“No Coração do Mundo”: Explorados e ofendidos da periferia

O aglomerado de Contagem/MG visto de cima por seus moradores entre tiros, corpos, carências e sonhos sem os estereótipos dos filmes-favela

Sem dúvida os aglomerados das megalópoles brasileiras de hoje não se prestam mais às costumeiras abordagens dramatúrgicas e imagéticas. A expulsão dos trabalhadores afrodescendentes e caucasianos dos bairros mesmo periféricos mudou sua composição social. É o Brasil neoliberal dos Séculos XX e XXI que, ao ignorar os discriminados e explorados de ambas as raças, terminou por juntá-los nos morros e mangues. Assim, a inovadora abordagem dos irmãos Gabriel e Maurílio Martins neste “No Coração do Mundo”, mostra que eles atentaram para a cruel e excludente realidade.

Em sua narrativa, eles convivem num aglomerado no alto do morro, de onde se avista os bairros nobres de Contagem. É a visão inversa das costumeiras caracterizações que os identificam como moradores de barracos pendurados nos morros. E criam a excludente imagem de que os afros continuam empoleirados em frondosas árvores. Aqui são os caucasianos a perceber o quanto foram excluídos das dignas estruturas urbanas. Isto se vê na sequência em que Marcos (Leo Pyrata) contempla a profusão de luzes dos prédios classe A distante do aglomerado onde vive.

As condições de vida dos proletários que moram no alto dos morros ou nos manguezais são iguais para o trabalhador de qualquer raça. Nenhum deles escapa à labuta diária em atividades estafantes e mal pagas a beirar a escravidão. A própria companheira de Marcos, a loira Ana (Kelly Crifer) bem o demonstra ao ser trocadora numa empresa de ônibus. Além da constante lotação e longo itinerário sofre com a irritação e as ameaças dos/as passageiros/as. As ofensas às vezes tendem a descambar para a agressão física, quando tem que reagir. Não é diferente em outras cidades.

Cansada de correr riscos, Fernanda adere ao Uber

Não menos mal remunerada é a morena Fernanda (Bárbara Collen), companheira de Beto (Renato Novaes) , parceiro de Marcos. Cansada de correr riscos, ela decide ganhar seu sustento por que mais que tenha de se estafar. “Vou trabalhar no Uber”, revela a ele. Esta não é a opção só dela, profissionais qualificados e com diploma de curso superior também o fazem. É a forma encontrada pela duas caucasianas para ludibriar a dependência do companheiro e ao mesmo tempo fugir à pressão do ganho regado a execuções e o risco de algum silencioso inimigo nela se vingar.

Esta a primeira sub-trama deste “No Coração do Mundo”, centrada no drama-social a envolver personagens que atestam a chegada em massa dos deserdados caucasianos aos aglomerados. É inegável a disputa com os afros por vagas, pois suas condições sociais os igualam. Talvez isto explique a boa relação delas com a afro Selma (Grace Passô), espécie de empreendedora. A dupla Martins a introduz sem explicitar qual é a sua participação nas atividades ilícitas ou não no populoso morro. Ela ao surgir o faz como amiga de Marcus que atende às sugestões dela sem reservas.

Através dela a dupla não só mudou a caracterização dos personagens representativos de ambas raças, como lhes deu voz e corpo, sem torná-los estereótipos. Se antes o afro era apenas o marginal, o traficante, o assaltante e o caucasiano só trabalhador e gente honrada, a dupla Martins foge aos estereótipos com Selma. Ela é ao mesmo tempo empreendedora, produtora de eventos e criadora de arte (folder, fotografias, faixas). O que leva Marcos a se dividir entre o tráfico e o trabalho paralelo enquanto Selma continua uma esfinge. Entretanto é desta forma que se completam.

“Cara, você vive roubando o povo”

Não bastasse, eles são pilares centrais do aglomerado, pois são bem vistos pelos moradores, entre os quais circulam nas festas e bailes. Nenhum traficante, executor e vigilante de seu grupo foge às suas ordens. Nestas sutis caracterizações, o espectador custa a perceber o papel de Selma em articulações nada lícitas. Numa simbólica construção de poder enfeixado por ela, a dupla Martins constrói uma das criativas sequências deste “No Coração do Mundo”. O poder absoluto não se impõe apenas quando é masculino. “Cara, você vive roubando o povo!”, ela grita com Marcos, por ele por em risco a imagem de ambos com a comunidade.

É o tipo de estruturação narrativa que mais sugere do que explicita. Desde o início, quando nas primeiras sequências da festa de aniversário de Marcos, os Irmãos Martins são de uma linearidade exemplar. O leitmotiv (o fato detonador da ação) se dá com um tiro seco e se prolonga em lentos movimentos em várias sequências. É a construção dramática usada pelos dois para introduzir o espectador na história e ao mesmo tempo caracterizar os personagens. Com esta opção narrativa vão introduzindo personagens e cenários e situações. Mas não só isto, permitem ao espectador se situar nos cenários, ou seja, no populoso aglomerado.

O mais importante nestas construções dramáticas é o silencio imposto aos integrantes do tráfico e, ainda mais, aos executores de suas ordens. Num dos bares, em dado, instante, Beto acerca-se do irmão Miro (Robert Frank) num bar do aglomerado e lhe adverte: ”Eu não disse para você não vir para cá?!”. Sem estardalhaço para não chamar atenção dos espiões da polícia e dos inimigos do próprio tráfego. Tão sutil quanto a idosa e frágil mulher a caminhar em direção ao mesmo bar, onde Miro se encontrava, ainda que advertido por Beto. Ouve-se o seco disparo, seguido de silêncio.

