O caminho chinês para a democracia

Concomitante com seu extraordinário desenvolvimento econômico e o rejuvenescimento da mais antiga civilização do planeta, a democracia emerge como questão na China com respostas empiricamente comprovadas tanto pelos avanços verificados na última década qu

Da mesma forma que a democracia moderna ocidental, para a qual Revolução Francesa foi seu estertor primário, passou por décadas para se tornar algo acabado com a separação dos três poderes e o sufrágio universal, a moderna democracia chinesa sob orientação socialista também é algo em processo e assentada em suas características nacionais, milenares e experiências seculares de democracia no nível da aldeia e da recente emancipação – anterior aos EUA – das mulheres e minorias étnicas logo após a chegada ao poder do PCCh em 1949.


 


 



Democracia e pequena produção mercantil


 


 


Antes de tomarmos como valor universal categorias historicamente concebidas ou ficarmos na defensiva sempre que algum interlocutor nos desfira uma assertiva que nos peça para relacionar socialismo com democracia, ou antes de tomarmos o marxismo como ferramenta para justificar generalizações a-históricas, acredito que a utilização da categoria de formação social é a pedra angular para qualquer busca de respostas que demandem um olhar mais de fundo sobre determinada realidade. Pois é na formação social que se realiza o concreto, afinal a formação social é o próprio concreto que deve ser investigado como síntese das múltiplas determinações.


 


Assim não é difícil de perceber que a cristalização atual de uma “democracia com características chinesas” trás em seu conteúdo fortes elementos de sua formação social, ou melhor dizendo, uma democracia de base, camponesa e típica das formações sociais que vivenciaram o desenvolvimento da pequena produção mercantil, entre elas o nordeste norte-americano (1) e as tribos germânicas da Prússia Ocidental.


 


São regiões do globo em que a servidão em grande escala deu lugar ao surgimento de pequenos produtores voltados à satisfação do mercado, cuja vida, seja nas terras comunais da gleba, seja no dia-a-dia do trabalho coletivo de irrigação das terras para plantio do arroz – ou mesmo na consecução de tarefas como o da construção de diques e barragens – precocemente arraigou o ambiente de um sentimento democrático e participativo.


 


Importante notar que o lema da Revolução Francesa (Igualdade, Liberdade e Fraternidade) são palavras de ordem surgidas no seio da pequena produção em vias de se tornar capitalismo maduro e os chineses, ao contrário dos russos, nunca experimentaram o regime de servidão, pois sempre foram agricultores livres.


 



Comparação histórica e noção milenar de democracia


 


Amparada pelo surgimento de filosofias do porte do taoísmo e do confucionismo e do surgimento de uma divisão social do trabalho desde o âmbito nacional até o nível da aldeia, muito cedo, há milhares de anos as massas populares chinesas imbuíram-se de um sentimento de direitos e deveres típico das sociedades civis mais organizadas do mundo contemporâneo. Expressão deste avanço são os fatos de o Estado Nacional chinês ter se unificado há 2.500 anos e o instituto do concurso público para acesso à burocracia estatal na China existir há 1.500.


 


Como sinal decadente dos tempos que vivemos, invasões como a do Iraque ocorrem sob o pretexto de implantar “democracias”. Democracias muitas vezes existentes somente em documentos escritos em salas fechadas por oficiais vitoriosos e súditos internos.


 


Isso posto, num exercício puramente histórico é interessante a observação de Pearl Buck feita em palestra nos EUA no ano de 1948, intitulada “A Terra e o Povo na China” (2), para quem:


 


“A democracia chinesa não nasceu nas salas de reuniões onde os oficiais vitoriosos e os líderes encontravam-se a fim de formar um governo para o povo. Ela foi construída pelo próprio povo vivendo na terra. É a democracia da família, paternal em sua herança, maternal em sua responsabilidade de provar o bem estar do membro mais insignificante da grande família antiga, bem instruída. Esta democracia existe em nossos dias, talvez ignorada, mas ainda vivendo à espera de ser reconhecida”.


 


Ainda num olhar mirado sobre a formação social chinesa, percebemos nela uma profunda e absoluta noção de democracia. Como expressões desta noção é mister citar a chamada cultura de rebeldia voltada contra soberanos que, apesar de serem designados pelos céus, tinham mandatos revogáveis pelo povo; a universalidade dos exames para admissão no serviço público; e o fato de as honrarias e os títulos não serem hereditários como na Inglaterra.


 


Da noção de democracia arraigada por milênios podem se tirar episódios cíclicos de surtos de radicalização democrática no país em períodos de derrubada de dinastias corruptas e durante a trágica Revolução Cultural (1966-1976), onde a anarquia típica do ideário taoísta varreu a nação por longos anos sempre seguida por uma confuciana “ordem na casa”, como a implementação da política de Reforma e Abertura desde 1978.


 



A retomada da experiência de base no nível da aldeia


 


A constituição de um moderno Estado socialista regido por uma democracia é produto na China atual das demandas populares surgidas na esteira de três décadas de desenvolvimento rápido e é caracterizada por pelo menos duas características: 1) a retomada das experiências de democracia no nível da aldeia com a implementação de eleições periódicas para chefes de aldeia com a participação de mais de 700 milhões de pessoas e 2) como parte de um todo que envolve a consolidação de um Estado de Direito em contraposição a um Estado autocrático e caracterizado pelo culto à personalidade de um líder infalível, culto este muito caro a alguns partidos leninistas dentro e fora do poder.


