“Noel – Poeta da Vila”: Criador da MPB

Filme do brasileiro Ricardo von Steen traz para junto das novas gerações um pouco da vida daquele que é o criador da MPB moderna.

Das frases coloquiais, que reafirmam o cotidiano, ao fraseado dos instrumentos, a música de Noel Rosa (1910/1937) revolucionou a canção brasileira e deixou um legado que se estenderá ainda por muitos anos. Mas o compositor de Vila Isabel é muito mais do que suas composições. É um jeito de viver acelerado, muito antes desse estilo de vida ser adotado pela juventude dos anos 50 e 60, e que se tornou a marca registrada da geração pop. Teve a ajudá-lo o então nascente rádio, com seus programas de auditório e os cantores e compositores que gravitavam em seu interior. Como num retorno ao início do século XX, eles deixavam sua marca gravando suas canções em estúdios dominados pela tecnologia, dada ao design dos gravadores, microfones e instrumentos. Noel então é produto do veículo de comunicação que iria dominar a cena brasileira até o surgimento da televisão no final dos anos 40. Sem contar que numa época de grande ebulição no país, capitaneada pela Revolução de 30 e profundas mudanças em sua estrutura sócio-político-econômica.


                
É este Noel que o diretor Ricardo von Steen mostra em seu filme Noel – Poeta da Vila, intercalando canções, vivências e encontros com grandes nomes da MPB, como Cartola, Almirante, Francisco Alves, Wilson Batista, João de Barro e Araci de Almeida. Sem esquecer de traçar rápido perfil da convivência entre a malandragem, a polícia e os artistas, que freqüentavam delegacias com a mesma desenvoltura com que ocupavam mesas e balcões de bares e estúdios de rádio. Numa abertura que dá o clima da época, Steen apresenta Noel com livros de medicinas, violão e paletó caminhando pela rua, onde encontra aquele que seria um de seus amigos em sua curta vida: Ismael Silva (Flávio Bauraqui). E logo desvenda, de forma matreira, os truques do malandro. Estranham-se, mas daí nasce uma amizade que servirá para livrar Ismael das várias enrascadas em que entra.



Diretor mostra convivência entre malandragem e samba



Aliás, naqueles tempos os limites entre o samba e a malandragem eram tão estreitos, que não é de estranhar que perdure até hoje, retratados agora na convivência entre carnaval e jogo do bicho, para dizer o mínimo. O carnaval ocupa no filme espaço digno, pois nos anos 20 e 30, servia para dar status ao compositor que conseguia colocar uma marchinha sua na boca do povo, durante a Festa do Momo. É assim que Noel surge para o país, com a contribuição do rádio, principal ligação entre o artista e o povo. Ele, o rádio, é um dos principais personagens do filme, uma vez que é nos estúdios que se dá a vida dos artistas e, a partir daí, os transforma em ídolos. Tanto que seus auditórios era sua marca registrada, porquanto estar num de seus programas abria logo caminho para o sucesso. Ali eram lançadas as marchinhas que seriam sucesso no carnaval, como a que o lançou: Com que roupa.


 


Noel – Poeta da Vila traz grande contribuição às novas gerações não só para fazê-las conhecer o primeiro grande artista da iniciante MPB, como também lhes permite entrar em contato com um veículo cuja força se mantém até hoje. Não dá para esquecer A Era do Rádio, de Woody Allen, que o homenageia, como referência direta em sua formação. Noel Rosa, autor de cerca de 300 canções (sambas, marchas), entre elas “Camisa Listrada”, dominada pelo coloquial (Vesti uma camisa listrada e sai por aí), que mostra o descompromisso da juventude da época, muda a maneira de cantar, de compor e de se relacionar com a vida. Tudo deve ser urgente, viver cada minuto como se for o último, sem a preocupação de deixar um legado de vida, que sirva para as futuras gerações, com toda a polêmica que isto possa gerar. Com a diferença de que, se hoje a vida desbragada se configura na droga, em seu tempo eram as noitadas regadas à cachaça, a cerveja e, sobretudo, a sexo. Em meio a tudo isto sobrava tempo para compor belas e geniais canções (Feitiço da Vila, Último Desejo) em cadernos capa dura e se enrabichar por mulheres de vida regrada ou nem tanto.



Noel teve companhia de jovens criadores da MPB



Numa dessas noitadas, Noel encontra aquela que seria sua musa e, por que não, seu inferno: Ceci (Camila Pitanga). Dançarina de cabaré, bela, sensual, volúvel e com um tipo de comportamento desimpedido, desse que não se liga a ninguém, embora tenha alguém fixo; que ao estar distante, é trocado por outro. Noel cai de amores pela mulher que vê em desfiles de carnaval, em salão de dança, em bares e se vê preso a ela compulsivamente. Entre um encontro e outro, lhe sobra tempo para a mulher, Lindaura, jovem operária, a quem seduziu quando era menor de idade e com quem foi obrigado a casar mais por exigência da época, do que por convicções conjugais e necessidade de par. Noel era da noite, dos bares, dos estúdios e da roda de amigos. Dentre eles, todos jovens, Cartola, João de Barro, Henrique Brito, Ismael Silva e Almirante. Todos dotados de uma  elegância (camisa social, gravata, suspensórios, chapéu) que os torna mais sintonizados com o romantismo da época, do que com as profundas transformações porque passa então o país.



