O ''caso Renan'' e as vísceras da Rede Globo

A primeira derrota da direita no ''caso Renan Calheiros'' põe a nu os limites do poderio da ''grande imprensa''. É uma oportunidade singular para as forças progressistas avançarem na organização dos protestos contra a renovação da concessão para a Rede

A luta popular contra a renovação da concessão para a Rede Globo de Televisão, que vai ganhando forma, tem tudo para ser mais uma ação marcante das forças progressistas brasileiras. Poderá ser mais um capítulo de uma fase em que causas de importância estratégica para o país aparecem em debates diretos com o povo. Na aparência elas se assemelham a lutas de Davi contra Golias; na realidade são sementes que certamente brotarão e florescerão. Às vezes, o resultado é imediato, como acaba de ser demonstrado, mais uma vez, com a primeira derrota da direita e de seu fiel aliado — a esquerdalha — pelo placar da votação do “caso Renan Calheiros”.


 


Nada melhor que um bom fato, com farta divulgação de imagens — às vezes humilhantes para quem se presta ao papel de serviçal da direita, como ocorreu com alguns deputados que tentaram invadir o Senado — e exibido sem disfarces, para desfazer trapaças ideológicas e mostrar as coisas como elas realmente são. O desmascaramento da farsesca tentativa de cassar o mandato do senador Renan Calheiros (PMDB-AL) — tramada pela “grande imprensa” em conluio com os Irmãos Metralhas, Manchas Negras e Superpatetas, acompanhados de supostos inocentes úteis — pode ser um trampolim para que as forças progressistas se lancem com firmeza na luta contra a renovação da concessão para a Globo.


 


Métodos abertamente gangsteristas


 


Poder haver uma reedição de lutas como — entre outras — a que combateu a Área de Livre Comércio das Américas (Alca), a que levou Luis Inácio Lula da Silva duas vezes à Presidência da República, a dos plebiscitos sobre o leilão de privatização da Companhia Vale do Rio Doce (CVRD), a da desconstrução das mentiras que gravitam em torno do “mensalão”. Ou até uma coisa maior. Será algo difícil. Até a mais desinformada telespectadora da novela das 8 está cansada de saber que a Globo é o maior grupo empresarial brasileiro do ramo de comunicações.


 


Também não é segredo para ninguém que a Rede Globo de Televisão figura entre as quatro maiores do mundo, atrás somente das norte-americanas ABC, NBC e CBS. Tampouco chega a ser novidade que seus donos, os Marinho, são uma das famílias mais ricas do planeta. O que pouca gente conhece são os números precisos desse grupo de empresas iniciado em 1925, com a fundação do jornal O Globo no Rio de Janeiro. A falta de um balanço consolidado, a convivência de empresas abertas com outras de capital fechado, tudo isso costuma dificultar uma avaliação mais precisa do grupo.


 


O que se sabe é que o seu controle e participação em cerca de 100 empresas que empregam um contingente de mais de 12 mil funcionários inclui métodos abertamente gangsteristas. Uma das empresas que foi do grupo, a NEC — fabricante de centrais telefônicas, sistemas de telefonia celular, equipamentos de radiotransmissão e fibra óptica —, fundada pelo empresário Mário Garnero em associação com a NEC japonesa, por exemplo, passou às mãos da família Marinho em 1986 por meio de um episódio tenebroso.


 


Lógica de “segurança nacional”


 


Garnero alega ter sido obrigado a vender a sua parte na empresa mediante ameaças do então ministro das Comunicações, Antônio Carlos Magalhães (ACM). A operação custou um milhão de dólares. A mesma empresa foi vendida alguns anos depois por 36 milhões de dólares aos seus donos originais sem que os amigos de ACM investissem um tostão. Em troca, a emissora de ACM (TV Bahia) ganhou a programação da Globo — que havia 18 anos estava nas mãos da TV Aratu, de Salvador. Negociatas deste tipo existem desde que a poderosa rede de televisão nasceu.


 


A Globo se consolidou pelas mãos da ditadura militar, que escolheu o grupo de Roberto Marinho para difundir a sua política ligada à lógica de ''segurança nacional''. Os golpistas precisavam de um canal de televisão oficioso. O Jornal Nacional, o primeiro telejornal transmitido nacionalmente, se caracterizou como o principal programa jornalístico da emissora recém-formada, constituindo um forte espaço para a propaganda oficiosa do regime. A negociata começou em 1961, quando a Globo firmou um contrato principal e um de acordo de assistência técnica com o grupo norte-americano Time-Life.


 


Contratos da Globo com rasuras


 


Pelo acordo, a Globo comprou equipamentos a uma taxa de dólar um terço mais baixa do que o valor de mercado em vigor. O grupo Time-Life daria assessoria técnica à emissora. De acordo com o contrato principal, o grupo norte-americano obteria parte dos lucros líquidos da Globo — ou seja, um ato ilegal, já que não podia haver participação estrangeira nos lucros de empresas brasileiras de comunicação. No contrato de assistência técnica constava a “obrigação” de o grupo Time-Life “colaborar” na elaboração do conteúdo da programação e noticiários — mais uma prática proibida.


