Novo jeito de governar privado, corrupto e repressor
Em novembro de 2006, logo após a eleição de Yeda Crusius para o governo do Rio Grande do Sul, no artigo “Neoliberalismo travestido de federalismo”, argumentei que na conjuntura mundial de ascensão do neoliberalismo, a partir dos governos de Fernando Collo
Publicado 25/06/2008 21:53
Coloquei também que nos últimos anos, integradas em siglas partidárias distintas, as classes dominantes regionais têm se aliado à lógica do imperialismo neoliberal. Esta frente, coordenada na Avenida Paulista pelo poder econômico dos grandes bancos e indústrias, tendo como núcleo partidário a aliança PSDB-PFL foi vitoriosa no Rio Grande do Sul, elegendo para governar o estado Yeda Crusius, deputada federal tucana, e Paulo Afonso Feijó, líder comercial e quadro do neoliberalismo no Rio Grande do Sul.
Na ocasião, Feijó produziu um discurso, em nome das entidades empresariais, se colocando “na luta contra os atos opressivos governamentais”. Argumentou que as Instituições estavam “trabalhando, há tempo, em ação coordenada, na busca de uma força sinérgica para poder competir em pé de igualdade com a mão invisível dos governos e forças públicas”, única maneira que julgavam “eficiente para se tentar reduzir o gigantismo estatal e o seu alto grau de intervencionismo na esfera privada”. Dessa forma, defendiam “um Estado mais enxuto, fora dos afazeres privados, voltado às suas funções clássicas e básicas, quais sejam, assegurar os direitos à vida, à liberdade e à propriedade privada, princípios acima de qualquer ideologia ou partido político (sic)”.
Iniciado o segundo turno no Rio Grande do Sul, na disputa entre Olívio Dutra-Jussara Cony contra Yeda Crusius-Paulo Feijó, veio à tona a defesa da privatização do Banco do Estado do Rio Grande do Sul (Banrisul), defendido por Feijó em discurso quando tomou posse na presidência da Federasul, em 2004.
De imediato, o vice-candidato do PFL foi retirado da linha de frente da campanha, suas manifestações passaram a ser controladas e, logo, passou a desmentir ou esconder sua opção privatizante.
Em dezembro de 2005, antes ainda de assumir o governo, quando propôs medidas que contemplavam aumento de impostos, houve a primeira dissidência entre a governadora e o vice-governador eleito. Derrotada na Assembléia Legislativa (Feijó mobilizou o empresariado gaúcho contra as medidas), Yeda Crusius chegou, em fato peculiar na política, a perder secretários antes mesmo de tomar posse.
Iniciado o governo em 2006, o novo jeito de governar, plataforma de campanha, começou a mostrar a sua velha face neoliberal: venda de ações do Banrisul através de processo de privatização travestida de capitalização, a exemplo do que já fora feito com o Banespa em São Paulo.
Porém, a verdadeira face da investida neoliberal logo se apresentaria no Rio Grande do Sul. Não basta a privatização do Estado; este processo tem vindo acompanhado de corrupção e repressão, sobretudo com a criminalização dos movimentos sociais que resistem a esta política de desmonte.
No primeiro caso, as denúncias do Ministério Público e da Polícia Federal, iniciada com a Operação Rodin em novembro de 2007, demonstraram as articulações entre as Fundações Privadas de Apoio (Fatec e Fundae) ligadas a Universidade Federal de Santa Maria, empresas sistemistas e a direção do Detran-RS, num super-esquema de desvio de recursos públicos que envolveria em torno de 44 milhões de reais.[1] Esta operação motivou de imediato a abertura da CPI do Detran na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Iniciadas as argüições e aprofundadas as investigações, foi demonstrando-se a ligação direta entre os denunciados e integrantes do governo estadual e pessoais muito próximas a governadora Yeda Crusius.
