O constitucionalismo dos trabalhadores

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Foto: Tony Winston/Agência Brasília

Como movimento político e jurídico o Constitucionalismo contemporâneo somente faz sentido se conta com a participação dos trabalhadores na sua construção, desenho normativo e efetividade. Isso quer dizer, só faz sentido se os direitos dos homens e mulheres que trabalham estão plenamente consagrados e garantidos.

E esta ótica é sem dúvida uma grande contribuição do Constitucionalismo da América Latina. Não podemos esquecer que o Constitucionalismo Social tem berço no México com a Carta fundamental de Querétaro de 5 de fevereiro de 1917, que estabelece, nos seus artigos 5º e 123, como bem lembra César Arese, uma espécie de código constitucional do trabalho de enorme intensidade protetora. [¹]  

Com efeito, uma reação às liberdades romanceadas do século XIX tornou-se evidente a começos do século XX. Destarte, o artigo 5º daquela Constituição determinou na época que “nadie puede ser obligado a prestar servicios personales sin justa retribución y sin su pleno consentimiento” e ademais que “el contrato de trabajo solo obligará a prestar el servicio convenido por el tiempo que fije la ley”. Outros direitos passaram também a ser constitucionalizados, como a jornada máxima de trabalho de 8 horas durante o dia e 7 horas durante a noite. Igualmente, a proteção do trabalho insalubre para mulheres e crianças e a proibição do trabalho infantil a menores de 12 anos, assim como o descanso semanal e a proteção da maternidade.

Mais adiante a Constituição estabeleceu a licitude das greves, da liberdade de associação e a condição de que ao trabalho igual deve corresponder igual salário. Por isso, o mesmo César Arese ao lado do Pastor Rouaix afirma com toda razão que a Constituição mexicana consignou garantias e direitos que por mais de um século os operários haviam lutado por afiançar, num plano de igualdade perante o capitalismo imperialista predominante nos países. [²]

Claramente, numa época em que a eficácia dos direitos fundamentais era exclusivamente vertical, relacionando Estado e pessoa, o Constitucionalismo social trouxe uma eficácia horizontal entre patronos e trabalhadores.

Todos estes direitos se espalharam a seguir na Constituição Soviética de 1918, na famosa Constituição de Weimar, de 1919 e em outras constituições da América Latina como a do Chile de 1925, a do Peru de 1933, a brasileira e a do Uruguai de 1934, as de Colômbia e Venezuela de 1936, as de Nicarágua e El Salvador de 1939, a de Cuba de 1940, as de Guatemala e Equador de 1946 e a Argentina de 1949. [³] 

É claro que desde então o capitalismo não é o mesmo. É palpável que a lógica do mercado conseguiu vincular os países do mundo em um sistema de comunicação e interdependência, é dizer se globalizou e mais recentemente o fez sob a premissa do neoliberalismo. Mas isto não significa que não esteja em crise. Pelo contrário, os ataques ao Estado de Bem-estar social são resultado da forma como os agentes do sistema econômico pretendem resolver a crise que o abate e que se agravou em Wall Street no 2007 para depois se expandir na União Europeia, especialmente na Espanha e na Grécia. Uma crise de prateleiras cheias e consumo reduzido pela incapacidade dos trabalhadores de adquirir; de desvalorização da moeda, a mais prezada das mercadorias. A elite dominante do planeta descarrega a crise nos assalariados.

Nesse contexto, governos como o brasileiro representam a combinação entre a desvinculação do Estado e a economia – mantendo exclusivamente o público quando o privado decide que o investimento não compensa pela baixa margem de lucratividade – e o autoritarismo cerceador de liberdades, naquilo que Silvio Almeida lembrava recentemente como o neoliberalismo autoritário. [⁴]

Examinando um pouco a relação capital – trabalho há quem sustente que hoje há um adeus ao trabalho para significar que este já não tem como categoria histórica o alcance que em outro momento teve, porque transfigurado no século XXI, de tal maneira que a comunicação e a gestão organizada tornam mais benigna a contraposição. Como dizem dentre outros Ricardo Antunes, nada disto tem se confirmado. [⁵] Na verdade, na atualidade o capital foi incapaz de atender a crise e não somente isso, também trouxe um redesenho laboral através do home office que combinou a tecnologia, que está também nas suas mãos, com formas novas de sobre-exploração na qual, em muitos casos, até desaparecem as horas como parâmetros da jornada laboral.    