 


Era uma violação do código brasileiro de telecomunicações da época. O acordo sequer foi apreciado pelo Conselho Nacional de Telecomunicações (Contel). Apenas dois anos após a assinatura dos contratos a Globo enviou um deles — o de assistência técnica — para a Superintendência da Moeda e do Crédito (Sumoc) — hoje com o nome de Banco Central (BC). Mesmo assim, os documentos não puderam ser lidos porque continham muitas rasuras. O contrato sem rasuras só seria entregue, por ordem do Contel, em julho de 1965.


 


“Manifesto” denuncia atos da Globo


 


Novamente para burlar as leis, a Globo, com o escândalo instaurado, trocou o contrato principal por um de arrendamento de um terreno onde se localizava a sede da televisão. Pelo contrato, a Globo seria locatária de um prédio vendido ao grupo Time Life. O problema é que o documento foi feito antes da venda do local aos norte-americanos. Ou seja: a Globo alugou um prédio que era seu. Em troca do uso, a televisão se comprometeu a pagar 45% do lucro líquido da empresa pelo aluguel. Somando aos 5% do lucro liquido, destinado à assessoria técnica, o grupo norte-americano detinha 50% da Globo.


 


A participação do grupo Time-Life como sócio majoritário num meio de comunicação com concessão pública era uma violação da legislação brasileira. Para impedir qualquer tipo de fiscalização, alguns documentos da transação desapareceram. Depois de muita insistência do Contel, a Câmara dos Deputados, contrariando os militares golpistas, decidiu instaurar uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para investigar o caso. O assunto ganhou dimensão de escândalo público quando empresários do setor lançaram um ''Manifesto à Nação'' denunciando os atos da Globo e a entrada do capital estrangeiro na imprensa brasileira.


 


CPI condena Globo por unanimidade


 


Assinaram o documento representantes de O Estado de S. Paulo, da Folha de S. Paulo, do Diário de S. Paulo, de A Gazeta, de A Gazeta Esportiva, do Diário da Noite, do Diário Popular, do Jornal da Tarde, da Última Hora, do Notícias Populares, de A Tribuna, de O Diário de Notícias Alemãs, do Sindicato dos Proprietários de Jornais e Revistas do Estado de São Paulo, da Associação das Emissoras de São Paulo e do Sindicato das Empresas de Rádio-Difusão do Estado de São Paulo — além de entidades empresariais do setor no então Estado da Guanabara e até em outros países da América do Sul.


 


No dia 22 de agosto de 1966, a CPI divulgou a condenação, por unanimidade, da Globo. ''Os contratos firmados entre a TV-Globo e o grupo Time-Life ferem o Artigo 160 da Constituição, porque uma empresa estrangeira não pode participar da orientação intelectual e administrativa de sociedade concessionária de canal de televisão; por isso, sugere-se ao Poder Executivo aplicar à empresa faltosa a punição legal pela infrigência daquele dispositivo constitucional'', dizia o parecer do relator, deputado Djalma Marinho, que pertencia à Arena, o partido que sustentava a ditadura militar.


 


A hora de um grande ofensiva progressista


 


O primeiro presidente do ciclo militar, Humberto Castelo Branco, pedira que o caso fosse investigado. Mas seu sucessor, Artur da Costa e Silva, decidiu não acatar a decisão da CPI e apoiar oficialmente a Globo. Em 1969, o grupo Time-Life desistiu dos contratos. A emissora de televisão da família Marinho, no entanto, já era um poderoso meio de comunicação — posição conquistada por meio de linhas de créditos abertas pela então estatal Empresa Brasileira de Telecomunicações (Embratel). “Sinto-me feliz todas as noites quando assisto ao noticiário, porque na Globo o mundo está um caos, mas o Brasil está em paz”, disse certa vez o terceiro general no poder, Emílio Garrastazu Médici.


 


Desde então, a Globo ganhou passe livre para agir à vontade — sem respeitar os limites do que se pode chamar de convivência democrática. Alguns acontecimentos recentes, no entanto — como a reeleição de Lula e a primeira vitória no ''caso Renan Calheiros'' —, sugerem que a maioria da sociedade está à frente da mídia. Ou por outra: a maioria da sociedade não se sente representada pela mídia. Resta saber como a mídia vai conviver com isso. A falta de credibilidade perante a opinião pública mata qualquer veículo de comunicação, ainda que a morte seja arrastada — como é típico na ''grande imprensa''. A conclusão é inescapável: agora é a hora de uma grande ofensiva progressista contra a renovação da concessão para a Globo.


 



 

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