O resultado foi a queda do núcleo central de apoio ao Governo Estadual, entre eles o Chefe da Casa Civil César Busatto, o Secretário-Geral de governo Delson Martini e o Secretário de Planejamento e Gestão Ariosto Culau,[2] depois de quatro meses e trinta e uma sessões da CPI, na fase de depoimentos da Comissão Parlamentar de Inquérito.
As denúncias envolvendo o governo do Rio Grande do Sul mostraram o caminho único do novo jeito de governar no Rio Grande do Sul: a privatização e a terceirização do Estado.
Porém, para restabelecer a governabilidade da classe dominante, as medidas de Yeda foram imediatas: a recomposição do governo nos partidos da base aliada (PSDB, PMDB, PP, PPS e PTB), alicerçada no empresariado gaúcho (FIERGS e Federasul) através de um “Gabinete de Transição”.
As denúncias de corrupção e a crise instalada no centro do governo de Yeda Crusisus bastaram para que o movimento social gaúcho voltasse às ruas e colocando em xeque a opção neoliberal de governar.
Com a retomada das manifestações públicas, tendo a frente estudantes, sindicalistas, Via Campesina, MST, Movimento de Luta pela Moradia e partidos políticos de oposição, entre outros movimentos, a solução dada pela governadora foi colocar no Comando da Brigada Militar o coronel Paulo Roberto Mendes,[3] numa clara demonstração de aprofundar a opção pelo confronto e pela criminalização dos movimentos sociais, tendo atrás de si o surrado discurso da manutenção da lei e da ordem.
Tanto que nem bem assumiu, o coronel Mendes comandou pessoalmente a repressão à Marcha que se manifestava em Porto Alegre, em 11 de junho passado, sobre as recentes denúncias contra o governo gaúcho, a alta dos alimentos e os privilégios concedidos a setores do agro negócio e da celulose.[4] O resultado foram onze manifestantes presos e dezessete feridos.
(Foto: Gab Dep Dionilso Marcon)
Questionada pelos movimentos sociais e pela oposição, a governadora justificou a ação e reforçou a opinião de seu comandante diante das manifestações sociais e das “abordagens” feitas pela Brigada Militar,[5] principalmente contra a população pobre.
Aqui, a repressão fecha o tripé da lógica neoliberal de governar, complementada pela privatização e pela corrupção, até agora a única alternativa apresentada pelas classes dominantes brasileiras, alicerçada na aliança partidária PSDB-DEM, construída no Rio Grande do Sul pela dupla Yeda Crusius – Paulo Afonso Feijó.
Cabe aos movimentos sociais e políticos denunciar em nível nacional o que acontece nos “pampas”, pois aqui se aprofunda uma perspectiva e uma estratégia já vinda de longa data e exercida em especial pela grande imprensa e seu viés golpista: diante da crise de hegemonia dos partidos burgueses ela exerce seu papel de “partido do capital”, confirmando a tese de do comunista italiano Antonio Gramsci, indicando, sobretudo a criminalização dos movimentos sociais, seja pelas “notícias” e “informações”, seja por conteúdos da teledramaturgia ou por “pesquisas de opinião”.
