O Anjo (ou: E assim herdamos a Terra…)

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“Onde tudo possa
e o que valha reste.
Que lugar seja
que o sol arrase.
Que a luz não chegue
E o mar arraste.
Onde o amor aporte
e o mal se baste”

– assim dispôs o Anjo sobre o chão de seu exílio.

O Senhor o abatera em mortal combate.
Decaído, degradado,
assumiu o posto de casual deidade
e deitou-se manso, descansado,
por sobre razões e iniquidades.

Gotejaram-se os anos.

Farto de eternidade,
o Anjo deixou sua morada
por sob os pés da humanidade,
e saiu a distribuir bocados de sua dor
e a ofertar a outra face.

Foram tempos de remansos e de guerras,
e de idílios e paixões que das entranhas nascem;
e foram estações de fartura e de penúria,
de corações em fúria,
de corpos crucificados,
e também de pequenas amenidades.

Até que um dia,
farto de humanidade,
o Anjo foi ter com Deus
em sua suprema vanidade.

Encarou-o e disse:

“Que vergonha é essa a que chamaste verdade?
Onde encontraste tanta soberba para criar tamanha nulidade?
O que és afinal, senão retrato da mais pura vaidade?

Desisto de mim.
Serei estrela que tanto se lhe dá o denso ou a vaguidade.
E serei céu, sempre que terra me faltar.
E pairarei sobre as águas da etérea insanidade
até que todas as maçãs apodreçam
e não sobre memória e posteridade”.

Dito isso, desfez-se o Anjo.

E Deus, triste,
despachou-se para o Olimpo,
ou pro Valhala,
ou para o Eden,
ou pro raio que nos parta,
onde depositou suas imortais necessidades
e faleceu.

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