 


A retomada das experiências democráticas rurais na China foi instituída como lei no ano de 1997, tendo ocorrido a primeira experiência em 1998 com a participação naquele pleito de mais de 800 milhões de camponeses que tiveram de escolher seus chefes de aldeia entre candidatos comunistas e não-comunistas (3). Ficaram notórios os elogios feitos pelo próprio Jimmy Carter ao conferir pessoalmente tal processo em nome de Fundação que leva o próprio nome.


 


A tarefa da chefia eleita é coordenar os negócios da aldeia por um determinado período de tempo. Sua posição é passiva de impeachment, assim como os próprios deputados que chegam à Assembléia Nacional Popular pela via congressual (voto indireto) cujas lideranças despontam neste simples processo de eleição na aldeia (4). Estrategicamente podemos supor que dadas as tarefas permitidas no âmbito da aldeia (compra e venda de máquinas, quanto se vai produzir pra próprio consumo ou mercado etc), a tão sonhada “auto-gestão da produção” na China caminha a passos regulares no interior do país.


 


O rumo, mesmo que lento, deste processo no rumo da “auto-gestão” é facilitado por um processo eleitoral onde o poder econômico – típico das democracias ocidentais – perde sentido pela inexistência de propriedade privada da terra e dos meios de produção (máquinas, tratores etc.). Tanto a terra quanto os meios de produção pertencem à aldeia.


 



Democracia contra a corrupção


 


Curioso mesmo é perceber que os caracteres chineses para democracia (minzhu) foram amplamente utilizados durante a apresentação do informe ao 17° Congresso do PCCh por Hu Jintao: exatamente por 64 vezes (5) e com dois sentidos intercalados: 1) ampliação do poder popular com a extensão às zonas urbanas das experiências aldeãs de democracia como forma de:  2) Exercitar o poder e assimilação da burocracia do Estado para fins de maior acessibilidade aos serviços inerentes a ele.


 


Já a essência do discurso de Hu Jintao está na busca incessante de ampliação da base de apoio do PCCh fora do PCCh com o intuito de emular as novas energias pulsantes por um lado em uma sociedade civil que nos próximos anos será a expressão de uma classe média de cerca de 400 milhões de habitantes e por outro, numa candente base camponesa que ora se levanta em favor de seus interesses e em contraposição a uma série de contradições sociais advindas do atual processo de desenvolvimento em curso.


 


Portanto, partindo de uma análise particular, se no plano estratégico vemos os primeiros passos no rumo de uma sociedade socialista ampla, aberta e civilizada, no plano imediato é perceptível que a democracia não é somente produto histórico de um estágio de desenvolvimento da sociedade chinesa moderna e sim uma arma a ser utilizada contra a principal praga da sociedade chinesa atual: a corrupção. Historicamente na China, a disseminação da corrupção foi a maior demonstração de decadência de uma determinada dinastia que tornara-se incapaz à levar em frente suas tarefas de construção de diques e barragens para a proteção contra as cíclicas enchentes que assolavam e assolam a China.


 


Se a história serve para iluminar o futuro nada mais correta que esta sinalização do 17° Congresso do PCCh.


 



Própria forma


 


É conveniente encerrar esta rápida análise com uma passagem que serve para ir de encontro ao senso comum da democracia como valor universal e da superioridade do poder constituído nos EUA. Na já citada palestra feita em 1948, Pearl Buck, chamou atenção para o seguinte:


 


“Quando a moderna democracia chinesa se desenvolver terá sua própria forma, não a dos americanos, mas à sua maneira conterá as oportunidades necessárias para a vida, a liberdade e a procura da felicidade pela qual todos os povos tanto anseiam”.


 


Delineada por sua milenar história, essa é a essência da verdade estratégica que envolve o desafiador caminho chinês para a democracia.


 


Notas:


 


(1) Walt Whitman, poeta da revolução americana e um dos preferidos de Marx, é expressão artística de primeira grandeza desta formação social.


 


(2) Reproduzido na: Revista de Geografia Econômica. Dossiê Ásia-China 1. Edição Piloto. Núcleo de Estudos Asiáticos do Depto. de Geociências do CFH-UFSC. Junho de 2007.


 


(3) A aldeia é uma unidade administrativa com cerca de 1.500 habitantes. Pessoalmente assisti a uma dessas eleições ocorrida em meados de 2004 na aldeia de Xengqing, distante 253 Km. de Chongqing, centro-oeste do país. Esta experiência foi reproduzida em coluna no Vermelho datada de 24/03/2006 e disponível em: http://www.vermelho.org.br/diario/2006/0324/jabbour_0324.asp?NOME=Elias%20Jabbour&COD=5516


 


(4) Atualmente existem mais de 700.000 vilas camponesas na China.


 


(5) “Hu Jintao mentions ‘democracy’ more than 60 times in landmark report”. People`s Daily. 15/10/2007. Disponível em: http://english.people.com.cn/90001/90776/6283187.html

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