Uma das “pesquisas” mais recentes veio do Ibope, singularmente encomendada pela mineradora Vale e apresentada com o sugestivo título de “O que o brasileiro pensa dos movimentos sociais”. Nela, o MST, marca da luta pela reforma agrária no Brasil, passou a ser símbolo da violência, enquanto que os movimentos sociais, numa pergunta capciosa, estariam prejudicando a economia, manipulando a população e gerando conflito, sendo organizações “plantadas de cima para baixo” e se aproximando da criminalidade.[6]
A orquestração da criminalização dos movimentos sociais se amplia cotidianamente, lembrando muito em seu conteúdo o discurso golpista do pré-1964, tanto que em jornal de grande circulação no Rio Grande do Sul, em espaço para cartas dos leitores, a pergunta colocada foi: “Qual a sua opinião sobre a mudança de comportamento da Brigada Militar quanto às manifestações?”. Em uma das respostas dos leitores, foi dito que “a Brigada Militar deve exercer o papel de manter a ordem. O cidadão deve ter a liberdade de manifestar-se. Mas muitos movimentos são políticos e baderneiros, com outras intenções, e nesse caso o Estado deve agir e manter a ordem, sim”. Em outra carta, o leitor argumentou que “nosso sistema político delega aos eleitos a condição de nossos procuradores para atender as nossas necessidades. Então, definitivamente, não necessitamos de movimentos sociais”.[7]
Estas opiniões que fazem coro a onda reacionária esquecem a legitimidade dos movimentos e que eles são conseqüências dos problemas e demandas sociais. Esquecem que no chamado Estado de Direito, mesmo o burguês, expressam o direito da livre manifestação. Omitem que a tática a qualquer custo da “manutenção da lei e da ordem” em uma realidade socialmente desigual só poderá manter a velha máxima capitalista de tratar a questão social como caso de polícia. Também encobrem aquilo que Karl Marx já dizia no século 19, em A miséria da filosofia, que todo movimento social é um movimento político.
Por fim, mesmo se a questão passasse apenas pelos nossos eleitos, a manifestação do deputado estadual pelo PCdoB do Rio Grande do Sul apresentou a resposta que deve ser dada em defesa dos movimentos sociais, repudiando com veemência na tribuna da Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, em 11 de junho, a repressão policial aos movimentos sociais durante protesto contra a corrupção no Governo Yeda: “Não existe Estado de sítio no Rio Grande do Sul e neste episódio a Constituição foi rasgada no estado. O povo têm direito de manifestar-se. (…) o que estamos vendo é a criminalização dos movimentos sociais. (…) Essa estréia do coronel Mendes está com a síndrome da 'Tropa de Elite', que solta os criminosos e entende que deve reprimir os movimentos sociais”.[8]
Diante deste quadro é preciso aprender com o processo histórico. Não basta apenas o discurso pequeno burguês sobre a ética na política. Hegemonicamente o “Fora Collor” teve esse norte e com o impedimento do presidente as classes dominantes rearticularam-se para levar adiante o seu projeto: de desmonte do Estado através da ofensiva neoliberal. Elas têm sido hábeis para desvincular a corrupção e a repressão de seu projeto, em especial com a instrumentalização da mídia, “blindando” seus defensores e executores.
Por isso, para os gaúchos, não basta retirar Yeda da frente do governo, tendo um Feijó privatista para assumir, como não foi suficiente retirar Collor se FHC aprofundou o seu projeto.
No caso do Rio Grande do Sul atual, bem como para todo o País, os movimentos sociais e políticos, além de lutar pela sua descriminalização e suas pautas, devem saber vincular: a ofensiva neoliberal não tem outro caminho para levar adiante o seu projeto de privatização senão pela corrupção e pela repressão.
Notas
[1] Em dezembro de 2007, no artigo “Repressão e fundações nos campi: polícia para quem precisa”, também publicado no Portal Vermelho, escrevi: “(…) Além das bolsas oriundas de projetos, muitos deles de duvidoso sentido público, as instituições públicas de ensino superior passaram a utilizar as fundações de apoio como canal para a privatização dos espaços e projetos universitários, bem como, agora se percebe bem, também como vias de desvios de recursos públicos. (…) A ofensiva neoliberal possibilitou que, especialmente, através destas fundações, se aprofundasse a privatização das universidades públicas brasileiras, nas quais os interesses privados de corporações nacionais e multinacionais chegam a “lotear” laboratórios de pesquisa para seus fins particulares. (…).