Um tempo em que compunham para sobreviver, sem profissionalismo algum, coisa que se via apenas no oportunismo do ídolo da moças de então: Francisco Alves, o Chico Alves. Em troca de seu nome como parceiro, ele comprava as músicas dos compositores e as levava ao rádio, onde viravam hits. Estas denúncias sutis, mostradas quase que como normais, são antepassados dos famosos jabás, tão comuns hoje nos meios musicais. E todos sobreviviam desta maneira. Quando Ceci intervém por Noel, Chico Alves faz troça, mal acreditando na mudança de comportamento do parceiro (sic) – a brincadeira que este faz, atesta o quanto de espertalhão havia nele. Steen, embora não o esconda, termina por deslindar os meandros das relações entre cantores e compositores na incipiente indústria musical brasileira.



Filme é narrado em tom farsesco e musical



O filme narrado em tom farsesco, como se aqueles jovens criadores da MPB levassem tudo na “manha”, dedica parte de sua duração à vida familiar de Noel Rosa. Das estripulias de seu pai, Carlos (Ruy Rezende), inventor de aparelhos impensáveis, como patins com luzes piscantes ou bicicleta aquática, à tentativa de ele, Noel, conciliar sua boemia e vida de compositor com a de estudante de Medicina. Suas caminhadas para a faculdade são simbólicas. Há sempre um grande muro a impedir seu avanço, ou uma poça d´água que, para ser ultrapassada, precisa de verdadeiro malambarismo. Desnecessário dizer que sua carreira de médico foi apenas uma intenção familiar, nada que o fizesse pender entre a ciência e a arte. Ficou com a arte. Uma arte que o fez conviver com a ameaça da doença fatal de sua época: a tuberculose. Ele oscila então entre entregar-se a ela ou dar-se à vida que o fazia viver tudo com urgência.



Às vezes, ele dá idéia de que prefere a vida de fato, a permanência entre os amigos e Ceci. Noutras, dá a entender que sabe ser a partida em breve uma necessidade. Ainda que viva sua paixão por Ceci entre máscaras, que impedem a transmissão da doença. Ou se deixe levar para Minas Gerais, aonde iria se recuperar, ou para Petrópolis por um breve período, pois dali se evade. Não para recolher-se à sua casa, seguindo recomendações médicas, mas para mergulhar na boemia e viver às turras com as mulheres que o envolvem e cativam. Duas mulheres fortes, exclusivistas, que, ao menor sinal de traição, o esbofeteiam. Mostra-se frágil, entregue a uma vivência em que sobra pouco tempo para escapar ao triângulo: música, boêmia e paixão. Uma vida de classe média, sem perspectivas de ir além desse círculo, caso não convivesse com outros gênios de segmentos mais explorados. Negros principalmente. Casos de Cartola e Ismael Silva. Cartola (Jonathan Haagensen), de quem o casebre no moro rende uma das melhores cenas do filme, que remete a “Dona Flor e Seus Dois Maridos”, de Bruno Barreto, o leva pelo morro ainda desabitado.



Depois de tremenda bebedeira, ele e Noel sobem o morro e são recepcionados por dona Zica. Ela os banha e acaba os três dormindo na mesma cama; ela agarrada a Cartola, Noel de costas para ambos. Fatos como esses reforçam a idéia de que foi esta convivência que lhe ampliou a visão da vida urbana, da necessidade de produzir uma arte mais colada ao cotidiano simples. Precisaria uma análise detalhada de suas músicas para confirmar esta análise. O filme não o permite; traça seu perfil e, com algumas músicas, faz o público mergulhar numa época, tomada pelo romantismo, mas que prenunciava a complexidade que o país vive hoje. Um olhar de Steen sobre os fatos políticos da época permitira maior compreensão do fenômeno Noel Rosa, produto que foi dos ebulitivos anos 20 e 30, da Semana de Arte Moderna, do Tenentismo, do surgimento do movimento marxista-leninista, do sindicalismo e, notadamente, da Revolução de 30. Tudo isto o produziu.



O filme, porém, se ateve à breve vida, apenas 26 anos, do compositor que abriu as portas para a MPB dos anos 60, com Chico Buarque à frente. Não é pouco. “Noel – Poeta da Vila” emociona, faz rir, sentir saudade dos velhos carnavais, dos blocos na rua e das marchinhas, que falavam de dor-de-cotovelo, da carestia e troçavam de tudo e de todos e não se articulavam para turista ver. O filme tem, além disso,  a presença de dois intérpretes que conseguem transmitir a complexidade que os personagens exigem: Rafael Raposo, como Noel, e Camila Pitanga, como Ceci. Quando estão em cena o filme cresce, se amplia, ela envolvente, ele frágil, ambos dominam a cena e mergulham o público num frenesi difícil de escapar. Fica-se com a sensação de que sintetizam aquilo que se perdeu com o passar dos anos: a vida vivida com urgência. Mas sem as superficialidades e o consumismo que a torna quase inútil.



“Noel – Poeta da Vila”. Drama-musical, Brasil, 2006, 99 minutos. Direção: Ricardo von Steen. Elenco: Rafael Raposo, Camila Pitanga, Paulo César Pereio, Jonathan Haagensen, Flávio Bauraqui.

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