Crime organizado impõe suas regras

São criativas e elogiáveis construções dramáticas feitas através de efeitos especiais. Há o silêncio e o estrondo, como se a bala explodisse ao entrar no corpo do executado. Isto sem preparar o expectador em cortes alternados para a vítima ou o executor. Mesmo assim cria expectativa ao mostrar a idosa senhora avançando em lentos passos. Daí o impacto causado pelo disparo, sem que a câmera mostre seu alvo. Não é mais a narrativa em si, mas sobre como a desenvolver e atrair o espectador para o que se desenrola na tela, exigindo dele mais do que atenção.

Guardada as devidas equivalências, é o que faz Alfred Hitchcok (1899/1880) na famosa sequência da tentativa de assassinato de uma autoridade em “O Homem Que sabia Demais (1956)”. Ele joga com o silêncio e a surpresa para aumentar as expectativas do público. A notícia da execução ao chegar a quem de direito o faz entender suas próprias falácias. Estas sequências do tema central deste “No Coração do Mundo” formam um círclo de vinganças. É quando o crime-organizado se vale de ardis para manter os moradores sob controle. E, além disso, não permitir que os seus controlados executem atos fora do determinado por ele.

Como o entende o espectador, as sequências do drama social mostram a mutação racial nos aglomerados não só de Contagem, mas de todas as metrópoles e grandes cidades do Brasil. Este é resultado da exploração neoliberal, adotada pela burguesia brasileira e agora mais do que nunca pela extrema direita no poder com Bolsonaro. E a presença do crime organizado é resultado do espaço encontrado para as articulações intramuros a envolver toda a estrutura penitenciária. A dupla Martins não entra na gênese do predomínio dele nos aglomerados de todo o país.

Papel de Selma no filme é nebuloso

Mesmo ao ampliar o tema central sem fugir à abordagem inicial, os espectadores entendem as intenções dos irmãos roteiristas/diretores. Notadamente quando da segunda para a terceira parte da história, pois a narrativa dividida em capítulos se funde à medida que avança para o desfecho.

Esta é a função da subtrama, sustentar o tema central. Se na primeira e segunda parte do filme o papel de Selma é nebuloso, na terceira tudo se esclarece. Cada personagem se mostra vítima não de seus erros, mas das circunstâncias impostas pelo sistema que o levou ao crime.

Daí emerge as razões das mudanças às quais se submetem Anna e Fernanda. Formam um quarteto com Selma e Marcos. Deste modo, os Irmãos Martins mesclam as subtramas e as variantes narrativas do tema central. O espectador vê-se diante de um thriller cuja tensão se eleva a cada segundo, deixando-o em suspensão. E com economia de meios narrativos, ágil montagem, ardis de filmes de suspense e interpretações minimalistas. O que impõe o sobressalto do espectador é o tempo versus espaço, combinado com o temor de serem pegos e trancafiados.

Não se deve esquecer o papel da iluminação num filme cuja atmosfera nunca se deixa esmaecer pela claridade demasiada. Em tons sépia. ela reforça a sensação do oculto, o proibido. o perigoso.

E a câmera é postada à distância para flagrar a ação, como se a resguardar o mistério. Mesmo quando o diretor de fotografia Leonardo Feliciano e os Irmãos Martins a aproximam é para reforçar a tensão do personagem e os momentos de real tensão e medo. Isto se dá nas sequências finais quando o quarteto se vê acossado e é obrigado a se defender para sobreviver a qualquer custo.

Grace Passô é a melhor atriz de cinema e teatro

Louve-se a capacidade de os Imãos Martins tratarem o drama social na primeira parte da história, mesclá-lo ao crime organizado na segunda e no desfecho transformar este ““No Coração do Mundo” num filme policial em altos decibéis. E ainda por cima deixar o espectador sem saber se os reais perseguidores são policiais infiltrados no Crime Organizado ou se os seus próprios comparsas obtiveram a informação por meios sub-reptícios. Gabriel e Maurílio nada informam, centram sua câmera em Selma por longo segundos. E, assim, dão conta do autocontrole dela em meio à perseguição.

Além de tudo, com show à parte desta genial Grace Passô (BH, 20/05/1940). Hoje, sem dúvida, a melhor atriz de teatro e cinema nacional. Nada ocorre ao acaso, este filme dos Irmãos Martins integra o renascimento do Cinema Mineiro, a partir de Contagem, cidade industrial com 603.048 habitantes (IBGE 2010). “No Coração do Mundo” segue a trilha aberta por Affonso Uchôa, diretor de “Vizinhança do Tigre (2014)” e “Arabia (2017)”, e Juliana Antunes diretora de “Baronesa(2018)”.

Ambos tratam de temas em imagens que contribuem para o espectador refletir sobre a realidade da periferia e dos proletários a vagar em busca de emprego de cidade em cidade. Deste modo ajudam a romper a mordaça imposta pelo direitismo-extremista-bolsonarista às artes nacionais. E fazem lembrar a resistência dos artistas às trevas da Ditadura Militar (1964/2005). Mas eles/as e suas artes, ao refletirem sobre a identidade brasileira, hão de resistir e com certeza as luzes triunfarão!

No Coração do Mundo. Drama Social/ Filme policial/thriller, Brasil. 2019. 120 minutos. Trilha Sonora: Herberte Almeida/Kim Gomes. Montagem: Gabriel Martins, Maurílio Martins, Guto Parente. Fotografia: Leonardo Feliciano. Roteiro/Direção: Gabriel Martins, Maurílio Martins. Elenco: Grace Passô, Kelly Crifer, Barbara Colen, Leo Pyrata, Renato Novaes, Robert Frank.

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