“Ninfomaníaca – Volume I” –  Eros x 8

Cineasta dinamarquês Lars Von Trier passeia pela crise ética e moral européia em filme sobre a exclusão e decadência do ser humano.

Difícil sair de um filme do cineasta dinamarquês Lars Von Trier (1956) impune, dado aos desafios que ele impõe ao espectador, mesmo que no desfecho este tenha a impressão de mera provocação. Ou simplesmente ficar indiferente a questões que beiram o escatológico, o surreal, o distópico, numa sociedade em que tudo é mercadoria. Principalmente em se tratando de sexo, pois o desejo sede espaço ao lúdico, devido à carga de consumo, sem prazer algum. O que exclui, inclusive, a paixão, o afeto, a troca com o outro.

Como se vê em “Ninfomaníaca – Volume I”, que integra sua visão crua, já vista em “O Anti-Cristo” (2009) e “Melancolia” (2011), Trier continua a lançar dúvidas sobre a capacidade do homem/mulher superar seus impasses e decadência. Talvez uma visão pessimista da Europa atual e de seu país, a Dinamarca, em particular. Neste, sustentado por uma social-democracia cujo legado não se expande, mesmo preservando conquistas sociais, a necessidade de superação da crise neoliberal oscila entre a urgência da mudança e o temor de perder o já estabelecido.

É deste impasse que trata Trier em seu derradeiro filme, dividido em duas partes, num total de cinco horas de duração. Este “Volume I”, com 118 minutos, trata das revelações de Joe (Charlote Gainsbourg), aos 50 anos, encontrada ferida num beco escuro, ao desconhecido Seligman (Stellan Skarsgard), que a socorre. Em flashbacks, ela lhe conta sua odisséia sexual na juventude, em cinco capítulos, que divide o filme em duas estéticas: uma dominada pelo expressionismo, o jogo de sombras, de números e metáforas, a outra pelo jogo sexual da Jovem Joe (Stacy Martin).

Jogo de Joe exclui o desejo

Se na primeira as revelações de Joe são questionadas por Seligman, que lhes dá sentido, na segunda, a Jovem Joe se entrega a uma competição sexual com a amiga Betty, usando homens, como meros objetos, excluindo desejo e paixão. Poder-se-ia dizer que Trier trata do reverso do feito pelos homens com as mulheres, porém a Jovem Joe apenas brinca. Inexiste outro objetivo senão este. Ela, além disso, não tem ambições, nem se entrega ao consumismo, tampouco intenta ou estimula reformas comportamentais.

Ao estruturá-la desta forma, Trier retira dela qualquer psicologismo, inserção em relações mercadológicas ou pertencimento a qualquer grupo de jovens da classe média, embora às vezes circule por escritórios. Ela apenas está ali, descolada dos impasses de sua camada social. O pai (Christian Slater) ensina-lhe a relacionar-se com a natureza através do fleixo, árvore à qual ele vê beleza e magia. É com ele que ela tem a única relação que a mostra dotada de afeto. Os outros homens, como Jerôme (Shia Labeouf), o jovem burguês usado por ela, são como peças num tabuleiro, que ela usa para sua insaciável necessidade sexual.

Trier insere em seu filme muito da liberação sexual nórdica, da ausência de repressão ou de temor religioso. A ausência de culpa da Jovem Joe deriva, sem dúvida, desta conquista feminina e da educação sexual. Este é, no entanto, só um detalhe, pois não é o sexo que importa aqui, mas a forma como ela usa os parceiros e notadamente Jerôme neste Volume I. Joe é apenas uma construção de uma sociedade predadora, em declínio.

Ser humano é frágil, diz Trier

Sua odisséia inclui a forte relação com o pai, que assiste em sua decadência física num quarto de hospital. Trier desconstrói a visão distanciada, da Jovem Joe. Ela vê o pai definhar, tornar-se um ser frágil, em fortes sequências escatológicas. Trier parece dizer: Eis o ser humano, despido das falsas construções de uma sociedade, a capitalista, que prima pelo narcisismo e o hedonismo. É o reverso da construção metafísica de “Melancolia”: o medo do homem/da mulher da dupla finitude – dele e do próprio universo.

As explicações de Seligman, judeu que se diz sionista, não anti-semita, para as escolhas da Jovem Joe através de metáforas e de números, num jogo cabalístico, ajudam o espectador a entender melhor o filme. Isto porque Trier, ao invés de torná-lo hermético, procura explicitá-los via imagens do que se referem. Como o jogo sexual da Jovem Joe com desconhecidos, comparado por Seligman à pesca no rio e a ferocidade com que ela o faz com tenacidade do leopardo. Vale-se da linguagem e estética do cinema mudo para fazê-lo, escrevendo números sobre imagens, dividindo o filme em capítulos.

Esta estruturação, embora usada pelo cineasta alemão Alexander Kluge(1932) em seus filmes (“O Grande Caos”, 1971) aqui assumem outro caráter. Ajudam a clarear suas intenções, dando complexidade ao filme, dividido em partes narrativas e reflexivas em longo flashback, e permeado de cenas que mais provocam que chocam, em razão da tendência do cinema atual incluir cenas de sexo explícito, como já feito por ele, Trier, em “Os Idiotas” (1998). Porém, de qualquer forma, o espectador só terá uma visão completa de “Ninfomaníaca” vendo-o em suas mais cinco horas de duração. É melhor esperar.

“Ninfomaníaca – Volume I” (“Nymphomaniac”). Dinamarca, Alemanha, França. Bélgica, Inglaterra. Drama. 2013. 118 minutos. Montagem: Molly Marlene/Stensgaard. Fotografia: Manuel Alberto Claro. Roteiro/direção: Lars von Trier. Elenco: Charlotte Gainsbourg, Stellan Skarsgard, Uma Thurman, Christian Slater.

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