Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos

 Este texto é uma reflexão que foi redigida após debate sobre violência racial, promovido pelo Geledés instituto da Mulher Negra, com a participação de Mano Brown, Netinho de Paula, Hamilton Borges, e Luis Inácio na Câmara Municipal de São Paulo.

 Para expressar minhas opiniões sobre a questão da violência racial, vou partir de um lugar que é, estar na condição de um jovem negro, bacharel e pós doutorado em “Sobrevivência” na Universidade da “Vida” na periferia suburbana da cidade de São Paulo, morador da Cidade Tiradentes, extremo leste, considerado o maior conjunto habitacional da América Latina.

Primogênito de cinco irmãos dentre os quais duas mulheres, filho de retirantes nordestinos e bisneto de escravizados africanos com indígenas, pai de três filhos com a mesma companheira, sendo uma criança e dois pré-adolescentes. Sendo assim, não seria difícil assumir tranquilamente a responsabilidade a mim atribuída.

A mais de 100 anos, no momento pós-abolição, o projeto político do setor hegemônico da sociedade destina-se a exterminar a população negra. Para entender este horrível contexto não é necessário muita leitura, basta observar os projetos implementados, bem arquitetados para a promoção de várias formas de genocídio. A começar pelo genocídio de condição, passando pelo ideológico e político, o genocídio da mobilidade, genocídio de nossas capacidades expressivas e culturais, genocídio de nossas subjetividades, físico e mental, entre muitas outras.

Uma vez que nossos ancestrais não vieram a convite do império português, muito menos vieram na janelinha e nem trazendo bagagens, pelo contrário, foram arrancados violentamente de suas terras, tratados como coisas ou animais, e ainda assim resistiram a escravização desumana, e para nós, nada está perdido.

Na ocasião da luta dos nossos ancestrais muito sangue foi derramado, e, ao contrário do que muitos pensam, houve muita resistência, batalhas e conquistas por inúmer@s heróis e heroínas, guerreir@s que se tornaram nossas referências negras e lideranças natas. Líderes de muito crédito popular, sendo alguns; Ganga Zumba, Zumbi, Luiza Mahin, João Candido, Luis Gama, Preto Ghóes, Sabotage, entre vários que se foram nas trincheiras. Hoje, temos centenas de lideranças atuando na militância, e eu não tenho dúvidas que o ativismo do movimento negro e do hip-hop são determinantes neste processo de luta e resistência.

Desta forma, eu não posso jamais admitir a ideia de que algum outro movimento que não tenha o caráter político e ideológico como esses dois, pudesse desconsiderar todo o sangue derramado em 500 anos para chegarmos aonde chegamos. Que, indubitavelmente, ainda esta longe do ideal.

Entretanto, muito se sabe que as nossas crianças, meninos e meninas, assim como os meus filhos e vários jovens negros e negras das quebradas, favelas e vielas, morros e asfaltos, incomodarão muito mais, ocupando as nossas cotas nas cadeiras universitárias do que sendo humilhados diariamente em fundações de reabilitação, como a Fundação Casa (ex-febem). Em filas indianas de cabeças baixas, mãos para trás, submetidos à disciplinas desmoralizantes e comendo o pão que a DenadaI amassou a troco de que??? Sextas-básicas ou um “Pisante-Nike”, “Peita da Écko” e “Lupa Bauchilon???", "A gente não quer só comida," o nosso povo também tem fome de dignidade, o assistencialismo seja ele qual for, também contribui para o nosso genocídio homeopático.

Enquanto isso o hip-hop cresce e intervenciona, sem promessas de salvação, e quando não é assediado incomoda! Vocês sabem porque? Eu sei! E por incrível que pareça os que sempre foram nossos algozes também sabem a resposta!

É porque ele "não agrada o injusto e não amarela" na missão, eles sabem que o hip-hop ameaça o status quo e os seus dias de glória e fartura. E faz tudo isso sem precisar do uso de recursos bélicos, através das ondas sonoras, ativismo, informa-ação e comunicação, codificados de uma forma que somente entende quem naturalmente vivencia e se apropria desses códigos. Estes promovem identificações mútuas e coletivas através do valor estético que contrapõe o modelo padrão eurocêntrico, ocidentalizado e unilateral. E tudo isso representa o poder.

O hip-hop é uma alternaiva concreta de significação simbólica, na defesa dos direitos, na condução à autonomia crítica, na construção de conhecimento, no reconhecimento e assimilação de identidades de jovens negras e negros periféricos na reivenção da África, nesse contexto da diáspora negra.

O hip-hop é uma cultura afrodiaspórica contemporânea que possue o maior número de adéptos no mundo, segundo a revista norte americana "Yés". Este movimento evolui e se adapta à toda e qualquer realidade geográfica existente no planeta. Sendo um importante instrumento para reivindicação de direitos em inúmeros movimentos de resistência, frente a todo e qualquer poder hegemonico. Sua capacidade de hibridês é uma habilidade importante, que faz com que o hip-hop trabalhe a informação sem ser uma CNN, promova a educação sem ser uma teoria educativo-metodológica, politiza sem ser um partido político, liberta sem precisar de chaves. O hip-hop faz dançar, desenhar, pintar, criar, recriar, e auxilia na elaboração de estratégias de intervenção da realidade naturalizada. O hip-hop é uma alternaiva concreta de significação simbólica, na defesa dos direitos, na condução à autonomia crítica, na construção de conhecimento, no reconhecimento e assimilação de identidade de jovens negras e negros periféricos na reivenção da África, nesse contexto da diáspora negra.

O hip-hop festeja discotecando para os amantes da boa música, transforma vinil em peças raras circulantes nos museus de cada quebrada. Resignifica valores, tradições, estabelece tréguas entre etnias, religiões e culturas, interfere na relação do estado com a sociedade civil, contrariando as estatisticas e se posicionando na contramão de toda forma de manipulação da alma, do corpo, e da mente. O hip-hop apresentou a mim, quem realmente sou, o que posso e onde devo chegar. Me fez refletir sobre identidade, filosofia, diversidade, linguagem, subjetividade, coletividade, tecnologia e revolução.

Após toda essa defesa ao hip-hop, eu acredito, de fato, que as nossas melhores armas ainda são o microfone, a caneta e papel, os sons das pick-ups, a dança e as pinturas muralísticas através dos sprays e uma mente muito bem articulada. Pois “os “Nossos motivos pra lutar ainda são os mesmos” (Racionais Mc's), e é por isso que no dia em que eu suspeitar de que realmente a força possa ser a única saída, eu aposento o microfone.

As opiniões expostas neste artigo não refletem necessariamente a opinião do Portal Vermelho
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