O Cinema Neon em “A Lua na Sarjeta”

Na estreia da coluna de Celso Marconi no Vermelho, confira as análises do crítico de cinema mais longevo em atividade no Brasil sobre cinema neon com o filme “A Lua na Sarjeta” e seu realizador Jean-Jacques Beineix e sobre a obra do cineasta Jonas Mekas

A escola do ‘neon–realismo’ existiu nos anos 80 do século 20 também aqui no Brasil. Alguns cineastas tentaram fazer um cinema de boa qualidade, porém com uma vinculação que levasse os filmes ao comércio cinematográfico. Aqui, o filme mais expressivo dessa escola foi A dama do Cine Shangai. Era um estilo onde o cineasta procurava fazer um cinema bonito e ao mesmo tempo com cenas que atraíssem o espectador mais ligado ao divertimento.

O filme que vi hoje foi La Lune Dans le Caniveau, do realizador francês Jean-Jacques Beineix. Certamente, é uma mostra perfeita disso que ficou conhecido como um cinema ‘neon’, pois apresenta uma extrema beleza enquanto imagem, mas seu conteúdo é bem ligado a uma obra policial de ação violenta. Há um jogo entre a imagem e o som, e particularmente a música que atrai o espectador para um clima romântico. Na verdade, esse tipo de filme não conseguiu fazer grande sucesso simplesmente porque o público cinéfilo sentiu que se tratava de um trabalho falso, sem dimensão estética, sem aprofundamento dramático. E o público mais popular não conseguiu se interessar pela ação, para eles muito encoberta com áreas de sofisticação.

A Lua na Sarjeta (1983)

Esse filme A Lua na Sarjeta, apesar de contar com ‘estrelas’ do cinema europeu como Gérard Depardieu e Nastassja Kinski, não conseguiu chegar ao grande público, no máximo a um público médio. É um filme que tem uma duração relativamente grande, 2 horas e 12 minutos, e as cenas mais violentas vêm no final. Logo na abertura, Beineix busca pegar o espectador ‘ilustrado’ utilizando frases ‘poéticas’ sobre a visão da lua na água que corre nos esgotos. O que considero pior é o melodramatismo, que a trilha sonora deixa escorrer durante toda a narrativa.

Mas, enfim, para se conhecer a História do Cinema é importante assistir obras como esta, que são significativas de um estilo de cinema que aconteceu justamente pelo clima vivido pela sociedade de muitos países durante os anos 80, em que o próprio tempo se podia chamar de ‘neon’. E assim o cinema como a arte mais dependente do social, tanto no sentido estético quanto econômico, não consegue deixar de ser refletido.

Beineix e seu curta irônico

O cinema do francês Jean-Jacques Beineix é realmente da linha do chamado neon-realismo. Mas seu primeiro curta, que está no site Making Off, é ligado a um autêntico realismo. Le Chien de Monsieur Michel é estruturado para passar ao espectador o drama de alguém que não se sabe por que motivo pretende arranjar comida como ‘presente’. Não tem aparência de alguém que pode pedir esmola. Beineix cria um campo de humor irônico que vai desenvolvendo durante os dezesseis minutos de duração do filme. Assim ele utiliza as interpretações do ator que faz o senhor Michel, Yves Afonso, e da senhora que faz a porteira, Denise Péron, e na forma de interpretar deles joga ironia. O importante porém em assistir com atenção esse curta é verificar como, mesmo no início de suas carreiras, os cineastas já existem quase completos e somente se desenvolvem quando fazem seus filmes longos.

Jean-Jacques Beineix (2014) 

Vendo o cinema de Jonas Mekas 50 anos depois

Jonas Mekas é um cineasta que nasceu no pequeno país da Lituânia em 1922. Viveu e trabalhou com base nos Estados Unidos e morreu em Nova York em 2019. Claro que sempre foi considerado como um artista norte-americano. Seu cinema é inteiramente de vanguarda e não tem praticamente relacionamento com Hollywood. Nos anos 70 fez sucesso e um pouco do seu cinema chegou ao Brasil. Mas eu na verdade só o conhecia superficialmente. Talvez tenha assistido a um trabalho dele. Agora com a existência de sites como o Making Off vi cinco filmes de sua produção nessa semana.

O cineasta Jonas Mekas na capital paulista, em 1994 | Imagem: Folhapress

Eu tenho realmente inveja dos críticos que vivem e trabalham hoje com essas novas oportunidades. Assim, o crítico e simplesmente um cinéfilo não fica obrigado a ver o que o comércio da distribuição cinematográfica lhe traz.

O cinema de Jonas Mekas poderia ser chamado de ‘doméstico’ pelos temas que aborda e pela estrutura da forma em que apresenta sua narrativa. Portanto, não é um cinema para atrair grandes plateias. Entretanto o nível estético da sua construção é excelente. Eu o chamo de cinema ‘doméstico’ porque embora ele apresente filmes sobre a Lituânia, sobre John Lennon, sobre Allen Ginsberg e Andy Warhol – claro que todos esses são temas naturalmente populares –, a forma como cada filme aborda essas figuras é de maneira ‘doméstica’. É como se Jonas Mekas estivesse fazendo filmes sobre seus parentes e amigos. A visão é doméstica, embora a forma seja corretíssima como produção cinematográfica. Evidentemente,  é por isso mesmo que seu cinema não chega fácil ao campo da exibição.

Dos que estão sendo exibidos agora pelo Making Off, o menos doméstico talvez seja o que se chama As Armas das Arvores (Guns of the Trees) e conta também uma estória de uma pessoa personagem e não de uma personalidade. É um drama montado. A linguagem é a mesma dos demais filmes dele. Quase como se estivéssemos vendo uma arte ‘abstrata’. Não tem relação direta com a realidade concreta que o ser humano conhece. Não é o cinema na forma que Hollywood nos apresenta. Mas o que é fundamental é o senso coloquial que o filme desenvolve e ao mesmo tempo o claro equilíbrio rítmico. As cenas não se perdem de uma para a outra, embora nem sempre estejam ligadas pelo chamado conteúdo.

Outro filme é Scenes from Allen’s Last Three Days on Earth as a Spirit. Um autêntico documentário sobre a cerimônia budista que foi feita para Allen Ginsberg para o seu sepultamento. Também não tem uma linguagem realista, mas consegue emocionar e inclusive perturbar o espectador pelos momentos em que um senhor prepara o corpo para ser conduzido para o velório e prosseguindo pelos cantos e orações entoadas.

Aliás, temos que destacar como no cinema de Mekas o som é algo tão fundamental quanto a imagem. A estória possível do filme é narrada não pela imagem, mas por um poderoso conjunto de som e imagem. E outro elemento permanente nesse cinema é o humor. Há um clima de ironia, de humor divertido, de entendimento, e sempre com uma mostra de extrema inteligência.

Ainda temos no Making Off um grupo de cinco curtas num bloco, que pode ser tido como uma amostra de uma forma de fazer cinema sem realismo. Romântico e muito especial é o documentário, ou então podemos chamar de cinema poético sobre sua terra, a província da Lituânia e seus parentes. Em outro, com pequenas cenas com as presenças de Andy Warhol e John Lennon, o cineasta consegue formar dois bons momentos fílmicos sobre essas duas figuras famosíssimas do mundo artístico. E isso é importante, saber aproveitar uma cena para manter o clima de expectativa de uma obra. A cena com Warhol é quase que só de uns dez segundos. E no filme sobre o aniversário de Lennon ele mostra outra cena de talvez cinco segundos em que os dois – Lennon e Yoko Ono – mostram a bunda.

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