A essa questão deve-se adicionar a precarização ocasionada pela reforma trabalhista a partir das formas cada vez mais flexíveis de contratação, o congelamento dos investimentos em saúde e educação, tudo tendo como pano de fundo nas ruas as motocicletas de uma lado a outro a partir dos pedidos de aplicativos e a uberização, que alguns se atrevem numa ousadia tão trágica como enganosa de chamar de “paradigma do empreendedorismo”. Supostamente isto também faria parte de uma nova forma de organização laboral da sociedade e, portanto, do fim dos direitos e garantias dos trabalhadores, que teriam que se conformar com uma inevitável flexibilização e sobretudo com a diminuição dos salários. Na verdade, o que temos é, por um lado, o trabalho por conta própria, muito distante das teses de empreendedorismo como o desenham os que o colocam como alternativa real, que ocasiona um deterioro acelerado das condições de vida das camadas medias da população e o empobrecimento maior das mais baixas.

E tudo isto faz parte da deterioração que o próprio sistema ocasiona. A força de trabalho continua a ser vendida ainda que logicamente, não estamos necessariamente no padrão fordista típico, porém, de ali a considerar que estamos diante de uma autêntica revolução e que disto vai surgir uma nova classe trabalhadora com maiores direitos e garantias é ser ingênuos e não compreender qual a lógica do sistema, a cuja cabeça esta o capital financeiro.

O chamado precariado, por autores como Standing, trabalha, mas não tem emprego. [⁶] Se ilusiona com a ideia de estar “em contato com o mundo” desde sua própria casa e não perde tempo com o trânsito das ruas, porém, é instável, o trabalho é incerto, depende exclusivamente do salário porque carece de direitos e na verdade, não é dono do seu tempo por estar sempre à disposição. 

Por isso, a Constituição de 1988 deve ser conhecida, mostrada, ensinada, interpretada e efetivada por e para os trabalhadores, que devem se apropriar especialmente do conjunto dos direitos estampados, especialmente entre os artigos 6 a 11.  O Constitucionalismo social, oriundo do nosso cenário latino-americano, tem um entrelaçamento com a luta social. Não surgiu ao acaso e os direitos e garantias dos trabalhadores estão para ser defendidas e aumentadas sobre a base da educação, a organização e a disposição para enfrentar as forças do capital.

Constitucionalismo é isso. Se constrói assim desde que os nobres fizeram assinar a João a Carta de 1215, avançou e adquiriu solidez universal com a vitória sobre o absolutismo no século XVIII e arquitetou uma nova morfologia estatal e uma compreensão de direitos e garantias para os trabalhadores no começo do século XX. Hoje a defesa de todos eles são um desafio, Há que estar atentos a estas modificações no mundo do trabalho para que, por supuesto, direitos dos trabalhadores e trabalhadoras sejam efetivados.


Notas e Referências

[1] Los derechos humanos laborales en las Constituciones latinoamericanas (el centenario de la Constitución de Querétaro) in http://www.scielo.org.mx/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1870-46702017000200183

[2] Idem. Ibid. P. 3-5

[3] Idem. Ibid. p. 3-5.

[5] Filgueiras e Cavalcante, O trabalho no século XXI e o novo adeus à classe trabalhadora In princípios. Vol. 39. N. 59. 2020

[6] STANDING, Guy. The precariat: the new dangerous class. Londres: Bloomsbury Academ- ic, 2011. No excelente trabalho de Filgueiras e Cavalcante. 

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