[2] No caso de Busatto, sua queda se deu pela gravação divulgada pelo Vice-Governador Paulo Feijó, quando aquele tentava convencer este para a recomposição do governo, ao mesmo tempo em que argumentava a utilização histórica de recursos de estatais para o financiamento de campanha; Martini caiu por seu nome aparecer citado em várias gravações feitas pela Polícia Federal e divulgadas publicamente; já Culau foi flagrado, durante o desenrolar da crise, tomando chope em shopping center com Lair Ferst, do diretório do PSDB gaúcho, arrecadador de campanha da chapa que venceu as eleições para governador e um dos principais suspeitos da fraude no Detran. Com estes três, caíram também Marcelo Cavalcante, assessor do Governo em Brasília, e Nilson Nobre Bueno, comandante geral da Brigada, a Polícia Militar do Rio Grande do Sul.
[3] Paulo Roberto Mendes, escolhido diretamente pela governadora, que o orientou e dele exige a manutenção da “paz social” a ferro e fogo, reprimindo as manifestações populares, em especial aquelas que protestem contra o desgoverno gaúcho. Como subcomandante da Brigada Militar, o coronel Mendes notabilizou-se por comandar a repressão a protestos de professores e agricultores sem-terra no Estado. Nos últimos meses, quando houve alguma manifestação de protesto ou ação de movimentos sociais, a governadora acionou o coronel Mendes para a repressão imediata. Nos últimos meses, o coronel comandou ações de repressão violentas da Brigada em uma manifestação de professores no Centro Administrativo do Estado, na ocupação da fazenda da Stora Enso, em Rosário do Sul, na destruição de um acampamento de sem-terra em São Gabriel, entre outras ações. Defensor da pena de morte, o coronel Mendes é autor da frase: “Não tem jeito, tem que ir pro paredão”. Em 2007, Mendes defendeu que a população deveria reagir a assaltos, contrariando a orientação da polícia para situações deste tipo. No mesmo ano, durante um debate televisivo, abordou-se o caso de um pedreiro morto pela polícia em Gravataí. Segundo a família, ele foi confundido com um assaltante e acabou morrendo em razão de surra que levou após ser preso. O comentário do coronel: “Às vezes, se preocupam com uma eventual pessoa que a polícia tenha matado”. Cf. estas informações, feitas pelo jornalista Marco Aurélio Weisheimer em seu blog, em “Agora é no paredão” (Grifos do autor). In. http://www.rsurgente.net/2008/06/agora-no-paredo.html.
[4] A marcha organizada pro trabalhadores rurais e urbanos, com a participação dos estudantes, teve a participação, entre outros, dos seguintes movimentos sociais: Comissão Pastoral da Terra – CPT, Federação dos Trabalhadores da Indústria da Alimentação do Rio Grande do Sul, Federação dos Trabalhadores Metalúrgicos do Rio Grande do Sul, Levante popular da Juventude, Movimento dos Atingidos por Barragens – MAB, Movimento das Mulheres Camponesas – MMC, Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis – MNCR, Movimento dos Pequenos Agricultores – MPA, Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra – MST, Movimento dos Trabalhadores Desempregados – MTD, Pastoral da Juventude Rural – PJR e Resistência Popular.
[5] Consultado sobre a forma como irá atuar, logo após assumir o Comando da Brigada Militar, Paulo Roberto Mendes falou em abordagem 16 vezes: “Desde janeiro do ano passado, eu digo: abordagem, abordagem, abordagem”. Ver “Mendes reforçará abordagens”, matéria de Carlos Etchichury. In. http://zerohora.clicrbs.com.br/zerohora/jsp/default2.jsp?uf=1&local=1&source=a1971105.xml&template=3898.dwt&edition=10062§ion=69.
[6] Ver a “pesquisa” publicada em O Globo, na edição de 15 de junho de 2008, p. 14, com o sugestivo título “Ibope: MST é visto como sinônimo da violência. Para 60% dos entrevistados, movimentos se aproximam da criminalidade e prejudicam a economia do País”.
[7] Ver Zero Hora, edição de 21 de junho de 2008, p. 2.
[8] Sobre a manifestação de Raul Carrion ver a matéria “Carrion repudia a repressão policial em manifestação na capital”, assinada por Isabela Soares. In. http://www.vermelho.org.br/base.asp?texto=38695