. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[3] Para Hobsbawm, protagonismo da classe média marca revoltas de 201. Disponível em: http://www.bbc.co.uk/portuguese/noticias/2011/12/111223_hobbsbawm_2011_classe_media_bg.shtml. Acesso em 29/12/2011.

[4] Ver especialmente dois de seus artigos sobre Marx, a História e a dívida dos historiadores com o pensamento do revolucionário alemão, em Sobre História. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, p. 155 a 184.

[5] Cf. o artigo “História do presente e a atualidade de ‘O Dezoito Brumário de Luiz Bonaparte’ de Karl Marx”. Disponível em: http://www.unicamp.br/cemarx/diorge.htm. Acesso em 30/12/2011.

[6] As passagens do Manifesto podem ser encontradas em MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Obras escolhidas. Vol. 1 Moscou: Progresso, 1982.

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